sexta-feira, 4 de maio de 2018

REENCARNAÇÃO E CINEMA*

                      
Para uns crença, para outros verdade científica, para outros rematada bobagem, a doutrina reencarnacionista, de um modo geral, defende a tese de que depois da morte a alma (o espírito, segundo alguns) de um ser humano pode retornar à vida e ocupar um outro corpo a fim de se aperfeiçoar, de se purificar.



REENCARNACIÓN  ( DUVIER DEL DAGO , 1976 )

As ideias reencarnacionistas são tão antigas quanto a humanidade. Nós as encontramos já na pré-história, nos cultos relacionados com os mortos, cultos estes que procuravam facilitar de algum modo, através de certos ritos de separação, a viagem desse componente imaterial do corpo humano para o Outro Lado. Depois de algum tempo, a alma de lá retornaria, encarnando-se, para uma nova existência.

Ao longo da trajetória do homem, desde a pré-história, todas as sociedades sempre reconheceram a importância de orientar seus membros a respeito da morte e das consequências  desse acontecimento. Estabeleceram-se crenças e sistemas rituais para o enfrentamento da morte, a cessação definitiva da vida. Os gregos antigos já diziam que a filosofia, na realidade, não passava de um grande esforço no sentido de superar o problema da morte e do destino humano.

Como o ser humano não é capaz de perceber quando sua morte ocorrerá, muitos filósofos fizeram e continuam fazendo muitas considerações sobre o caráter ineludível desse fato, afirmando que a maior parte da humanidade o vive depressivamente (Henri Bergson, por exemplo), tão depressivamente que sua vontade de ação se vê até aniquilada, inclusive o próprio desejo de viver. É por isso que a ideia de morte para o homem não é uma coisa precisa, mas um angustiante sentimento indeterminado. A morte é assim uma presença vaga e latente, uma possibilidade permanente, anunciada pelas doenças, pelos perigos externos, pela fadiga do organismo e por outros sinais sempre ameaçadores.


Quase todas as religiões do mundo nos fazem conceber a morte como um momento de acerto de contas, de um julgamento final. No Apocalipse, por exemplo, último livro canônico do Novo Testamento, afirma-se que esse julgamento só terá lugar quando do fim do mundo. Na religião cristã, a morte do corpo é interpretada como um futuro renascimento do espírito em Deus.


SPINOSA
Geralmente, no pensamento filosófico ocidental, embora reconheçamos com Sócrates, que não é possível pensar nada de concreto sobre o destino da alma, são concebidos, sob o ponto de vista filosófico, dois tipos de imortalidade: aquela da alma individualmente (Sócrates-Platão) e aquela em que a alma individual se confunde com a totalidade universal (Spinosa).

O sentimento de limitação da vida individual levou a humanidade a uma reação natural: o indivíduo quer ir além de si mesmo, quer se perpetuar de algum modo. Não é por outra razão que a maior parte da humanidade, ainda que não muito conscientemente, sente a necessidade de ter filhos como um “desejo de eternidade”, ou seja, o desejo de se perpetuar através de sua descendência.

Esse desejo que o homem experimenta pode se manifestar pela produção de uma obra qualquer, cultural, artística ou política, uma obra enfim que assegure a sua permanência (a memória anula morte, era uma das frases preferidas dos antigos gregos), que o faça viver eternamente, heroicamente. É neste sentido que muitos falam de uma “religião da História”.

Esta vontade de viver, de permanecer de qualquer maneira, que os homens experimentam é realmente uma reação ao sentimento que a morte neles provoca. Como Albert Camus lembrou, este desejo acaba se constituindo num desejo imoderado de “aproveitar” tudo o que a vida poderá dar. Mas este aproveitamento não passa geralmente de algo físico, algo que, no fundo, nunca poderá satisfazer de fato, já não dizemos a filósofos, mas mesmo a pessoas que tenham uma vaga noção do que possa ser uma individualidade mais ou menos esclarecida. Que resta então ao homem diante da morte?

Em que pesem os avanços da ciência no sentido de vencer a morte através do uso de vários tipos de drogas ou das modernas técnicas da engenharia biomédica, a finitude humana continua sendo concebida através de três formas: como extinção total, como possibilidade de preservação da personalidade e como contínuo renascimento da alma até sua purificação final.

EPICURO
Epicuro costumava declarar: Se somos, a morte não é; se a morte é, não somos. Esta sentença coloca a questão de modo absoluto, vida e morte se excluindo mutuamente. Elimina-se qualquer relação entre a vida e a morte. A morte, segundo este entendimento, seria um ponto no qual a vida chega ao seu final. Nenhuma possibilidade de continuidade, nada mais.

Será a morte um fim absoluto? Para a medicina, ela é, sem dúvida, a cessação completa e definitiva da vida. Pelas vias não mítico-reIigiosas (Ciência, História, Direito, Medicina, Comunicação) tenta-se qualificar a morte, fala-se dela como morte agônica, morte clínica,  morte gloriosa, morte aparente, morte morrida, morte por causa externa, morte infame,  morte natural, morte cardíaca,  morte cerebral, morte por parada respiratória, morte presumida, morte súbita e de muitas outras formas. Qualquer que seja o rótulo, a morte será sempre decesso, exício, finamento, libitina, óbito, trânsito, passamento, conforme a encaremos.


LIBITINA
A palavra libitina, pela qual os romanos designavam a morte, era o nome de uma divindade, uma espécie de Vênus ctônica, de origem etrusca provavelmente. Libitina era poeticamente a deusa da morte; presidia os funerais e tinha relação com as homenagens prestadas aos mortos. No seu templo, no Aventino, era guardado o material usado nas pompas fúnebres dos cidadãos romanos. Os agentes e organizadores de funerais, conhecidos pelo nome de libitinarii, se reuniam no templo da deusa.


AVENTINO

Por outro lado, não há como negar que a morte traga sempre, apesar do seu aspecto inelutável, inexorável, uma ideia de sobrevivência, de transformação, que levou grande parte da humanidade a considerá-la sob outros aspectos, como estados diferentes daqueles em que o ser humano se encontrava anteriormente, formas de sobrevivência que se davam através da alma. Mudanças de estado, não um fim.

D'ALEMBERT
É evidente que ao longo da história do homem a afirmação da existência da alma provocou reações contrárias extremadas. Homens da ciência, da arte e da filosofia deixaram-nos afirmações como estas: 1) Impostura de padre (D’Alembert, filósofo do séc. XVIII, iluminista francês, enciclopedista, homem da ciência da época); 2) O homem é um ser puramente físico (P.H.D. Holbach, filósofo francês, séc. XVIII);
PIRANDELLO
3) Nada de alma na ponta de um bisturi (de um cirurgião moderno); 4) O corpo é um dos nomes da alma e não o mais indecente (M. Arland, escritor francês, séc. XIX); 5) Se existe alguma coisa de sagrada, esta é o corpo humano (W.Whitman, poeta americano, séc. XIX); 6) Nada parece mais supérfluo do que o espírito num organismo humano (Pirandello, escritor italiano, séc. XIX-XX).

Os sistemas filosóficos que optam pela primeira hipótese (morte como extinção total) são os chamados sistemas materialistas. Materialismo é a doutrina segundo a qual não existe outra substância que a matéria. Ela se opõe ao espiritualismo, para o qual é o espírito que constitui a matéria de toda a realidade. Neste sentido é que o materialismo é a doutrina segundo a qual não existe outra substância que a matéria. Ela se opõe ao espiritualismo, para o qual o espírito constitui a matéria de toda a realidade. Neste sentido é que materialismo e espiritualismo são doutrinas ontológicas e antagônicas. A ontologia, esclareça-se, é a ciência do ser em si. Ontos, em grego, quer dizer o que existe, o ser, o existente em geral. É uma parte da filosofia que tem por objeto o estudo das propriedades mais gerais do ser, do que existe, apartado da infinidade de determinações que, ao qualificá-lo particularmente, ocultam a sua natureza plena e integral.

