sábado, 1 de outubro de 2011

TARDE DE DOMINGO N º 2 (CONTO)




ILUSTRAÇÃO  DE  A. G. LIZZARRAGA


lá perto das câmaras frigoríficas, o Sol quase que derretera totalmente os blocos de gelo que haviam ficado no chão; enquanto isso, a água continua a escorrer pelo sulco dos ladrilhos sem encontrar qualquer obstáculo, percorrendo alguns centímetros, trinta, quarenta, no máximo, e depois despenca na sarjeta, onde vai formando poças, para, dali, vencendo as gretas da lama ressequida, vergando a minúscula vegetação que se agarra à pedra, ora retrocedendo, ora avançando, precipitar-se mais adiante numa boca-de-lobo com a certeza de fim alcançado;
acima, na calçada, retangulares, idênticos em tamanho e na inscrição vermelha que os recobre, duas letras A em vermelho, os caixotes, a mesma alça de corda em todos, esfiapada nas pontas, formam um estreito corredor com o gradil do mercado de peixe; foram empilhados desordenadamente, invadindo a calçada, mas não chegam a impedir, mesmo assim amontoados, que alguns raios do Sol atinjam o interior do edifício envolvido pela semiobscuridade; entre uma pilha e outra notam-se pequenas aberturas; assim vistas de longe lembram portas escancaradas por onde os feixes luminosos penetram para projetar nas paredes do fundo grandes medalhões de luz que ressaltam a brancura dos azulejos e evidenciam as manchas que a prolongada ação da umidade vem formando; mais à frente, os refrigeradores testemunham silenciosamente o sono de um gato que dorme enroscado no prato de uma balança;
a não ser o rádio ligado e o toldo, que levantaram, nada mudou de posição no bar no outro lado da praça, nem os ruídos aumentaram; os homens e as coisas permanecem nos seus lugares habituais, os jogadores de dominó discutem talvez algum pormenor da partida, comentam uma sena bem lançada ou, quem sabe, decidem qual deles pagará a próxima rodada de cerveja ou, ainda, combinam um encontro para o domingo seguinte, para todos os domingos seguintes, colados àquelas mesmas cadeiras, alisando aquele mesmo mármore azulado com veios brancos, planejando, rindo às vezes, o cigarro barato pendurado nos lábios, enquanto fora os prenúncios do crepúsculo tentam vencer a barreira de luz;
o Sol prossegue na sua lenta caminhada pelo claro azul transparente do céu, arrancando agora reflexos mortiços da água estagnada da Bacia; aqui e ali, como crivos de luz por onde se filtra o esquecimento das marés, peixes mortos cintilam entre restos de matéria em decomposição, o esqueleto de um caixote, mais além, semienterrado no lodo, intercepta momentaneamente os meandros azulados que o óleo desenha na superfície escura da água;
as sombras se alongam, a silhueta dos barcos imóveis ainda está recortada com nitidez, o frontispício dos velhos sobrados que circundam a praça, colunas, pinhas, frisos, florões, tudo se debruça em formas arredondadas sobre ao declive da rampa; no outro extremo, atrás dos armazéns, os braços inertes de dois guindastes deixam entrever uma chaminé branca que começa a deslizar suavemente, depois uma bandeira agitando cores que a distância não permite decifrar, visíveis por um momento, logo desaparecem, encobertas por grossos rolos de fumaça;
o mendigo volta a aparecer, dirige-se ao outro bar onde há pouco o saudaram, ou antes lhe fizeram um apelo para que entrasse, fica um momento à porta, parecendo não querer entrar, acaba depois por entrar, discute com o empregado que limpa as mesas ensebadas, os outros intervêm e ouve-se alguém gritar URSO; riem todos, isso, riem todos, inclusive o empregado e o cozinheiro que apareceu e agora enxuga as mãos no avental encardido, riem sem que o mendigo saiba das causas desse riso, provocadas talvez por algo que esteja ligado ao apelido; deve ser realmente assim, a palavra urso, além de incluir o homem, dá-lhe de uma maneira muito mais precisa não apenas uma identidade mas, sobretudo, certas e determinadas características que o integram no ambiente, longe de qualquer abstração que se possa fazer;
