segunda-feira, 27 de abril de 2015

MOLIÈRE NO CINEMA

                           

       


Si Versailles m'était conté (1954), de Sacha Guitry, Louis, enfant
roi (1993), de Roger Planchon, e Le Roi Danse (2000), de Gérard Corbiau, são filmes que indiretamente fazem referência a Molière e ao seu teatro. Especificamente sobre o autor de L´Avare temos apenas um, o film - fleuve de    Arianne Mnouchkine, de mesmo título, lançado na França, em agosto de 1978, apresentado no festival de Cannes do mesmo ano, com 4h10m de duração. Com essa duração, não era evidentemente um
filme para circuitos comerciais, nos quais foi exibido e, por isso, logo retirado. Molière deu-se melhor na TV, onde foi apresentado em 1980, em cinco partes de uma hora cada uma delas. Com isto, foi alcançado um público bem maior e o nome de Arianne Mnouchkine, só conhecido nos meios teatrais, começou a circular entre o grande público. A estas informações, para os que quiserem mais sobre Molière, não podemos deixar de acrescentar a notícia da edição do coffret de 17 DVDs com as melhores peças dele encenadas pelos Comédiens-Français entre 1997-2003, do qual fazem parte o livro Molière, de autoria de Christophe Oury, e o livreto La Maison de Molière, que trata das relações de nosso autor com a Comédie Française. 



LA   COMÉDIE   FRANÇAISE  -  PARIS


Até Molière, sabia-se apenas nos meios cinematográficos que Arianne, além de diretora de um grupo teatral, era filha de Alexander Mnouchkine, russo de origem judaica, emigrado, produtor de cinema desde 1945. Fundara a Films Ariane e já produzira filmes de Jean Cocteau, Christian Jacques, Claude Lelouch e outros. 

ARIANNE   MNOUCHKINE
Com um ideal na cabeça, partindo praticamente do nada, Arianne, com o seu grupo do Théâtre du Soleil, a essa altura já bem conhecido, se meteu, no final da década de 1970, numa empreitada única na história do cinema: realizar, como seu primeiro filme, uma superprodução sobre um tema de pouco apelo comercial, principalmente pelo tratamento dado à matéria fílmica, ao mesmo tempo edificante e pedagógico. As cifras do milionário orçamento, o investimento na pesquisa (500 máscaras, 800 figurinos), a grande quantidade de participantes (300 figurantes) eram de espantar mesmo diretores tarimbados. Para a realização do filme, a Cartoucherie de Vincennes, na periferia de Paris, sede do grupo teatral, foi transformada numa espécie da Cinecittà felliniana. 




Os principais atores do filme, membros do grupo, participaram intensamente da sua realização, levando para o cinema a forma cooperativa de atuar que usavam nos seus espetáculos teatrais, a chamada SCOP, sociedade cooperativa de produção. Phillippe Caubière fez o papel de Molière. De fora, na base do entusiasmo, vieram figuras de grande destaque do teatro francês como Jean Dasté (no papel do avô de Molière), Roger Planchon (no papel de Colbert) e Daniel Mesguich (no papel de irmão do rei). 


   INTERVALO   DE   REPRESENTAÇÃO   NA   CARTOUCHERIE   

Seduzidos por entrevistas de AM e pelo que viram na Cartoucherie, quando as filmagens estavam nos seus preparativos, gente do métier, como Claude Lélouch e seus técnicos, e do mundo do dinheiro, Antenne 2 (sociedade pública governamental produtora de programas de TV), aceitaram coproduzir o filme. Significativa também foi a colaboração financeira de Monsieur Mnouchkine, pai de Arianne, quando o orçamento começou a estourar.

O Théâtre du Soleil é uma experiência única e vitoriosa mundialmente. O grupo foi organizado como uma cooperativa operária: todos os seus membros recebem o mesmo salário e são pagos do mesmo modo, participando igualmente de seu funcionamento, todos desempenhando em esquema de rodízio papéis nos espetáculos como atores, diretores, produtores de textos, iluminadores, maquiadores, cenógrafos, e também, no mesmo esquema, atuando em funções administrativas, inclusive logísticas (cozinha, limpeza, suprimentos, bilheteria etc.).  



