terça-feira, 11 de novembro de 2014

UM DIRETOR RUSSO


OVSYANKI  ( ALMAS   SILENCIOSAS )

A entrada da Rússia na economia de mercado ao final do século passado, depois da perestroika,  acelerada e diversificada nos primeiros anos do nosso século, alcançou também a sua produção  cinematográfica, que procurou repetir o modelo básico já usado pelos USA e por outros países da Europa: criar um mercado interno e competir de modo agressivo externamente. Um dos itens mais significativos desse esforço era o da produção de filmes de sucesso para o grande público, blockbusters, de inspiração norte-americana, sempre com os olhos postos no box office. As distribuidoras norte-americanas chegaram mesmo a se entusiasmar até um pouco com alguns sucessos populares do cinema russo, como Night Watch, de Timur Kekmanbetov. Os filmes, contudo, embora internamente fossem relativamente bem em termos de mercado,  não “pegaram” no exterior. Faltava-lhes algo, seja por causa de um tratamento demasiadamente “eslavo” dado aos temas, seja pela interpretação dos atores, na qual não faltava um certo overacting dramático, seja, quem sabe, por uma concepção cinematográfica meio démodée





De outro lado, sabiam os que se aproximavam do cinema como um fato cultural importante que a Rússia sempre fora uma escola de talentos, desde Eisenstein e Dziga Vertov. Temas e histórias não também faltavam. Mas transformar tudo isso em bom cinema e que, além disso, desse lucro era outra coisa. Havia, de outro lado, a questão dos jovens cineastas  que queriam experimentar,  fazer um cinema que não fosse considerado como um simples entretenimento coletivo. 
           


Entenda-se: o grande público russo hoje, por causa dos indefectíveis ventos da globalização, é, como todos os demais, ávido de “novidades” e vem se ocidentalizando rapidamente, ou seja, adotando péssimos hábitos consumistas. Basta um passeio pelas ruas e avenidas de Moscou e das principais cidades do país, ir aos seus centros comerciais, restaurantes, lojas, casas de espetáculos, os lugares mais visitados pelo grande público, para se constatar o que aqui se expõe. 

ALEKSANDR   SOKUROV
Dentre o grupo de jovens realizadores a que me referi (talvez não tão jovens assim) há uns poucos que vêm procurando fazer o que aqui denominamos de cinema de autor. Eles vêm procurando abrir o seu caminho e, ao mesmo tempo, conviver com alguns estrelados diretores, como Aleksandr Sokurov, Nikita Mikhailov e Marlen Khutsev, uns até oriundos da antiga URSS, como os dois últimos, já que Sokurov, é o primeiro dos diretores pós-soviéticos. Procuram esses jovens
NIKITA    MIKHAILOV
fazer um cinema que nos fale não só de certas peculiaridades tradicionais da cultura russa, afirmando-as, apesar das pressões globalizantes do mercado, como discutir as questões da interioridade do homem, seus problemas no mundo moderno, suas dúvidas e suas angústias, seus conflitos com um passado recente. 


Depois da perestroika, como se sabe, as salas dos cinemas russos foram quase que totalmente ocupadas por filmes norte-americanos. O cinema russo era considerado pelo grande público
MARLEN   KHUTSEV
como chato, aborrecido, uma velharia, qualificações aplicadas mesmo aos novos filmes produzidos. Em 2010, quase uma centena de profissionais da indústria cinematográfica russa produziu um texto agressivo contra o presidente da União dos Cineastas russos, Nikita Mikhailov (muito próximo de Vladmir Putin), protestando contra o eterno problema, a questão do “dirigismo” das subvenções estatais.


Um destes novos diretores independentes, ainda muito mal conhecido no ocidente, inclusive nos meios cinéfilos, é Aleksei Fedortchenko, nascido em 1966, em Sol-Iletsk, na região de Orenburg. Cursou engenharia e economia no Instituto Politécnico do Ural, indo depois para a Sverdlovsk Film, trabalhando na produção de filmes e se encaminhando para o cinema documentário. Aliás, foi com um falso documentário realizado em 2005 que ele conseguiu o seu primeiro prêmio, no Festival de Veneza. O filme, que tem o título O Primeiro sobre a Lua, nos mostra, segundo a ideia do fake, aquilo que teria sido o lançamento, em 1937, de um engenho espacial habitado em direção da Lua, mantido no mais absoluto segredo pelas autoridades soviéticas. 