quilhas, cordame corroído, cascos, remos abandonados, os oito barcos nunca chegaram a perturbar a tranquilidade da tarde, nem mastros, nem marolas que proas distantes poderiam trazer transpõem a franja de limo que orla a pedraria da rampa; de vez em quando um peixe risca o espaço de prata para beliscar alguma coisa que não se pode ver; entretanto, com atenção, percebe-se que a água, junto da comporta, à entrada do canal, começa a se agitar, imperceptivelmente quase, agora um pouco mais, como se o mar fosse empurrado para dentro da Bacia, distinguindo-se ao mesmo tempo o barulho de um motor que um apito estridente mal permite captar; as marolas crescem, as cristas se empinam e à medida que se avolumam tudo trepida e vibra, os contornos se desfazem, a franja de limo desaparece, aparece de novo, torna a desaparecer, talvez definitivamente, enquanto o barco se aproxima da pequena ponte de atracação;
ou porque tenham terminado a partida ou porque o barco tenha chegado, coincidência ou não, os jogadores de dominó levantam-se, um pouco curvados ainda, os olhos semicerrados, despedindo-se de dois homens que estão numa mesa ao fundo; não se distinguem senão sombras, formas confusas, inexistentes certamente para quem não estiver próximo, trocam-se cumprimentos, mãos espalmadas, gestos largos, palavras, palavras que não ultrapassam uma área limitada, onde têm significação e são indispensáveis, onde possuem a certeza que as anima;
foi então que o bêbado saiu do bar, avançando um pouco inclinado pelo meio das mesas, cumprimentando na passagem, sem nenhum interesse, alguém que julgou reconhecer, um aceno apenas, atingindo depois a calçada; detém-se, ensaia alguns passos, um percurso mais longo, procura um ponto de apoio, muda bruscamente de sentido, rodopia em direção do poste, que abraça, larga-o, embaralha-se nos chinelos, caindo de costas;
manobrando com perícia, o barco encosta, não chegando, contudo, a esbarrar nos pneumáticos amarrados à ponte; salta um homem, veste camisa azul bastante desbotada, sobretudo nas axilas e nos ombros; bordadas ou costuradas na gola, em preto, ao que parece, duas âncoras, contrastando fortemente com o azul da camisa, permitem identificar o homem, precisar a sua atividade, situá-lo, enfim, num lugar determinado, numa zona de especialização o tanto quanto possível exata para quem conhece o trabalho e é afeito às coisas do mar; o homem dá alguns passos, hesita, finge consultar o relógio, sem sequer olhá-lo; ao fazer esse movimento, ergue a perna esquerda, tentando equilibrar-se no declive da rampa de pedras, escorrega, tropeça numa pedra; não se pode dizer se foi propositado ou por acaso, a pedra desliza e rola em direção à água escura da Bacia;
a mulata aproxima-se do local em que o bêbado caiu, vai devagar, o passo cadenciado, marcado por uma moleza irremediável; o tecido leve do vestido, um pouco brilhante, povoa-se formas abstratas, uma série de círculos que se ligam, que se interpenetram, uns vermelhos, outros azuis, notando-se o espalhafato do vermelho, uns laivos azulados, uma estranha massa líquida que se locomove;
o Sol começa a desaparecer, a poeira cintila mais frouxamente iluminada, um relâmpago estilhaça a quietude do céu, segue-se um estrondo, outro, escurece rapidamente, as áreas de luz se reduzem, desfazendo sombras, eliminando contornos, e eis que a chuva se precipita silenciosa, agora com violência, infiltrando-se, impondo a sua presença na cor que se respira em todo o céu feito de blocos cinzentos, leves, opacos, colados uns aos outros; a chuva engrossa, projeta-se com furor contra a parede descascada dos prédios, contra os vidros, contra a chapa de aço dos automóveis estacionados, ora num sentido, ora noutro, conforme o vento, varre os telhados, teimando sempre, insistindo, alagando;
o bêbado tenta escapar da chuva, debruça-se para a frente, rasteja, estica o braço, mostrando unhas muito rentes, escuras, cobertas por uma camada de óleo ou gordura; procura abrir os olhos, estabelecer talvez um inventário do seu reduzido campo visual, perturbado agora por aquela forma colorida que avança em meio à chuva em sua direção; cai de novo sentado, de encontro à parede, olhando a mulata com uma expressão na qual exista possivelmente mais angústia do que surpresa;