Como doutrinas ontológicas, materialismo e espiritualismo discorrem sobre a natureza do ser ou da realidade. De um modo geral, as teses materialistas rejeitam a existência da alma, do Além e de Deus. O materialismo recusa-se a reconhecer a especificidade do psiquismo. Para ele, por exemplo, psicologia e a espiritualidade, nos seus inúmeros desdobramentos, não podem passar do estudo de reações físico-químicas que ocorrem no cérebro. Por isso, o materialismo considera o conhecimento do homem como um prolongamento do conhecimento da natureza. Ele não aceita qualquer aproximação compreensiva das chamadas realidades espirituais.

Já o espiritualismo é a doutrina segundo a qual o espírito (princípio vital, imaterial, superior à matéria) constitui a substância de toda a realidade. A oposição materialismo-espiritualismo, é bom lembrar, se distingue da oposição idealismo-realismo, que são doutrinas sobre a origem do conhecimento e não sobre a natureza do ser.

LEIBNITZ
Leibnitz, por exemplo, é um espiritualista na medida em que relaciona a matéria com a energia e esta a uma força impossível de ser percebida, para ele de natureza espiritual. O espiritualismo se opõe ao materialismo não somente como o espírito à natureza, mas também como a vida se opõe ao mecanicismo. A filosofia de Bergson, que afirma a irredutibilidade da vida a qualquer forma de mecanismo físico-químico, desemboca num espiritualismo, na medida em que identifica a espontaneidade da vida com atividade criadora do espírito. A psicologia espiritualista é, por isso, a que vai estudar os fenômenos psicológicos como produtos das faculdades da alma.

Nas principais tradições religiosas e mesmo popularmente na cultura ocidental, o entendimento da morte, de um modo geral, rejeita as teses materialistas. Muitas obras, que se pretendem científicas, vêm sendo publicadas no ocidente nas últimas décadas, nesse sentido, defendendo a possibilidade de alguma  forma de sobrevivência depois da morte, muitas afirmando possuir evidências empíricas sobre o que declaram.



No ocidente, por exemplo, depois de Platão, encontramos referências à reencarnação nas obras de Plotino, de Orígenes e de Clemente de Alexandria. O primeiro, que mais parece um hinduísta perdido no ocidente, é um filósofo neopitagórico, da escola de Alexandria, do séc. III dc. Famosas são as suas Enéadas, em seis livros, com nove partes cada um. De especial importância para nós é a quarta enéada, que trata da alma. Sua doutrina do “Uno-além-do-Ser” se opõe à ideia da razão como faculdade de representação.


Orígenes, doutor cristão de língua grega, dos sécs. II-III dC, representante da Gnose ortodoxa, foi o primeiro autor a propor um sistema completo do cristianismo, nele integrando as teorias neoplatônicas (ideias da imortalidade da alma e reencarnacionistas), o que lhe valeu a condenação pelo concílio de Constantinopla (533). Clemente de Alexandria, professor de Orígenes, em Alexandria, ligado à Gnose, pagão convertido ao cristianismo, também levantou a questão reencarnacionista em suas obras.

EGITO                                            

Não podemos esquecer que grande parte do que se falou e escreveu sobre reencarnação no mundo grego veio do Egito, mais exatamente. Os textos egípcios nos dão a conhecer que os três princípios espirituais ligados ao corpo humano eram o akh, o ba e o ka. O primeiro, representado por uma ave (íbis), pertencia ao céu e
ÍBIS
se opunha ao corpo, que era da terra. O segundo, o ba era o que mais se aproxima da ideia de alma como a entendemos hoje. O ba animava o corpo humano. Os deuses possuíam muitos ba, de acordo com a forma que desejassem tomar. O ba continuava a viver sem o seu suporte corporal quando este desaparecia. Já o ka era uma espécie de essência do ser humano, mais um duplo psicológico que equivalia à consciência, funcionando como guia da vida humana. Já o ka pode ser considerado como um princípio imaterial e invisível que garantia a sobrevivência humana na Terra e, ao mesmo tempo, lhes possibilitava ter vida eterna no Douat (Outro Lado). 

Primitivamente, o ba parece ter sido um componente específico da personalidade dos deuses, uma faculdade que lhes possibilitava tomar diferentes formas e ir para onde quisessem. Cada ba, uma forma. Por isso, os deuses tinham muitos ba. A partir de um determinado período da história egípcia (18ª dinastia, período do Novo Império)), esse componente já aparecia incorporado ao ser humano. Nas representações de tumbas que datam dessa época (por volta de 1.100 aC) encontramos muitos ba na forma de pássaros com cabeças humanas dando voltas em torno delas. Isto confirma que para os antigos egípcios o ba continuava a viver não só sem o seu suporte material (corpo) como conservava as faculdades que animavam o corpo que caracterizava. 

Em papiros e inscrições, os antigos egípcios, há muitos milênios aC, talvez antes de todos os povos da antiguidade, já nos haviam deixado declarações como estas: Antes de nascer, a criança já viveu e a morte não é o fim. A vida é como um evento que passa como o dia solar que renasce. Honra a ti, Osíris, ó governador dos que se encontram no paraíso, tu que fazes renascer os mortais, que renovas sua juventude.
                                               
GRÉCIA                                      

Mesmo aqueles que sem maiores indagações consideram a morte como um ponto final (teses materialistas) admitem que sempre haverá alguma forma de sobrevivência, não por algo que seja transferido para o Outro Lado, mas por alguma coisa que reste. É neste sentido que os gregos criaram o culto da memória, uma de suas mais belas construções mitológicas.




Para o grego antigo, enquanto houvesse memória haveria vida. A memória era uma conquista que vencia a morte. O homem, através de sua memória, conquistava seu passado individual, o grupo,
MNEMÓSINA
social, com ela, sob a forma de História, entrava na posse de seu passado coletivo. Dai a sacralização de uma função psicológica, a memória, como a deusa Mnemósina, mãe das Musas. São as Musas que dão trégua ao sofrimento dos mortais, pois permitem que sejam guardadas as produções superiores do espírito humano. Mnemósina patrocina não só a poesia, que aponta para o passado, relacionando-o com a audição, recuperando-o, mas também aponta para a mântica, a adivinhação, que se orienta para o futuro, para o que está por vir, relacionando-o com o ato de falar. Mnemósina torna o passado integrante do cosmos. É a deusa que nos permite vencer
Lethe, o Esquecimento. Como tal, a deusa é consciência eterna.


PERSISTÊNCIA  DA  MEMÓRIA ( S. DALI , 1904 - 1989 )

A aceitação da frase de Epicuro (Se a morte é, não somos) elimina realmente qualquer relação entre a vida e a morte. A morte, segundo esse entendimento, seria, como vimos, um ponto no qual a vida chega ao seu fim. Nenhuma continuidade. Será assim? Outra tradição nos fala que, mesmo morrendo o corpo, a personalidade, representada pela alma, é preservada, voltando continuamente à existência. A doutrina hinduísta, ao que parece a mais antiga a dar um tratamento conclusivo a este assunto, afirma que a alma, depois de inúmeras reencarnações, poderá um dia se libertar do ciclo da reencarnações para se dissolver no Todo (Brahman). Todas estas tradições, principalmente a hinduísta e a espírita, declaram inclusive possuir evidências empíricas que confirmam o que afirmam.