LA   CARTOUCHERIE   DE   VINCENNES



Desde 1970, o grupo está instalado na referida Cartoucherie de Vincennes, nos arrabaldes de Paris, um antigo entreposto militar abandonado. Os espetáculos, mesmo revisitando os clássicos do repertório teatral, são sempre engagés, isto é, decididamente politizados, didáticos, com forte coloração popular, mas sempre conduzidos de modo excepcional pelo seu apuro e inventividade. 


O filme de AM nos descreve como um jovem, nascido em 1622, numa modesta família de tapeceiros, tornou-se um ator prodigioso e um autor aclamado universalmente. AM insere o jovem Jean-Baptiste Poquelin, dit Molière, na sua época, dando-nos dele e de seu tempo, como alguém com propriedade a definiu, uma visão dépoussiérée (desempoeirada), que nada tem a ver com aquelas em que a maioria dos historiadores da literatura e produtores de teses universitárias procuraram encerrá-los. 

Em que pesem algumas inserções da contracultura hippie (amor livre, banhos nus coletivos, revolta de estudantes), que estão certamente na formação e na origem do trabalho de AM, não chegam elas em absoluto a desmerecer o filme, sempre excepcional. Entenda-se: AM faz parte daquela geração que nos anos 70 procurou fazer um teatro em locais diferentes, expandindo os seus tradicionais limites, dele fazendo o público participar. Até hoje, a cada ano, as montagens nos surpreendem, sempre presente, que seja utopicamente, a visão do teatro como uma aventura coletiva que pode, à sua maneira, mudar o mundo.

Nestes tempos em que a intelectualidade moderna vem procurando, nos seus textos, há muito, substituir as interpretações histórico-sociais pelas de natureza psicologizante, o filme de AM é salutar. O melhor que podemos falar sobre o filme é que ele, a par da excepcional direção de atores, nos oferece, como poucas vezes o cinema o fez, uma estupenda reconstituição histórica da vida de um personagem sob o chamado Ancien Régime, com a sua arquitetura, seus décors, seus figurinos e objetos de época.


OS   NÁUFRAGOS   DA   BOA   ESPERANÇA

Para se compreender melhor os objetivos do Théâtre du Soleil, tanto com relação à montagem de seus espetáculos como no que diz respeito aos DVDs que produziram, vale a pena, por exemplo, tomar conhecimento do que o grupo fez recentemente com Os Náufragos da Boa Esperança, filme dirigido por AM, lançado pelo SESC, no Brasil, baseado numa criação coletiva do grupo, escrito em parceria com Hélène Cixous, com música do genial one-man-show Jean-Jacques Lemètre, livremente inspirado em um romance póstumo de Jules Verne.


JEAN - JACQUES   LEMÈTRE  

Ao trabalho de AM e aos DVDs da Comédie Française sobre Molière, eis que, recentemente, uma pequena obra-prima foi acrescentada, lançando mais luzes sobre a vida e a obra de Molière e provando que cinema e teatro podem funcionar juntos. Refiro-me ao filme Alceste à Bicyclette (Pedalando com Molière, no Brasil), de Phillippe Le Guay, apresentado em 2013, com Fabrice Luchini, Lambert Wilson e Maya Sansa nos papéis principais.  O roteiro do filme é de Phillippe Le Guay e de Fabrice Luchini. A direção de fotografia, a montagem e a música ficaram, respectivamente, por conta de Jean-Claude Larrieu, Monica Coleman e Jorge Arriagada. Pela direção de arte responderam Lionel Mathis, Tatiana Vialle e Etienne Rohde. 


FABRICE   LUCHINI   E  LAMBERT WILSON

No filme, Gauthier Valence (Lambert Wilson) é um ator de cinema e TV de sucesso. Para provar a si mesmo e ao grande público que é bom de fato, resolveu montar uma peça teatral, Le Misanthrope, de Molière. Dirigiu-se então à Ilha de Ré, na costa da Normandie, na esperança de convidar para um dos papéis principais seu grande amigo e famoso ator, Serge Taneur (Fabrice Luchini), que há vários anos vivia retirado e recluso na referida ilha, numa velha casa que herdara de um tio. 

