terça-feira, 26 de agosto de 2014

A GRANDE ILUSÃO*

               
1916. No “front” alemão, dois oficiais franceses, o capitão de estado-maior Boeldieu e o tenente da aeronáutica Maréchal estão presos num campo alemão. Seus companheiros de cativeiro são um professor, um engenheiro do cadastro, um ator e um judeu, Rosenthal. As diferenças de classe são esquecidas e a vida se organiza de maneira até mesmo agradável, graças à tolerância dos carcereiros. Apesar disso, como era natural de se esperar, todos os prisioneiros só pensavam na liberdade. 

Rosenthal e os dois oficiais são transferidos para uma fortaleza, comandada pelo junker von Rauffenstein, um aristocrata alemão à antiga. Ele trata com especial atenção o nobre aristocrata francês Boeldieu, mas faz com que uma disciplina rigorosa seja estabelecida. Ainda assim Maréchal e Rosenthal conseguirão fugir, graças à cumplicidade ativa de Boeldieu, que von Rauffenstein será obrigado a executar. Esgotados, os fugitivos serão abrigados durante alguns dias por uma camponesa alemã, antes de atravessar a fronteira suíça. 

O filme, de 1937, tem como diretor Jean Renoir, que assina também o roteiro, juntamente com Charles Spaak. Fotografia: Christian Matras. Música: Joseph Kosma. Elenco: Erich von Stroheim, Jean Gabin, Pierre Fresnay, Marcel Dalio, Carette, Jean Dasté, Dita Parlo, Gaston Modot e Sylvain Itkine. 


Oriundo de uma família de artistas, militando no cinema desde 1924, Jean Renoir (1894-1979) assumiu logo a posição de mestre
JEAN    RENOIR
da nova arte, demonstrando seu grande talento na adaptação de obras literárias, nas pesquisas de vanguarda, na sátira bufa e no melodrama social. Personalista, porque consciente do seu talento, foi um gênio na improvisação, sendo capaz de ir do sublime ao mais vulgar nas sequências que filmava com um mínimo de cenas. Atendo-se ao mais importante, sempre soube contar muito com uma surpreendente economia de meios, conseguindo, além disso, transitar por vários gêneros cinematográficos. 


Seus filmes são hoje considerados clássicos e alguns, dois em especial (A Grande Ilusão e A Regra do Jogo), estão obrigatoriamente na lista dos melhores filmes já realizados. O cinema de Renoir se encaixa naquela corrente que os críticos franceses chamaram de realismo poético, que marcou profundamente o cinema francês entre 1930 e 1950. Quando a nouvelle vague passou a dominar o cinema francês, a partir de 1960, o cinema de Renoir e outros de sua época (Carné, Clouzot, Duvivier etc.) foi, se não rejeitado, menosprezado, muito esquecido, subestimado. Com o tempo, porém, o cinema desses autores voltou com muita força, dando-se-lhe hoje um merecido reconhecimento. Renoir era filho do grande pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir. Seu ultimo filme, L`Année Sainte, data de 1976.

O realismo poético no cinema, saliente-se, apareceu ao mesmo tempo que o chamado realismo mágico nas artes plásticas. Este último, evitando o “realismo do banal”, propunha uma doutrina artística e literária que ficava a meio caminho entre o surrealismo e as teses realistas do século XIX. O realismo poético no cinema destacava o papel do roteirista, que muitas vezes era o autor da própria história. Os temas costumavam abordar a realidade socioeconômica da época “transfigurada”, valorizando-se as virtudes humanas, a camaradagem, a convivência do bairro, os bistrôs, os vieux quartiers e se condenando as guerras, o individualismo, a avidez do dinheiro, a insensibilidade das modernizações...

Dentre os principais filmes produzidos dentro dessa corrente, destacamos: Toni (Jean Renoir, 1935), A Quermesse Heroica (Jacques Feyder, 1936), Hotel do Norte (Marcel Carné, 1938), Cais das Sombras (Marcel Carné, 1938), O Fim do Dia (Julien Duvivier,
JACQUES   PRÉVERT
1939), Trágico Amanhecer (Marcel Carné, 1939), Boulevard do Crime (Marcel Carné, 1945). Grande parte da notável qualidade dos filmes da corrente deve ser creditada aos roteiristas, dois em especial, Charles Spaak e Jacques Prévert, este um dos maiores poetas da França, autor das letras das melhores canções modernas, além de cineasta, agitador cultural, criador de espetáculos etc. 


Realizou Renoir 9 filmes mudos e 27 falados. Acompanharam-no na parte técnica de A Grande Ilusão figuras excepcionais como
JOSEPH    KOSMA
o citado Charles Spaak, roteirista, Christian Matras, grande fotógrafo, e Joseph Kosma, nome importante da música europeia. Kosma fez todo o tipo de música, inclusive para o cinema e teatro. Sua música acompanhou textos de Raymond Queneau, Jean-Paul Sartre e Louis Aragon, dentre outros. Trabalhou com Brecht em Berlin. Duas canções suas (música) são consideradas como as mais belas do repertório francês no gênero, Barbara e Les Feuilles Mortes (letras de Jacques Prévert).


Outro grande nome do cinema está no filme de Renoir, Erich von Stroheim(1885-1957). Austríaco de nascimento, destacou-se como ator e em 1914 já estava em Hollywood. Como diretor, realizou o inesquecível Greed (1924), obra-prima do cinema mudo, e A Marcha Nupcial, além de outros. Um de seus últimos e grandes papéis no cinema foi o de Max von Mayerling em Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses), no qual trabalhou com a “diva” Gloria Swanson, do cinema mudo, filme dirigido por Billy Wilder, outro austríaco emigrado.