Assim como a morte de alguém não é simplesmente a morte de um organismo, a vida de uma pessoa não é puramente um fenômeno orgânico. Viver é participar de uma rede de conexões maior ou menor com outras pessoas. Nossa morte causa um dano irreversível a essa rede da qual fazemos parte, rompendo as suas malhas Assim, o que experimentamos quando alguém morre não é apenas a sua morte, mas o repentino rompimento da frágil rede a que ela estava ligada.

Os antigos gregos diziam que ser é esperar ser. É evidente que um cadáver é um desmentido desta afirmação Um cadáver não pode esperar mais nada. Enquanto houver vida sempre poderemos esperar alguma coisa. Todos sabem que num cadáver está se operando o precioso movimento da matéria, um processo físico-químico em ação que causa a transformação desagregadora do sólido em pó e em liquido, o desaparecimento deste em gás, todo um balanceamento harmonioso que faz com que os bosques cresçam, que o vento sopre, que a terra trema, que nosso planeta gire e que o Sol esquente. Sem a morte nada disto aconteceria, É a morte que permite que tenhamos as auroras, o meio-dia, o crepúsculo, que venham a primavera, o verão, o outono e o inverno. É a morte que põe tudo isso em movimento.


THANATOS
A morte, como o deus grego Thanatos a representava, é o fim absoluto de qualquer coisa, de um ser humano, de um animal, de uma planta, de uma amizade, de um amor, de uma sociedade, de uma época, de um deus, de uma civilização. A morte é sempre o aspecto perecível e destrutível da existência. É a inelutável evolução das coisas que vai permitir o acesso a mundos desconhecidos. Como tal, a morte é ao mesmo tempo introdução e revelação. A morte nos livra das forças negativas e regressivas, desmaterializando, libertando as forças transformadoras e ascensionais.


Para a mitologia grega, na ocorrência da morte, a alma (psykhe), meio inconscientemente, descia para uma outra forma de vida, uma catábase que não era o seu fim como sopro vital. Nessa descida, a alma guardava uma espécie de consciência latente que podia ser ativada desde que dela se guardasse memória por meio de cultos apropriados, de sacrifícios e de invocações, como nos conta Homero na Odisseia sobre a invocação dos mortos (nekyia) que Ulisses realiza, quando de sua visita Tirésias.

Transportada por Hermes, na sua função de deus psicopompo, a alma, na forma de um eidolon, um simulacro, uma imagem que guardava vagamente a forma do corpo vivo, descia ao Hades, o Inferno dos gregos. Lá era julgada num tribunal. Se as faltas cometidas fossem muito graves, ela ia para o Tártaro, a camada mais profunda da região infernal, onde permaneceria presa eternamente em meio a grandes sofrimentos.

Se as faltas não fossem tão graves, ela ia para o Érebo, camada intermediária entre o Hades e a Terra, lá permanecendo por muitos anos (cem anos, para alguns), sofrendo também bastante. Diferentemente do caso anterior, a alma que estivesse no Érebo, depois de cumprida a sua pena, poderia reencarnar. Foi com base nesta concepção grega que os cristãos mais tarde criaram o seu Purgatório.

PURGATÓRIO ( GUSTAVE DORÉ , 1932 - 1883 )


Aqueles que tivessem levado uma vida justa ficavam no Hades, numa região paradisíaca, sem sofrimento algum, os chamados Campos Elíseos, aguardando um breve retorno, devendo, porém, antes da sua volta, beber também das águas do rio Lethe, o rio do esquecimento, para que não se lembrassem de sua permanência no Hades. O mesmo acontecia como os que tivesse estado no Érebo; depois de cumprida a sua pena, antes de reencarnar.



No pensamento grego, foi no Fedon, um dos mais famosos diálogos de Platão, que Sócrates declarou não ser a filosofia, no fundo, mais do que uma preparação para a morte. Sua frase: Os verdadeiros filósofos fazem do morrer a sua profissão. Para aquele que se preparou adequadamente, a morte não seria esse acontecimento terrível como a maior parte da humanidade a considera, mas simplesmente a passagem de um estado a outro da existência. O filósofo, dizia Sócrates, deve estar sempre preparado para enfrentar a morte, a qualquer momento.

Na preparação mencionada pelo filósofo temos o entendimento de que ha uma distinção absoluta entre corpo e alma. Quando as pessoas não percebem isto, surge uma grande confusão, elas se tornam dependentes do corpo, isto é, do mundo físico, fenomênico, não tendo nenhum controle sobre si mesmas.

Como o mundo físico é perecível, ele está sempre mudando, sujeito a oscilações e transformações; o que se obtém nos contactos com ele é impreciso, insatisfatório, incompleto, um conhecimento pouco ou nada confiável. A alma, por isso, não deve sacrificar a sua independência e lucidez, identificando-se com o corpo. O mundo físico muda constantemente. A alma que se torna dependente do corpo físico e do mundo não consegue entender a sua intemporalidade, uma de suas três características fundamentais. Ansiedade e incerteza, medo e confusão são as consequências inevitáveis dessa incompreensão.

A visão socrática da alma é diferente. A alma deve ter como preocupação maior, a única aliás que deve interessá-la, a busca de algo que ela já possui: encontrar a verdade, que outra não é senão a sua eternidade. Assim, a filosofia deve ser um longo e deliberado exercício para se chegar à separação da alma das pressões que ela sofre enquanto encarnada.  A razão desse entendimento está no fato de que é só o corpo que pode morrer. Devemos deixar que o tempo e a morte tenham o nosso corpo, pois a nossa tarefa será a de encontrar a vida em outra parte.

SÓCRATES
Apegar-se ao corpo é, assim, o modelo clássico da aflição. Só há extravio e perturbação quando alguém insiste em viver só no nível material. A função da filosofia, segundo Sócrates, é a de nos resgatar dessa miserável dependência. A independência, a lucidez e a intemporalidade da alma correspondem assim às próprias características do conhecimento que devemos obter. Estas características, diz o filósofo, não podem ser percebidas pelos olhos ou por algum sentido corporal. A verdade deve ser entendida por isso como algo diferente do temporal A temporalidade, como se sabe, e a reino da falsidade.

A alma deve ser como a verdade para poder conhecê-la, disse o filósofo. A alma não está separada do corpo porque é feita de uma substância diferente, mas por ter um objetivo diferente dele. Enquanto o corpo e os sentidos respondem às mudanças, a alma deve responder à permanência. Enquanto o corpo muda, chegando a se tornar pó, a alma responde à permanência, deve lidar com a eternidade, com o que não sofre mudanças. Para Sócrates, quando o corpo deixa de existir, a alma vai para outro lugar, não deixando de existir. A oposição que Sócrates discute não é a da vida à morte, mas a da vida na terra e a vida em outra parte.

É por essa razão que Sócrates nos diz que conhecer é recordar. Quem aprende não adquire conhecimento algum, apenas recorda o que conheceu antes. Sendo eterna, a alma, passando de um corpo a outro, leva consigo tudo o que aprendeu. A razão pela qual devemos recordar o conhecimento deve-se ao fato de que ao nascer, embora não o tenhamos perdido, ele se torna inconsciente.

Segundo Sócrates, as almas que quando da morte do corpo físico dele não se libertam completamente, ficam impedidas de se unir com o que ele chama de realidade absoluta e imutável. O filósofo afirma que estas almas são aquelas que vemos sob a forma de fantasmas ou espíritos, perambulando ao redor dos túmulos, nos cemitérios. Estas almas retêm uma “porção de visibilidade”, o que pode lhes dar alguma visibilidade. Aqueles que cultivam a glutoneria, o egoísmo, a embriaguez, o prazer dos sentidos, poderão renascer em níveis inferiores de existência.