anoitece, o espaço da praça se limita agora a uma forma líquida repleta de formas líquidas, a umas casas acinzentadas, a uns reflexos avermelhados de algum luminoso nos paralelepípedos, onde se notam, em alguns, manchas escuras que a água não conseguiu desmanchar; um automóvel se aproxima, diminui a velocidade, pisca os faróis, o vermelho das lanternas traseiras se aviva ampliando a área de visibilidade, o automóvel chega mesmo quase a parar antes de avançar, primeiro cautelosamente, ganhando logo depois velocidade ao ultrapassar a curva do canal pata atingir o prédio do mercado em direção às grandes avenidas centrais;
o homem, a mulher e a criança, à espera de um barco provavelmente, refugiam-se sob o toldo do bar, um toldo de tecido grosseiro, sujo, com faixas coloridas, irreconhecíveis não tanto porque estejam desbotadas ou molhadas mas porque as vibrações da lona, provocadas pela violência do vento, cuja intensidade redobrou, impedem a vista de nelas se fixar; um halo furta-cor, bastante difuso, onde predomina o reflexo deformado dos objetos mais próximos, mesas, cadeiras, o ventilador do teto, a máquina de fazer café, que chamam de Soberana, pela marca, tudo se cola palidamente, de modo ondulante, à convexidade do vidro de uma vitrine que expõe doces velhíssimos sob o foco de uma luz fluorescente; o menino volta-se para a mulher apontando para a vitrine, a mulher o afasta, empurra-o, o menino insiste, a mulher se inclina para melhor ouvi-lo, repreende-o, olha para o homem, que não a olha, a mulher se apruma, ergue o braço e desfere um tapa que vai estalar na cabeça do menino, junto da orelha esquerda;
o homem não se impressionou com a cena, ou fingiu não se impressionar, continua como sempre esteve desde que chegou, encostado à parede, imóvel, a olhar a praça alagada, a encruzilhada distante, rua abaixo, até o fundo, lá no ponto em que aparece um bonde iluminado; ordena à mulher e à criança sempre atrás, uns três ou quatro passos, que o sigam, apesar da chuva; vai à frente, entra por uma rua bastante larga, caminha em silêncio, atento, observa as irregularidades do calçamento, recomenda de vez em quando cuidado à mulher, está tudo cheio de poças de água, escuras, oleosas, cheias de detritos; não há nele a mínima curiosidade, apenas o empenho de se conduzir da melhor maneira; dobra uma esquina, as formas se diluem mais sob a chuva, agora torrencial: a mulher desaparece, vê-se por uns momentos apenas o menino, que logo desaparece também;
um homem surge à porta do bar, parece ser o dono, levanta a cabeça para examinar o toldo, olha-o com curiosidade, experimenta a resistência das hastes de metal que o prendem à parede, dirige-se ao interior do bar, volta com um martelo, dá uma pancadas na caixa de ferro que contém as engrenagens, desaparece novamente; no bar não há mais ninguém, todos foram embora, a não ser o Urso, que tirita de frio numa mesa ao fundo; o homem olha-o, vai ao balcão, apanha um prato com umas sardinhas fritas, um pequeno copo e uma garrafa , dobra-se sobre a mesa onde está o mendigo, pousa o copo, ouve-se um estalo, a rolha salta do gargalo, o homem deposita o prato sobre a mesa e inclina a garrafa; o líquido avermelhado jorra, atinge a borda do copo, uns fios da bebida escorrem pelo vidro azulado, respingando o mármore da mesa; o mendigo fecha a mão, o braço ascende lentamente, segura o copo com inesperada firmeza e, por um breve momento, dá-se conta de que uma figura ovalada, com um rosto cheio de rugas, mostrando um sorriso desdentado, reflete-se no vidro; os lábios se aproximam da borda do copo, tomam contacto com o líquido, o sabor dilui-se pela boca, ao mesmo tempo que uma onda quente invade o palato, com um choque áspero, demorado;
há muito tempo que a praça está deserta, que não passa ninguém; os homens recolheram-se com certeza às suas casas, ouvem o rádio, vêm televisão, jogam cartas, brigam com as crianças, discutem com as mulheres, falam de futebol, comem, fabricam filhos, fornicam; depois, irão dormir, dando por terminado mais um domingo, enquanto a chuva continua a cair, insistente, alagando, correndo; alguns irão à janela e através das vidraças, entre bocejos, observarão as ruas desfeitas, mergulhadas num lago artificial; um pouco mais e não se verá mais nada, a não ser talvez, para os que prestarem atenção, ou se distraírem, um arquipélago de gotículas agarradas ao vidro, gotículas que sempre se renovarão enquanto persistir a chuva...