ALEKSEI   FEDORTCHENKO  

Fedortchenko faz parte de um grupo de talentosos autores que formam aquela geração que emergiu da perestroika, Karen Charkhnazarov, Aleksandr Sokurov, Pavel Lunguine, Aleksei Guerman (recentemente falecido), Serguei Bodrov, Andrei Zviaguintsev dentre outros. O mais conhecido e ativo deles para nós é Sokurov, que inclusive esteve no Brasil, em 2002, no Festival Internacional de Cinema de São Paulo, sendo, na oportunidade, muito homenageado. São esses cineastas que, de certo modo, vêm retomando, com o seu cinema, uma estética pessoal, que Tarkovski e Paradjanov defendiam isoladamente nos tempos da Rússia soviética.

O problema destes cineastas de talento é o mesmo que, no ocidente, autores de mesmo nível, encontram: fazer um cinema sem concessões ao box office. Quando penso nisto, não me refiro ao Brasil, onde a cultura cinematográfica é praticamente nula e a realização de filmes continua sendo uma aventura, no geral sufocada por uma crônica falta de recursos. Penso também nos problemas semelhantes que cineastas norte-americanos e europeus encontram ao pretender fazer um cinema fora dos chamados padrões hollywoodianos. 


MIKHAIL   KRITHMAN
Em 2010, Fedortchenko, com o filme Silent Souls, exibido na França com o título Le Dernier Voyage de Tanya, ganhou, no Festival de Veneza, o prêmio de melhor fotografia (Mikhail Krithman) e uma menção especial do Júri da Imprensa. Além disso, levou Silent Souls prêmios no Festival do Filme do Oriente-Médio, realizado em Abu Dhabi, e no Festival de Mar del Plata, todos em 2010. No mesmo ano, o filme foi exibido em São Paulo, no Festival Internacional de Cinema, e, em 2013, entrou no circuito normal da cidade (cine Sesc), com breve permanência. 


Quanto à receptividade ao cinema de Fedortchenko, à época, com relação à crítica oficial (jornais e revistas) e aos meios cinéfilos, pode-se dizer que ela não foi muito boa, mediana, se podemos assim dizer. Quanto ao público, praticamente nada, como sempre. Já no que diz respeito às lamentáveis bobagens espalhadas na Internet (comentários) sobre o filme, o melhor é esquecê-las. Hoje, passados quase quatro anos desde que apresentado no Festival de São Paulo, retomo minhas ligações com Almas Silenciosas tendo em vista o filme Celestial Wives of Meadow Mari, de 2012, do mesmo Fedortchenko, que vi recentemente. 

Uma primeira coisa a se dizer sobre Almas Silenciosas é que o seu reconhecimento internacional ganha importância maior se soubermos que o filme não recebeu nenhuma subvenção, pois a Roskino (Comissão Cinematográfica da Federação Russa), sucessora da antiga Goskino (Comissão de Estado Soviética para o Cinema) só viu pornografia no filme.

Quanto ao aspecto formal, já se disse que o filme é um road-movie: Miron, diretor de uma fábrica e Aist, um fotógrafo, acompanham, em sua última viagem a esposa do primeiro, falecida na véspera. Eles vão, num carro, a um lugar onde os esposos haviam passado a sua lua-de-mel. Sabe-se que os três, mais o guarda rodoviário que os deixa passar sem questioná-los muito, são mérias, uma minoria étnica, depositária de antigas tradições, cujos descendentes ainda vivem na bacia do rio Volga, cerca de 600 km. de Moscou.

O título do filme em russo é Ovsyanki,  nome de um pequeno pássaro muito comum na Rússia,  parecido com o pardal, que faz o seu ninho no solo ou dele muito próximo. Numa entrevista concedida ao jornal francês Le Monde, em novembro de 2010, Fedortchenko nos informou que, a partir de elementos históricos comprovados, ele realizou o filme com o objetivo de mostrar uma outra Rússia, a das tradições pagãs e o modo pelo qual essas etnias, a Méria, no caso, estabelecia as suas  relações humanas, anteriormente à dominação da ortodoxia religiosa dominante hoje. Segundo ele, a história da Rússia pré-cristã sempre foi muito negligenciada. O problema não é só russo, diz ele, pois a cada ano que passa mais desaparecem os traços de etnias como a Méria em todo o mundo. 

Antes da conquista eslava, em torno do ano 1000, o centro da Rússia era habitado pelo chamado povo Méria, um povo fínico, que falava uma língua fino-úgrica, de onde saíram o finlandês, o estoniano e o carélio. Ainda hoje, como se pode constatar na Finlândia e na Estônia, de modo especial na capital desta última, Talin, algumas das tradições apontadas por Fedortchenko no seu Celestial Wives estão presentes na vida dos estonianos de hoje. Na Finlândia, a Universidade de Helsinki tem uma área multidisciplinar destinada exclusivamente ao estudo das tradições e da cultura do povo Méria, no qual estão envolvidos arqueólogos, historiadores e linguistas. Os mérias são encontrados também na própria Finlândia e na Estônia, conforme antigos documentos (mapas) dos séculos iniciais do primeiro milênio o comprovam.  