A alma que pratica a filosofia, ao abandonar o corpo, alcança uma natureza divina. Para Sócrates-Platão, a finalidade da filosofia é a de produzir um efeito real quando do nosso encontro com a morte A função da filosofia não e só a de nos informar sobre a verdade, mas a de fazer com que nos conformemos com a verdade. O conhecimento torna-se assim algo poderoso e importante, eis que neste sentido se torna um antídoto contra a morte.

De tudo o que Sócrates-Platão nos deixaram conclui-se (as teses por eles defendidas) que o homem poderá sobreviver à sua morte. Se não praticar o conhecimento filosófico (desapego do material), ele voltará certamente a renascer de modo humilhante, em condições infra-humanas. Para eles, a alma é substancial e não um princípio ou uma metáfora. É algo real. Ela é livre enquanto o corpo é causal e limitado. Por isso, Platão considera a vida como um continuum infinito. Como tal, a vida não se opõe à morte, fazendo esta parte da própria vida. O que temos é, pois, uma alternância, passando a morte a ser vista como uma mudança de estado. Morrer é abandonar o corpo e ocupar um outro. Viver será assim fixar residência eterna no verdadeiro conhecimento.


De acordo com as teses platônicas, a alma é uma entidade metafísica, pertencente ao mundo invisível dos espíritos. Ao descer ao plano do humano, por uma necessidade natural ou para expiação de alguma culpa, o corpo se transforma para ela num cárcere. A alma tem uma parte imortal, criada pelo Demiurgo (na filosofia de Platão, uma espécie de intermediário entre o divino e o humano, o artesão divino, o princípio organizador da matéria caótica), com o mesmo elemento que compõe a alma do mundo.

Antes das almas ocuparem um corpo, o Demiurgo mostra-lhes o chamado ”mundo das ideias”, adquirindo elas o conhecimento da realidade eterna e imutável. Ao encarnar, a alma esquece o que viu no “mundo das ideias”, formando-se nela duas partes, uma irascível, impulsiva e desdenhosa, outra concupiscente, a dos desejos ignóbeis. Contaminada e perturbada pela irracionalidade, a alma passa a se arrastar então pelo mundo, guiada pelos sentidos. A alma que consegue controlar as partes acima mencionadas manter-se-á ligada ao “mundo das ideias”.

Como a alma preexiste ao nascimento do corpo, fica claro que para Platão ela sobrevive ao desaparecimento do corpo físico. Como entes eternos, daimons, por uma necessidade de ordem cósmica, as almas caem no plano da matéria, indo muitas delas para o mundo infernal. A parte Imortal de cada alma não é deste ou daquele ser humano, pois vive passando de um corpo para outro. O ser humano não é mais que uma veste aparente destes daimons impessoais, que vivem passando de um corpo a outro.


ORFISMO  ( ROBERT  DELAUNAY , 1885 - 1941 )

Para que as ideias socrático-platônicas sobre a reencarnação fiquem mais claras, não podemos deixar de fazer referência ao Orfismo, nome que se dá a uma corrente religiosa que penetrou na Grécia desde o período arcaico, de origem provavelmente trácia. Sabe-se que já no séc VI aC o Orfismo estava solidamente estabelecido na Grécia. Os adeptos dessa seita a faziam remontar a Orfeu, poeta e músico trácio. A seita possuía uma teogonia, uma cosmogonia e uma soteriologia perfeitamente definidas. Deixando de lado os dois primeiros componentes da doutrina órfica, procuraremos nos fixar apenas no último, no qual se fala da morte e da sorte que aguardava a alma no além-túmulo e o caminho perigoso que a conduzia até lá e a trazia de volta ao mundo dos vivos, para recomeçar uma nova trajetória existencial.

Como no mito hesiódico, o Orfismo dividia o Hades, o Inferno, em três regiões distintas: a parte mais profunda, abissal e escura era chamada de Tártaro; entre esta e a superfície da Terra ficava o Érebo; ao lado deste, mais acima, fica o Eliseon. As duas primeiras partes eram destinadas aos pecadores. No Tártaro, ficavam os grandes criminosos, submetidos aos castigos mais cruéis; no Érebo, ficavam os pecadores que, em razão de suas faltas, não tão graves, mereciam também punições, mas não severas como as dos outros. As almas que ficavam nos Campos Elíseos, por terem vivido justamente, nada sofriam nesse paradisíaco lugar e a ele não mais voltavam, indo depois para a Ilha dos Bem- Aventurados.


PERSÉFONE
Não era admitida para a inumação dos órficos o envolvimento dos corpos em roupas de lã, pois o sacrifício de animais era proibido pela seita. A cerimônia fúnebre era realizada sempre com muita simplicidade e alegria, pois, como se sabe, os órficos “reservavam as suas lágrimas para os nascimentos”. Uma da máximas do orfismo era, aliás, a de que o corpo era a prisão da alma, Soma, Sema. Com o sepultamento, iniciava-se a
catábase da alma que partia em busca do “seio de Perséfone”, a rainha do Hades. Platão, nos diálogos Fedon e Górgias, nos informa que essa viagem era cheia de obstáculos e desvios. Os justos tomavam o caminho da direita e os maus o da esquerda.

As almas dos que não haviam se aproximado do Orfismo deviam tomar o caminho da esquerda, sendo obrigadas a beber das águas do rio Lethe a fim de esquecer suas existências terrenas. Os órficos, ao contrário, na esperança de escapar da reencarnação, evitavam esse rio, buscando a fonte da Memória. Ao evitar as águas do Lethe, as almas dos órficos estavam procurando apressar a sua entrada no “seio de Perséfone”. Mas se alma, ainda não totalmente purificada, tivesse que retornar, teria ela forçosamente que beber também das águas do Lethe, para apagar as lembranças do Além. Junto da fonte da Memória ficava um cipreste branco, símbolo da luz e da pureza, uma imagem comum do paraíso em muitas tradições. Todos os criminosos  eram obrigados a passar por sofridas metempsicoses. Era a lei: a alma tinha que retornar sucessivamente à Terra. A alma órfica, obrigada a reencarnar, bebia das águas da fonte da Memória par se lembrar da sua futura bem-aventurança.


LETHE  ( GUSTAVE DORÉ , 1932 - 1883 )

Os órficos, principalmente no mundo grego, foram os defensores e divulgadores destas ideias, provavelmente herdadas do Egito e da Índia, ideias chamadas pelos gregos de ensomatose ou metempsicose. Finda a sua longa jornada terrestre, a alma devidamente purificada, voltava para junto de Perséfone.

O Orfismo, no mundo grego, procurou eliminar um antigo costume religioso, o de que cada membro da família (genos) era responsável e herdeiro das faltas cometidas por seus ancestrais. Os órficos afirmavam que a culpa era sempre de responsabilidade individual e que a sua remissão deveria ser feita na Terra, através de sucessivas reencarnações. Quem não conseguisse saldar esse débito pagaria por ele no Além e noutras reencarnações, até a sua libertação final. 


VICTOR   HUGO
A influência do Orfismo foi notável sobre o pensamento platônico e o cristianismo, de um modo geral. Além destas influências, é preciso lembrar também que Orfeu e sua proposta religiosa deixaram uma poderosa marca nas obras dos filósofos judaico-cristãos, nos hermetistas, nos filósofos do Renascimento e em muitos poetas espiritualistas modernos, em Victor Hugo, Novalis e Rainer Maria Rilke, de modo especial.

PITÁGORAS
Outra importante seita grega que nos deixou muito material sobre a vida depois da morte foi a pitagórica. Seu fundador foi Pitágoras, filósofo e matemático (séc. VI aC), nascido em Samos, cuja vida esteve sempre envolvida por muitas lendas. O que se sabe de mais certo é que fundou uma escola mística e filosófica em Crotona (colônia grega da península itálica).