Desgostoso com a falsidade do mundo e cansado da vida teatral que execrava, feita só de traições, Taneur interrompera sua carreira de

sucesso e vivia isolado, na ilha. Não queria em hipótese alguma voltar aos palcos. Contudo, admirador da peça de Molière, Taneur, aos poucos, vai se deixando tentar pelo convite, pela perspectiva de assumir o papel de Alceste, mesmo que tivesse que alternar este papel com o de Filinto, o outro personagem. Os dois amigos se reúnem várias vezes para discutir a peça, a composição dos personagens e outros detalhes técnicos de interpretação, conhecem-se, um choque de egos inteligentes e cheios de malícia como poucas vezes se viu no cinema. 


Gauthier Valence tem uma bela estampa, é alto, espadaúdo, célebre, mundano, trabalha na TV numa série de muito sucesso, fazendo papel de um neurocirurgião. Por isso, é capaz de encontrar patrocinadores para a sua empreitada com relativa facilidade. A participação de Taneur, por quem experimentava até um certo reconhecimento por tê-lo ajudado no início de sua carreira, daria sem dúvida muita classe à montagem, conferindo-lhe, além disso, um excepcional nível cultural. 

Taneur, como o filme deixa claro, é, como ator, bem melhor que Gauthier. Isto fica evidente quando vemos os dois discutindo o texto de Molière, o sentido que se ocultava nos alexandrinos, a
BERNARD   PIVOT
melhor maneira de dizê-los. Fabrice Luchini, aliás, neste filme interpreta o papel de um personagem que se parece muito com ele na vida real, como, ao longo dos anos, veio demonstrando em diversos filmes em que atuou e sobretudo nas suas participações em programas de TV (no saudoso Bouillon de Culture, com Bernard Pivot, foi notável). O ator (Taneur) e o personagem (Alceste) se identificam perfeitamente. Taneur, além de misantropo que despreza os gadgets do mundo moderno, desde telefones celulares a banheiras jacuzzi, acima de tudo preza os clássicos, é culto, hipercrítico, refinado, sua dicção é perfeita.  


Em meio às discussões sobre Le Misanthrope, passeios de bicicleta pela maravilhosa ilha (onde Luchini tem uma casa na vida real) e encontros com a bela italiana por quem o misantropo Taneur abre a sua guarda, o filme nos demonstra, dentre outras coisas, como dois
LAMBERT  WILSON  E  FABRICE  LUCHINI

grandes atores, virtuoses do diálogo, podem transmitir a beleza clássica da língua francesa. Neste particular, com o beneplácito de Le Guay, o diretor, é que Taneur e Luchini se identificam. Em ambos, a mesma lucidez que não pode aceitar a mediocridade que hoje, realçada pelos chamados efeitos especiais oferecidos pela tecnologia, toma conta da maior parte da produção cinematográfica. Efetivamente, nada tão longe de Hollywood, com os seus galãs patolas, como Taneur e Gauthier de Pedalando com Molière. 

Com o filme de Le Guay, a obra de Molière ganha uma outra dimensão na medida em que cinema e texto se completam. Nas mãos de um bom diretor, como se demonstra, é possível fazer bom cinema e falar ao mesmo tempo de literatura, de amor às palavras, de versos alexandrinos bem colocados, de poesia, de ver vida inteligente na tela, tudo aquilo que nos garante enfim que Pedalando com Molière jamais será visto por descerebrados.


FABRICE   LUCHINI

Dentro deste enfoque, não é possível deixar de ressaltar a posição de Fabrice Luchini no moderno cinema francês, um ator que há muito divide esta atividade com o teatro e a declamação de textos (La Fontaine, Nietzsche, Louis Ferdinand Céline, Valéry, Barthes e outros). Sua grande paixão é, sem dúvida, o teatro, “o único lugar onde a vida se exprime, o alimento da vida, aquilo que nenhuma escola poderá ensinar”, como ele mesmo diz. Autodidata assumido, histriônico (só os grandes atores podem ser histriônicos), Luchini, como o Taneur do filme, é para muitos um narcisista. Prefiro vê-lo como um egotista. Esta palavra, egotismo, lembre-se, foi criada por Stendhal. Adotada pela filosofia contemporânea, egotismo designa a análise que alguém efetua sobre si mesmo com o objetivo de refinar os seus sentimentos para melhor aproveitá-los, gozá-los. É, em suma, a procura de um aperfeiçoamento individual como regra principal de conduta. Quem o cultivou, avant la lettre, por exemplo (sempre os franceses!), foi Montaigne, que nos seus admiráveis Ensaios nos fala do prazer estético que uma pessoa pode obter quando procura o autoconhecimento como regra principal de conduta.