Pierre Fresnay (1897-1975) é o aristocrata francês em A Grande Ilusão. Igualmente grande no teatro e no cinema, participou de mais de 60 filmes. Nos últimos anos de sua vida atuou na TV e dirigiu com sua mulher, a atriz e cantora Yvonne Printemps, o Teatro de la Michodière, em Paris.

Jean Gabin (1904-1976) iniciou a sua carreira no cinema em 1931 e nos trinta anos seguintes foi considerado o maior ator do cinema francês, fazendo sempre muito sucesso diante do público feminino. Era perfeito para filmes de mistério e policiais, nos quais atuava tanto como policial ou bandido. Ficou célebre como o inspetor Maigret, na série baseada na obra de Georges Simenon. Dentre seus grandes filmes, destacamos: A Grande Ilusão, A Besta Humana, O Gato, A Última Noite, A Virgem do Reno etc. 

Marcel Dalio (1900-1983) foi um dos atores preferidos de Jean Renoir, tendo participado de muitos de seus filmes. Nos anos
MARCEL   DALIO
quarenta, já conhecido ator da França, conseguiu escapar dos alemães (era romeno de origem judaica) e chegou a Hollywood. Apareceu em dezenove filmes nos USA. Muito citada é a sua participação em Casablanca, no qual trabalhou também sua mulher, Madeleine Lebeau. Depois da guerra retornou à França, trabalhando em alguns filmes. Em 1955, voltou aos USA para participar de uma série (Casablanca) para a TV. Desde então, sua carreira se dividiu entre França e USA. 


DITA    PARLO
O primeiro filme de Dita Parlo (1906-1971), polonesa de nascimento, Volta para Casa, é de 1928. Popular no cinema alemão, na década de 30, atuou também na França, onde se destacou por dois filmes L´Atalante (1934) e La Grand Illusion (1937). Foi para Hollywwod, mas lá não se adaptou. Com a eclosão da segunda guerra mundial, retornou à Alemanha, participando de poucos filmes. Voltou ao noticiário recentemente quando a cantora Madonna declarou que Dita Parlo sempre exerceu sobre ela um grande fascínio, o mesmo declarando uma famosa atriz do teatro burlesco, Dita Von Tesse, que a homenageou ao adotar artisticamente o seu nome. O último filme de Dita Parlo foi La Dame de Pique, de 1965.

Renoir e Spaak nos mostram em A Grande Ilusão que sua geração, a de 1914, foi duramente marcada pela guerra, pela prisão, pela mistura e pela abolição de classes sociais. Eles procuram exprimir as suas crenças na igualdade e na fraternidade humanas, indo além das fronteiras e das limitações impostas socialmente, das lutas fratricidas, para nos mostrar que os combatentes podem continuar a ser homens.


BOELDIEU    E    VON   RAUFFENSTEIN

Jean Renoir, que participou da primeira guerra mundial como piloto, baseou-se para fazer o filme numa história que lhe foi contada por outro piloto francês, seu amigo, capitão, de nome Pousir. Tendo sido preso pelos alemães sete vezes, ao longo da guerra, conseguiu Pousir fugir sempre. Afinal, como declarou o próprio Renoir, a guerra de 1914 a 1918 foi uma guerra de gentlemen e a Alemanha nazista ainda não existia...   

As fronteiras, como o filme deixa claro, são uma abstração absurda, os nacionalismo uma ilusão perigosa. Mas a esperança numa paz duradoura também o será, sem dúvida. Quanto ao amor, nada mais que uma pausa momentânea, uma breve trégua na tormenta. Esta é a regra do jogo social e individual. Não esqueçamos que os filmes de Renoir e de outros diretores do realismo poético foram realizados, principalmente, entre as duas grandes guerras do século XX.

A riqueza do filme está sem dúvida nessa ambiguidade ideológica e na sutileza com que a filosofia e a estética do decadentismo são apresentadas através do diálogo entre os dois aristocratas. Eles serão, como concordam, “demais” na nova sociedade, depois de terminada a guerra. Não haverá mais lugar para eles. Esse filme, talvez único na história do cinema, nunca pode, por isso, ser reivindicado pela esquerda “progressista” ou pela “direita reacionária”. Um filme de características universais!

No ano de 1938, A Grande Ilusão ganhou prêmios em todos os festivais internacionais. Sua mensagem era simples: numa guerra, todos são perdedores. Toda guerra é uma connerie, como diz Prévert. Por isso, A Grande Ilusão é um dos filmes mais anti-belicistas da história do cinema, tendo sido banido da Alemanha desde 1938 e declarado por Goebbels como “O inimigo cinematográfico nº 1” do nazismo. Os nazistas fizeram buscas na Europa inteira para destruir o copião (matriz) do filme, e chegaram a acreditar que o tivessem conseguido. Um negativo completo, porém, foi descoberto em Munique em 1945, restaurando-se depois o filme, em 1960, sob a supervisão do próprio Renoir. Não foi por acaso que Orson Welles,  um  dos  gênios  do cinema, declarou que 
Grande Ilusão era o filme que ele gostaria de ter feito...

Para os que quiserem mais, recomendo que procurem na série francesa Cinema de Notre Temps o documentário de Jacques Rivette (1967) Jean Renoir, le Patron. 


* Apresentação do filme A Grande Ilusão - Ciclo de Cinema realizado no MUBE, em 2010/2011 para Lita Projetos Culturais.