Durante o séc. IV aC, para enfraquecer a influência da religião aristocrática oficial, muitos governos, de tiranos que haviam assumido o poder por via não tradicional, incentivaram a expansão de cultos populares ou estrangeiros. Dois, em especial, conseguiram muita expressão, o orfismo, entre as camadas populares, e o pitagorismo, entre camadas da elite social.

O pitagorismo, ao lado de seu caráter filosófico e matemático, desenvolveu uma linha religiosa essencialmente esotérica. Seus seguidores acreditavam na imortalidade da alma. Embora semelhantes em muitos pontos, o orfismo e o pitagorismo  tinham diferenças fundamentais. No orfismo, com a degradação do corpo físico, a alma migrava para outro corpo com a finalidade de se purificar. O deus Dioniso guiaria este ciclo de reencarnações, ajudando o homem a se libertar dele.

No pitagorismo, ao contrário, a purificação da alma e a sua libertação ocorreriam através de um intenso trabalho intelectual, trabalho este que permitiria a descoberta da estrutura numérica das coisas do universo (tudo, segundo o pitagorismo, podia ser traduzido em números, proporções e figuras geométricas), ajudando a alma a se reconhecer como uma “unidade harmônica” nesse conjunto o que favoreceria a sua integração ao cosmos.

A escola pitagórica, com muitas centenas de alunos, tinha, como se disse, um caráter esotérico, com um sistema de pensamento centrado na matemática, na ciência, na filosofia, no misticismo e na religião. Era a escola pitagórica, no fundo, uma irmandade intelectual e religiosa. A essa irmandade os antigos gregos conferiram o título de A Primeira Universidade do Mundo.


LAO - TSÉ

Pítágoras viajou muito, percorrendo, em cerca de trinta anos de viagens, o Egito, a Síria, a Fenícia e, provavelmente, a Pérsia e a Índia, onde teria desenvolvido muitos estudos (religião astral dos pitagóricos). Pitágoras foi contemporâneo de Tales de Mileto, Buda, Confúcio e Lao-Tsé.


Dentre os principais conceitos de sua escola, destacamos; 1) prática constante de rituais de purificacão (limpeza corporal, banhos, alimentação saudável, vegetarianismo etc.); 2) crença na metempsico das almas (provável influência egípcia) e na sua transmigração da alma de um corpo para outro; 3) distribuição comunitária de bens materiais; 4) austeridade e ascetismo; viver com pouco, rejeição do supérfluo; 5) purificação da mente pelo estudo da geometria, da aritmética, da música e da astronomia-astrologia.

Pensamentos de Pitágoras: 1) se educarmos as crianças, não será preciso punir os homens; 2) não é livre quem não obteve o domínio de si mesmo; 3) pensem o que quiserem de ti; faz, porém, o que parecer justo; 4) o que falares, semeia, o que escutares, recolhe; ajuda teus semelhantes a levantar a carga, mas não a carregues. Depois de Platão, encontramos, por exemplo, como já disse, referências  à reencarnação nas obras de Plotino, de  Orígenes e de Clemente de Alexandria e outros, todos vendo na sua proposta uma profunda coerência com o devenir cósmico.

SÃO  JERÔNIMO  ( JOOS  VAN  CLEVE , 1485 - 1541 )

Para abrir um pouco mais as discussões sobre o tema deste ciclo, podemos citar ainda, dentre muitos e muitos outros, alguns depoimentos como o de São Jerônimo, o maior latinista do cristianismo: A maneira pela qual cada um de nós põe os pés na Terra quando aqui aportamos, é a consequência fatal de como agiu anteriormente no universo. Cada alma vem a este mundo fortificada pelas fraquezas ou vitórias da vida anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso escolhido para honrar ou desonrar, é determinado pelos seus méritos ou deméritos.  Seu trabalho neste mundo determina a sua vida num mundo futuro.

Ainda no mundo cristão, no evangelho de João, em palavras de Jesus, há uma declaração que qualquer adepto do reencarnacionismo aceitaria: Em verdade vos digo que se alguém não nascer de novo não poderá ver o reino de Deus. Na vida de Jesus, conforme registros, é famoso o dialogo que ele manteve com um dos mestres de Israel, Nicodemos. Uma das frases de Jesus: Nenhum espírito baixado à Terra poderá entrar no reino de Deus sem renascer de novo da água e do espírito.

VOLTAIRE
De algumas outras figuras do mundo cultural, mais referências sobre a reencarnação: Lê-me, leitor, se encontras prazer em ler-me, porque muito raramente eu voltarei a este mundo (Leonardo da Vinci). De Voltaire: Nascer duas vezes não é mais surpreendente que nascer uma vez: tudo na natureza é ressurreição. De Benjamin Franklin: Aqui jaz o corpo de Benjamin Franklin, impressor, semelhante à capa de um velho livro de páginas arrancadas, abandonadas ao léu, com seu título e seus dourados apagados. A obra não se perderá, pois, como ele acreditava, ela aparecerá em nova edição mais elegante, revisada e corrigida pelo autor.


Mais umas frases, para encerrar este capítulo: Estou certo de que estive aqui, como estou agora, mil vezes antes e espero retornar mil vezes...  A alma do homem é como a água: vem do céu e sobe para o céu, para depois voltar à Terra, em um eterno ir e vir (Goethe). De Balzac: Todos os seres humanos experimentaram vidas anteriores... Quem sabe quantas formas físicas o herdeiro do céu ocupa, antes que ele possa compreender o valor  daquele silêncio e solidão, cujas planícies estreladas são apenas a ante-câmara dos mundos espirituais.

                                                         
ESPIRITISMO                                            

Toda a estrutura da doutrina espírita tem por base a crença na existência da alma como ser moral, distinto da matéria, imaterial, portanto, que conserva a sua independência e individualidade depois da morte do corpo que habitava. Essa entidade, segundo a mesma doutrina, é  encontrada em todos os seres humanos.

Independentemente de qualquer ensinamento, afirmam os espíritas, no que seguem as grandes tradições mítico-religiosas da antiguidade, que a crença na existência da alma, desde a pré-história, é encontrada em todas as sociedades humanas, qualquer que seja seu nível de adiantamento. Essa crença nos diz que a alma é um ser imaterial e indivisível que existe no ser humano e que sobrevive ao corpo na ocorrência da morte. Os primeiros registros que temos dessa concepção datam do paleolítico, conforme todas as pesquisas paleontológicas o atestam, quando os homens  (Neandertal ou Cro-Magnon) começaram a enterrar ritualmente os seus mortos. A preparação dos defuntos já pressupunha uma crença numa forma de sobrevivência após morte.

Como princípio vital, a alma compreende o conjunto das atividades imanentes à vida (pensamento, afetividade, sensibilidade etc.) como manifestações de uma substância autônoma ou parcialmente autônoma em relação à materialidade do corpo. Para o espiritismo, o princípio vital é uma propriedade distinta da matéria e autônoma, que se realiza nos seres do mundo. Há, por isso, em todos os seres orgânicos (seres que têm em si uma fonte de atividade íntima que lhes dá a vida; já seres inorgânicos são todos os que não têm vitalidade ou movimentos próprios e são formados apenas pela agregação da matéria, como os minerais, a água etc.) uma força íntima que produz o fenômeno que chamamos vida. Assim, dentre algumas espécies dotadas de inteligência e pensamento há uma em especial, diferente das demais que é dotada de um senso moral específico, que lhe dá uma indiscutível superioridade sobre as outras, a espécie humana. Isto ficará mais claro se entender o homem, ao refletir sobre a sua vida e sobre o sentido que quer dar a ela, a questão moral sempre se colocará obrigatoriamente.