POVO    MÉRIA

Sob o ponto de vista religioso, o povo Mari ou Méria (cerca de 600 mil pessoas só na Rússia, conforme censo demográfico), pratica uma espécie de animismo, acreditando que a natureza exerce uma influência mágica sobre as pessoas. Os mérias sempre procuraram sacralizar as suas relações com o mundo natural, sendo seu panteão constituído por deuses dos elementos (terra, água, fogo e ar) e uma divindade suprema que vela por tudo. Admitem também a existência de semideuses que podem viver na terra. No séc. XVI, seu território foi incorporado ao império russo, durante o reinado de Ivan, o Terrível. A maior parte da população méria faz parte da Igreja Ortodoxa Russa, embora muitos continuem praticando sincreticamente os chamados ritos pagãos.

Há hoje em andamento, patrocinado veladamente ou não pelo governo, um processo de russificação do povo Méria. Este, por seu lado, procura organizar, com dificuldades, formas de preservação cultural, nas quais vêm se envolvendo intelectuais da Finlândia, da Estônia e da Hungria. A partir de 1991, o povo Méria formou uma associação denominada Ochmari/Tchimari (Mari branca/Mari Pura) que tem por finalidade última a manutenção de seus cultos e ritos pagãos, uma forma de combater a russificação.

Os costumes e as festas do povo Méria têm dois temas principais: o mundo natural e as relações do ser humano para com ele, de um lado, e, de outro, o culto dos ancestrais. A Terra é a Grande-Mãe e a água é o Grande-Pai. Os cultos e ritos são realizados em florestas, rios e lagos, em lugares isolados. A comunicação com os deuses é estabelecida principalmente em três grandes datas, no início da primavera, do verão e do outono. Todas as cerimônias e festas são acompanhadas por música, sendo o gusla (uma espécie de violão), a cornamusa e o tambor os três instrumentos mais usados. 

O filme de Fedortchenko, segundo o ponto de vista da crítica russa e europeia, ora é considerado como uma espécie de guia das tradições do povo Méria (seu aspecto documental), ora como uma fantasia  sobre essas tradições, uma liberdade que seu realizador tomou indevidamente. A grandeza do filme para mim está exatamente nesta mistura de realismo e fantasia. A viagem dos dois homens tem um caráter ritual: o corpo da mulher de Miron deve ser cremado na floresta e suas cinzas espalhadas num rio. Depois da cremação, na viagem de volta para casa, o carro com os dois homens cai acidentalmente no rio e ambos morrem. O filme é narrado pelo espírito de Aist. Seria então esse filme apenas uma fascinante fábula sobre o amor e a morte, cujo roteirista e diretor, para contá-la, se aproveitaram das tradições de um povo desaparecido? Um conflito entre a espiritualidade oficial, representada pela Igreja Ortodoxa Russa, e a “pornografia” das tradições pagãs, como viram os burocratas dos ministérios?  A utilização condenável de uma respeitável tradição para um diretor dar vazão a uma discutível estética cinematográfica?

Poderíamos ficar por aqui se Fedortchenko não tivesse apresentado a seguir o seu Celestial Wives of Meadow Mari (2012), premiado em Roma, Toronto, Sofia e Wroclaw (Polônia), este último um dos mais conhecidos festivais de cinema da Europa, bastante prestigiado. O filme de Fedortchenko veio anunciado como uma coleção de retratos, de vinte e três pequenas histórias sobre as mulheres do povo Méria, uma crônica que traz à luz um mundo natural,  subterrâneo, misterioso, marginal, maldito certamente se nos aproximarmos dele com uma visão patriarcal. Diante desse filme, que fala de sentimentos, de emoções e de aflições do coração, a inteligência se sente às vezes meio perdida. Como classificá-lo? Alguns, à falta de melhores argumentos, o aproximaram do Decameron, de Boccaccio. 





O Meadow Mari do título é uma das três regiões em que se divide o território do povo Méria; essa região fica na margem esquerda do rio Volga. O título poderá ser então traduzido: As Celestiais Mulheres dos Prados de Mari. O filme opta decididamente pelo mundo feminino, identificando a mulher como a detentora da força vital universal. Com ele, entramos num mundo de valores matriarcais, de tradições comunitárias, de ritos celebrados em grutas e florestas, tudo muito bem captado pela fotografia de Shandor Berkeshi e sublinhado pela música do compositor Andrei Karasyov.