Para os espíritas, tanto os materialistas como os panteístas admitem também a existência desse princípio vital que anima os corpos, embora o compreendam de modo diverso. Para os materialistas, a alma não passaria de um produto de reações físico-químicas do organismo humano. Ocorrendo a morte do corpo físico, ela desapareceria com ele.

Quanto aos panteístas, a vida decorreria, como um desdobramento, da existência de uma alma universal (Anima Mundi) da qual partículas (centelhas) iriam constituir a alma humana. Assim, para os panteístas, tudo o que existe no universo teria uma partícula da referida Anima Mundi. Ocorrendo a morte de um ser, desfazendo-se o corpo, cada partícula retornaria à sua fonte original para nela se dissolver. Para os espíritas, dessa forma, os hinduístas poderiam ser considerados como panteístas. 

As referidas partículas só teriam individualidade enquanto presas a um corpo humano. Esta alma universal é muitas vezes chamada de Deus pelas diversas correntes animistas ou panteístas. Os estoicos gregos, por exemplo, afirmavam que Deus era a força viva que animava todo o universo, uma força vital imanente ao mundo. Imanente a um ser ou a um conjunto de seres é aquilo que está compreendido neles e que não depende de uma ação exterior.


LIVRO  DOS  ESPÍRITOS
Como se vê, para os espíritas, tanto materialistas como panteístas admitem a existência da alma. No Livro dos Espíritos se esclarece que essa diversidade de interpretações decorre do fato de que palavras podem ter mais de um sentido, vários até, tudo dependendo de quem as usa. Essa possibilidade plurívoca que têm muitas palavras lembra, como reconhecem os espíritas, Proteu, divindade marinha grega, que podia tornar todas as formas que bem entendesse. Assim, cada corrente filosófico-religiosa usa tais conceitos de modo até muito diferente, o que sempre gera intermináveis discussões e debates.


PLATÃO
Na cultura ocidental, destaquemos, a palavra alma tem o sentido de princípio vital, animador, sede dos pensamentos e dos sentimentos. Estes dois sentidos se distinguem a partir da antiguidade hebraica (alma orgânica e alma pensante) e romana (animus e anima). A redução do segundo sentido ao primeiro constitui o vitalismo;  a redução do primeiro sentido ao segundo constitui o espiritualismo (Platão, Leibnitz, Hegel). Na filosofia, o princípio da imortalidade da alma foi desenvolvido, como dissemos antes, de modo excepcional por Platão, no seu diálogo Fedon.

A doutrina espírita, através de seus textos mais importantes (obras de Alan Kardec), para comprovar as verdades que defende, nos informa sobre a sua origem, nos tempos modernos. Tudo começou no início do ano de 1848, nos USA, quando as denominadas “forças inteligentes” (manifestações de espíritos) começaram a ser notadas e estudadas de modo mais aprofundado.

CABANA  DA  FAMÍLIA  FOX

Na aldeia de Hydesville, condado de Wayne, no estado de Nova York, na tosca residência, pouco mais que uma cabana, da família Fox, certas manifestações, constituídas de ruídos e pancadas (rappings, noises) despertaram a atenção dos moradores da casa e da população do vilarejo. A origem dos fenômenos foi atribuída a ação de espíritos, entidades invisíveis, almas de pessoas falecidas, que talvez estivessem procurando contacto com os vivos. Sem uma causa aparente, objetos eram movidos, uns lançados ao chão, outros atirados longe, pancadas no teto da cabana eram ouvidas, janelas e portas batiam com estrondo.

AS  FOX
O alvoroço tomou conta do vilarejo, muitas pessoas se reuniram para encontrar uma causa que explicasse os fenômenos. Formou-se um grupo de estudos na pequena cidade de Rochester, acontecimento que marcou o nascimento da doutrina espírita. As manifestações,  como se descobriu posteriormente, eram provocadas pelo espírito de um mascate, Charles Rosma, que fora assassinado no vilarejo e seu corpo sepultado no porão da casa da família Fox. Adeptos da igreja metodista, os Fox tinham duas filhas, Margareth e Catherine, que se revelaram como médiuns.

Conforme o comprovam vários registros, o primeiro contacto com o mundo dos espíritos aconteceu na noite o dia 31 de março de 1848; ele foi estabelecido entre as irmãs Fox e o espírito do referido  mascate. Um dos presentes, lsaac Post, usou pela primeira vez um método criptográfico para estabelecer o contacto. Ele sugeriu que cada letra do alfabeto equivalesse a um determinado número de pancadas. Uma espécie de comunicação telegráfica.

Logo depois, a família Fox se transferiu para Nova York, realizando-se as sessões espíritas, desde então, publicamente, num hotel da cidade. A repercussão desses acontecimentos foi enorme; milhares de pessoas começaram a se intitular espíritas, passando a frequentar as concorridas reuniões, apesar dos ataques da imprensa oficial da cidade que considerava tais reuniões como uma grande impostura.

Os meios científicos e as elites religiosas do país sentiram-se incomodados. As notícias logo alcançaram a Europa, ganhando grande destaque na França, especialmente. Os  fenômenos das mesas girantes e a prática da psicografia, então sistematizados, começaram a alcançar um crescente número de pessoas. Nos meios sociais mais elevados era moda participar de reuniões espíritas.

Em Paris, os fenômenos espíritas provocaram grande interesse. Muitas pessoas dos meios científicos e culturais viram neles algo mais que uma brincadeira. Um pedagogo francês, Hippollyte Léon Denizard Rivail, começou a pesquisar o assunto seriamente, recebendo, segundo consta, do mundo dos espíritos orientação para escrever sobre a matéria. Em documentos da época, há registros de que um espírito revelou ter conhecido o professor Rivail havia muito, desde a antiga Gália, onde ele vivera com o nome de Allan Kardec.

A partir de então, o professor Rivail passou a adotar esse nome como pseudônimo e começou a publicar obras sobre o tema, organizando e sistematizando a matéria espírita dispersa, comentando-a e comparando-a com o conhecimento filosófico-científico da época  disponível, no que foi auxiliado por alguns amigos dos meios culturais e científicos.


TÚMULO  DE  KARDEC
Em 1.857,  Kardec  publicou O Livro dos Espíritos. No ano seguinte, era editado o primeiro número de A Revista Espírita. Nesse mesmo ano foi fundada a primeira sociedade espírita regularmente constituída, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Alan Kardec faleceu a 31 de março de 1.869, aos 64 anos, tendo sido seu corpo enterrado no cemitério do Père Lachaise, num túmulo formado por dois dólmens druidas.

Doutrinariamente, os espíritas, segundo O Livro dos Espíritos, estruturam as suas concepções a partir de Deus como inteligência suprema, causa de todas as coisas, sendo ele eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, sobejamente justo e bom.  Ele criou o universo do qual fazem parte seres animados e inanimados, materiais e imateriais.  Os seres materiais constituem o mundo visível ou corporal; os seres imateriais o mundo invisível ou espírita, o dos espíritos. Este mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistindo e sobrevivendo a tudo. Neste sentido, o mundo corporal é secundário, pode deixar de existir sem que se altere a existência do mundo espírita. Os espíritos vestem temporariamente um corpo material perecível, cuja destruição pela morte lhes devolve a liberdade.

Entre as diferentes espécies de seres corporais, Deus escolheu a espécie humana para a encarnação dos espíritos que atingiram um certo grau de desenvolvimento, o que lhes dá a superioridade moral e intelectual sobre os outros.Toda alma é um espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório. Assim, há no homem um corpo material, animado pelo princípio vital. A alma se une ao corpo por uma espécie de laço, chamado periespírito (o que lembra muito o sutratma dos hindus). Ocorrendo a morte, desfaz-se o laço, o envoltório corporal é destruído, conservando o espírito o seu corpo etéreo, invisível, mas que pode às vezes se tornar visível e mesmo tangível, como acontece no fenômeno das aparições, segundo os espíritas.

Ao deixar o corpo, a alma retorna ao mundo dos espíritos para recomeçar uma nova existência material depois de um período mais ou menos longo, permanecendo nesse período no estado de espírito errante. As reencarnações podem se dar na Terra ou noutros mundos. Ressalte-se que para os espíritas a encarnação dos espíritos sempre ocorre na espécie humana e será sempre progressiva, pois o espírito nunca retrocede. O tempo requerido para a progressão do espírito depende de cada ser encarnado para chegar à perfeição. Quando encarnado, o espírito encontra-se sob a influência da matéria. O homem que supera essa influência aproxima-se dos bons espíritos, com os quais poderá estar um dia.

Os espíritos são criaturas divinas, mas não divinos. Deus os cria constantemente, exercendo eles sobre o mundo físico e o mundo moral uma ação incessante. As comunicações dos espíritos com os homens são ocultas ou ostensivas. As primeiras ocorrem pelas boas ou más influências que exercem sem que o homem saiba. As outras podem ocorrer por meio da escrita, da palavra ou outras manifestações materiais, geralmente através de médiuns que lhes servem de Instrumento.

Os espíritos se distinguem pelo seu grau de perfeição. Há inúmeros graus, que podem, contudo, ser resumidos a tres principais. Em primeiro lugar, os que atingiram a perfeição, os espíritos puros. Os de segunda ordem estão no meio da escala, podendo fazer o bem, mas precisam evoluir. Os últimos, os imperfeitos, sofrem grande pressão da vida material, apresentam uma propensão ao mal. Vivem no mundo da ignorância, do orgulho, do egoísmo e de todas as más paixões. Podem ser impuros, levianos, maliciosos, inconsequentes, falsos sábios, batedores e perturbadores, estes dois últimos manifestando a sua presença por efeitos sensíveis e físicos, como pancadas, movimento anormal dos sólidos, podendo atuar sobre os quatro elementos.

A lei divina impõe a encarnação aos espíritos com o objetivo de fazê-los chegar à perfeição. Devem sofrer, por isso, as tribulações da existência corporal; é o que se chama expiação. Todos os espíritos são criados simples e ignorantes, dependendo a sua instrução e progresso de seu envolvimento nas lutas no plano material. A alma, ao deixar o corpo, passa por algum tempo por um estado de perturbação. Ela necessita de um período variável para se reconhecer.

Os pais transmitem aos filhos apenas uma vida animal, pois a alma é indivisível. Um pai estúpido pode ter filhos inteligentes e vice-versa. A sucessão de existências corporais estabelece entre os espíritos laços que podem remontar a existências anteriores. Mais: entre nossos vizinhos ou entre pessoas a quem servimos ou que nos servem podemos encontrar um espírito ao qual estivemos ligados por Iaços de sangue. O espiritismo, corno todas as tradições reencarnacionistas, aliás, desde tempos pré-históricos, muda a visão tradicional que temos do culto dos ancestrais e das árvores genealógicas por nos fazer recuar a existências anteriores.
                                                
ÍNDIA                                          

O ponto de partida para se compreender as ideias reencarnacionistas dos hindus está no entendimento de que a realidade última para eles se situa além do que aparece como realidade visível, de forma múltipla e diferenciada, sempre mutável e perecível. Na procura do eu verdadeiro do ser humano, esse entendimento, aliado a uma sistemática e inigualável técnica de investigação, levou-os à conclusão de que este eu verdadeiro não estava no nosso corpo, como quando dizemos “eu sou alto”, “tenho calor”, “sou belo”, ou na nossa mente, quando dizemos “eu penso”, “eu acho”. Tampouco este eu verdadeiro se confundia com o nosso desejo, como quando dizemos “eu espero”, “eu quero”, “eu pretendo”.

Os pensadores hindus, desde os tempos védicos, chegaram à conclusão que na base de todas as afirmações ou atividades acima mencionadas, ligando-as e unificando-as, mas que não dependia de seu conjunto nem de qualquer uma delas em particular, estava aquilo que chamaram de Atman. Esta conclusão a que chegaram na busca deste verdadeiro Eu interior tinha uma relação analógica  perfeita com uma busca que haviam empreendido  no outro plano para chegar ao conceito de Brahman.

BRAHMAN
Explicando: o Brahman  para os hindus está na origem e essência, na causa material e eficiente de todo o universo e muito mais, como eles dizem. Para os hindus ao Brahman não se pode atribuir qualquer predicado ou atributo. Ele está além de tudo o que se puder dizer dele. O fenomênico e a multiplicidade universal decorrem dele. Ele não tem gênero, não é masculino nem feminino, é algo anterior à divisão. Quando tudo o que entrou na existência, para constituir a incontável multiplicidade universal, se extingue, num eterno movimento cíclico de vários níveis, é a esse Brahman que tudo retorna. Os hindus sintetizam este vir-a-ser constante na fórmula: Do Uno ao Múltiplo e do Múltiplo ao Uno. 

A busca do eu interior do homem, pelos hindus, se assemelha bastante à sua busca do Brahman. Isto não é uma coincidência se conhecemos a lei da correspondência universal (O que está em cima é como o que está em baixo; e o que está em baixo é como o que está em cima). Por trás de tudo o que somos, de toda a nossa diversidade, corpo físico, sensações, afetos, sentimentos, emoções, pensamentos etc., há uma unidade, uma partícula, digamos, idêntica ao Brahman. Duas expressões verbais dos hindus, muito usadas para repetir isto, são: O Atman é o Brahman e Tu és Aquilo. O Brahman, o Uno, contém e está em todas as formas que entram na existência que duram por um tempo e que depois perecem, a ele retornando. Tagore deixou-nos uma observação sobre o que aqui dizemos: Nós não somos o que parecemos ser realmente; o que nos cabe apenas é tornarmo-nos verdadeiros, tornarmo-nos o Brahman. A maior parte dos hindus concebe esta relação Ser Humano (Atman)-Brahman  cultualmente, como um culto a Deus, mas sempre algo muito diferente daquele que temos nas religiões monoteístas e patriarcais.

No processo incessante da criação e da destruição universais, o Atman, incondicionado, corno energia pura ou espírito, se quisermos, ao entrar em contacto com outras formas de existência, com o mundo natural, fenomênico e perecível, Maya para os hindus, se deixa afetar por ele, vítima de uma espécie de sedução, de encantamento. Os hindus chamam este contacto de entrar no jogo, o contacto entre energia e matéria, isto é, Purusha (Atman) e Prakriti (Natureza).

PRAKRITI
Deste contacto entre Prakriti e Atman emanam elementos que vão constituir o chamado jivatman, o ser humano encarnado, diferenciado, do qual passam a fazer parte: 1)  Buddhi, o intelecto superior, capaz de discriminação e de decisão, pelo qual o espírito, de natureza masculina, pode se identificar com o jogo da matéria (Lila), de natureza feminina, e com o corpo físico. 2) Ahamkara,  a faculdade de individuação, o sentido de ego. 3) Provenientes do Ahamkara, os cinco sentidos (tanmatras). 4) Da relação ahamkara-mundo  surgem: manas, o mental, órgão interior de percepção,  de volição e de ação, a ele se ligando os órgãos receptores e motores.

O Hinduísmo tem como proposta última o retorno do Atman ao Brahman, proposta que deve ser realizada pelo ser humano a partir de si mesmo, tanto interiormente como exteriormente. Entende o Hinduísmo que nessa realização o ser humano e o mundo exterior têm a mesma importância. Com efeito, dizem-nos os hinduístas que quem conhece um torrão de argila conhece toda a argila do mundo. Ou seja, aquele que conhece o microcosmo, conhece o macrocosmo. Ou, ainda, quem sabe que tem o Brahman dentro si, conhece o Brahman. Enquanto nós ocidentais nos voltamos com grande intensidade para o mundo de Maya, o mundo exterior, fenomênico, ilusório, perecível, os hindus, sem se descuidar dele, têm como objetivo último a volta para a sua interioridade, a sua realização espiritual.

HINDUÍSMO
O Hinduísmo nos diz, para explicar porque as almas (o espírito encarnado), essencialmente livres, se tornam prisioneiras de Prakriti (mundo natural, Maya), que a causa é a ignorância (avidya). As filosofias hinduístas não se interessam em pesquisar a causa dessa ignorância, mas procuram, isto sim, pôr um fim a ela. O que se nota, assim, é que a maior parte da humanidade vive, segundo os pensadores hinduístas, nesse estado de ignorância, incapaz de discriminar aquilo que nele depende do espírito (Purusha) e aquilo que nele depende da matéria (Prakriti). Essa falta de discriminação é que mantém o ser humano num verdadeiro estado de escravidão ao mundo físico, à sua vida afetiva, emocional e mental (inferior), em variados níveis.

Enquanto o homem não conseguir mudar o seu centro de gravidade, do mundo exterior para o seu mundo interior, o centro que está nele mesmo, no geral encoberto e ignorado, ele continuará dependente do mundo material, das formas, aguilhoado constantemente pelo desejo, pela inveja, pelo ódio, sujeito às disputas e às guerras.

Para os hindus, a vida compreendida entre o nosso nascimento (ou concepção) e a morte, não é um acontecimento único, que ocorre pela primeira vez e que jamais voltará a ocorrer. Para eles, a morte não é mais que uma das inumeráveis etapas que a alma encarnada tem que percorrer até a sua libertação (moksha), o retorno ao Brahman.

O corpo que toma o jivatman (alma encarnada) não é mais que uma habitação provisória com a qual a alma comete o erro de se identificar. Dizem-nos os mestres hindus: Na ocorrência da morte, a alma abandona o velho corpo e busca um outro, como se trocasse as suas vestes.

Quando a encarnação da energia cósmica ocorre no plano humano, temos o homem, o ser mais elevado da criação, a forma mais alta, aquela que pode atingir a liberdade no seu nível existencial.  A forma humana está acima de todas as formas, inclusive da angélica, porque ela é livre, mas é, por isso mesmo, que ela terá que se haver com o mundo de Maya onde aparecem conceitos como o do egoísmo, orgulho, karma, dharma e também de Yoga. 

O corpo, para a alma, nestas condições, não é mais que um instrumento do qual ela poderá  se servir para buscar conscientemente a sua evolução, ou seja, o seu retorno ao Brahman, em meio a todas tentações e percalços que terá de enfrentar se permanecer no mundo de Maya.

Todas as diferentes encarnações sucedem-se com interrupções mais ou menos longas, períodos que, conforme o caso, podem significar permanência em lugares paradisíacos ou infernais. Neste particular, aliás, os hindus mostram, com relação às teologias ocidentais uma enorme diferença, uma oposição mesmo. Para eles, o inferno e o paraíso são considerados apenas como lugares de residência temporária aonde vamos, em certos casos, recolher retribuições de nossas más ou boas ações que ainda não geraram frutos. Para os hindus, ideias de um paraíso e de um inferno eternos são totalmente absurdas, contraditórias. 

Eis como eles nos esclarecem sobre esse entendimento: como tais permanências infernais ou paradisíacas tiveram um começo elas devem, como tudo que tem um começo, ter fim. De outro lado, lembram eles, que todas as ações humanas são necessariamente limitadas, finitas, não podendo ser infinitas as suas consequências. A punição das ações humanas deve ser, assim, forçosamente limitada e proporcional. 

Para o Hinduísmo são as disposições do nosso corpo sutil que determinam a forma  do nosso nascimento, o caminho a ser tomado, Estas disposições são consequentes das impressões deixadas por todas as nossas ações praticadas anteriormente. Estas impressões têm o nome de avyaka, o não-manifestado. É um poder invisível resultante da soma de todas as potencialidades que condicionam o destino de cada ser consciente.

Durante a nossa vida, em função das nossas ações ou omissões, vamos registrando em nosso corpo sutil impressões (vasanas) correspondentes às visões e emoções ligadas às nossas ações. Muitas destas impressões e emoções se repetem, formando agregados que acabam por se organizar como tendências (samskaras). Constituindo-se essas tendências, cria-se uma espécie de depósito de potencialidades que cedo ou tarde atuarão, sujeitando-nos a elas. Assim, esse material kármico depositado, material que desconhecemos (a noção de inconsciente do Ocidente), acabará se impondo para nos empurrar para um tipo de vida que não entendemos. Para os hindus, como podemos perceber, não há nada no universo livre de consequências. Um sentimento, um pensamento, um ato, tudo produz efeitos  que teremos de colher mais cedo ou mais tarde (dharma). 


  INSTITUTO  DE  YOGA  NA  ÍNDIA

O ciclo ininterrupto dos nossos atos e de suas consequências que nos leva a renascer é chamado na Índia pelo nome de samsara, palavra que lembra corrida, tropel. Para escapar desse ciclo, os hindus formularam doutrinas filosóficas como o Samkhya e o Yoga (darshanas). A salvação para o hindu não está na conquista de um estado paradisíaco, mas está no que ele chama de transcendência do mundo manifestado, que, em última instância, significa o seu retorno ao Brahman. Esta libertação é chamada de moksha (da raiz muc, desatar), atingida quando, com base na superior noção de dharma (obrigação, responsabilidade, dever) não houver mais nenhum resíduo de material kármico, bom ou mau.

Libertar-se da obrigação de renascer é, como vimos, o desejo dos hindus a fim de ser atingido um estado a que eles dão diferentes nomes, moksha (libertação), kaivalya (independência) e outros. A procura e os esforços para esta libertação estão presentes em todas as preocupações  quotidianas deles, em todos os domínios de suas vidas. Tudo isto, é claro, para os verdadeiramente hinduístas, não os de fachada.

Todas as escolas filosóficas e seitas da Índia concordam que o estado acima referido corresponde à verdade mais profunda do ser humano, já que é a única coisa que realmente vale a pena ser desejada por ele e que corresponde a um estado de felicidade perfeita, de tranquilidade profunda, não oposto ao sofrimento, um estado que transcende as dualidades (alegria-dor, felicidade-infelicidade etc.) nas quais ele vive encerrado. Num estado destes, a alma ultrapassa a multiplicidade, não se sentindo ela mais condicionada pelo tempo, pelo espaço e pela causalidade.



No Bhagavad Gita encontramos: Isento de apego, liberado, o espírito firmemente estabelecido no conhecimento, age através do sacrifício. Aquele que executa as suas ações de forma desinteressada, renunciando ao “eu” e ao “meu”, como uma oportunidade de servir e de oferecer, pratica atos sagrados, conceito superior da Yoga como escola filosófica. É pelo nosso sacrifício que os deuses se alimentam, dizem os mestres hinduístas. Se executado com o espírito sacrificial, o nosso trabalho, qualquer que seja, adquire então o valor de um rito. O que conta não é a natureza do trabalho que executamos, mas o modo e o espírito com os quais o fazemos. Cada função da vida poderá ser vivida dessa maneira sem que fiquemos aprisionados pelo que fazemos e vivemos.



*Ciclo realizado no MUBE para Lita-Projetos Culturais, em 2013, em quatro palestras. Foram exibidos os seguintes filmes para ilustrar a temática discutida: O Iluminado, As Duas Vidas de Audrey Rose, Minha Vida na Outra Vida e Manika, A história de Uma Ressurreição.