quarta-feira, 1 de julho de 2015

UM HOMEM DIGNO (CONTO)


ILUSTRAÇÃO   DE  LÚCIO   MENEZES

Fechou as gavetas, acendeu um cigarro e ficou à espera do sinal. Cinco minutos para ir embora. Cinco intermináveis minutos. Olhou a mesa, o cinzeiro, os papéis, sentindo-se exausto e vazio. O fim de um dia de trabalho. A boca amarga de tanto fumar, a língua parecendo lixa dentro da boca. De uns tempos para cá, o estômago. Umas dores, uma queimação, hérnia de hiato, minha sogra tem, dissera-lhe o Gomes. Precisava mesmo consultar um médico, qualquer um do plano de saúde; se conseguisse arrancar uma licença, aí por uns dez, quinze dias, até que seria bom. O pior é que amanhã vencia mais uma prestação da casa, cinquenta parcelas já saldadas, quatro anos e dois meses, e ainda faltavam mais trinta, uma roubalheira, uma arapuca aquele financiamento da Caixa. Mas até que fora bom pensar na casa. Uma licença viria mesmo a calhar. Consertar o portão da frente, o muro, aquela parte lá dos fundos, a dobradiça do portão foi afrouxando, afrouxando, os parafusos saindo, a madeira apodrecendo, que agora estava cai não cai, ah, não esquecer também aquela goteira da cozinha, que já não aguentava mais o falatório da mulher em dias de chuva. O médico compreenderia a sua situação, explicaria, nem precisaria fazer cara de vítima. Sorriu quando seus olhos deram com a máquina de escrever semiportátil no fundo do armário, eta máquina boa!, uma Olympia dos bons tempos, a “alemã”, como a chamava.  Mais de vinte anos com ela, fazendo bicos, que sempre ajudavam a entrar algum, clientela escolhida, doutores, gente de algumas empresas, dactilografando, com c, isso mesmo, serviço perfeito, sem uma rebatida, e ainda dava o papel e duas cópias. No fundo, o seu único orgulho, algo meio besta, reconhecia, mas orgulho, sim. Agora, ali estava ela. Vendê-la, quanto?, quanto?, uma ninharia, sem dúvida. O que precisava era levá-la, vendê-la rapidamente. Com os computadores, hoje, talvez só aquelas oficinas do centro se interessassem. Com um computador iria faturar bem mais e com menos trabalho, diziam-lhe, já pressentindo as gozações de que certamente seria vítima, pois, como a Luizinha lhe jogara na cara, pai, computador não é pra gente velha como você, esquece... que horror aquela menina lhe causava, petulante, achando que virou mulher, dezessete anos, com aqueles peitinhos empinados estourando a blusa, e depois aquelas pernas, Santo Deus, que pernas!, a quem puxara?  

Estremecia só em pensar, aprender a lidar com o monstro, fazer um curso, quando um profundo mal-estar o invadiu, mergulhando-o num estado de aflição, a respiração entrecortada. Quantas vezes não relutara, olhando as vitrines das lojas de informática, horas e horas, sem se atrever a entrar, sentindo-se ridículo, imaginando as perguntas que faria, tomando ares de entendido, fazendo uma cara que escondia um pouco seu ar desanimado e, sobretudo, a sua ignorância. No fundo, reconhecia, mais que a sua ignorância, o que havia mesmo era a profunda má vontade que o tomava quando começava a pensar nessas coisas de computador. Quantas manhãs, ao sair de casa, não dissera a si mesmo que daquele dia não passava. Mas era só um empregado da loja se aproximar e deixava para o dia seguinte, fazendo de conta que estava interessado em outra coisa e não em computadores. Lembrou-se da cara de idiota que fez naquele dia em que, sem notar, um empregado se aproximou e foi surpreendido por um convite que ele lhe fez, venha, venha, o senhor não se arrependerá, os nossos preços, como é mesmo o seu nome, são imbatíveis. Que ousadia a do cara, ao lhe perguntar como era mesmo o meu nome, demonstrando um à vontade no falar que o pôs fulo de raiva. Não suportou aquele mesmo que ele usou ao fazer a pergunta, como mesmo se nunca lhe revelara o seu nome, que peito! que sujeito confiado! Teve, como gostava de dizer, repetindo o pai, uma vontade enorme de lhe ir às fuças. Para não se odiar mais, diante de todos esses mal-entendidos que essa história de aposentar a “alemã” e comprar um computador estava criando, começou, nos últimos dias, a inventar desculpas, justificativas, subterfúgios, a desconversar, quando em casa a mulher, com ar de interesse, mas, no fundo, agressiva, metendo o dedo na ferida, sim, lhe perguntou, como é? Compra ou não compra?  Ao mesmo tempo, como agora, nestes intermináveis cinco minutos, não conseguia deixar de pensar nos empregados das lojas, eles já deviam andar desconfiados desse seu jeito de olhar as vitrines. Meses nesse compra-não-compra. Com certeza pensariam que...e, por acaso, não tinham um ar inofensivo os ladrões mais perigosos? Já perdera a conta das noites em que, insone, ficara a pensar na imagem que passava para o pessoal das lojas, lembrando-se dos olhares, dos risinhos.

Mas daquele dia nunca se esqueceu, quando saindo de uma loja, uma voz o apanhou pelas costas. Estremeceu, voltando-se assustado. À sua frente, um rapaz de aspecto agradável, todo mesuras, bem falante. Pegando-o pelo braço, aconselhava-o a aproveitar a oportunidade porque no mês que vem, devido à variação do dólar, como ele devia saber, não só os computadores, mas tudo de informática sofreria um grande aumento. O negócio que ele estava lhe propondo era IR-RE-CU-SÁ-VEL! IR-RE-CU-SÁ-VEL! Além do mais, estava não só autorizado a lhe fazer um grande desconto como também a dividir o pagamento como pudesse pagar, pois esse era o lema da casa, “pague como puder”, em prestações suaves, sem juros, sem mais nada, como o senhor já deve ter visto na televisão. Estela não disse nada quando o computador foi entregue. Nem uma palavra. Apenas um olhar, o mesmo olhar de sempre. Por que se casara com ela? 

Enquanto o sinal não tocava, reparou nas paredes da sala. Aqui e ali, nos lugares descascados, pequenas manchas, sulcos, buracos de pregos nunca fechados, a folhinha da Tipografia Guarany, onde um dia, quando criança quis trabalhar, marcas que várias demãos de tinta não apagaram, como conhecia tudo aquilo muito bem! Seria capaz de apostar que poderia localizar cada mancha e buraco de olhos fechados. Só que não gostava de fixar as paredes por muito tempo. Não podia. As cores começavam a evoluir para tonalidades estranhas, como que dançando, cores que não existiam, ficava um pouco tonto, enjoado. Como sempre, no fundo da sala, sentado solidamente na sua Giroflex último modelo, o chefe lia a página esportiva do jornal vespertino que comprava todo dia. De vez em quando, certamente mais por cacoete profissional, levantava os olhos para ver se tudo ia bem. Detestava aquela expressão dele, sabida, cretina, injustificada. Vinte e oito anos a suportar aquele tipo, vinte e oito anos, quem diria! 

Trinta anos de casamento, envelhecia, a mulher envelhecia também. Lembrou-se do primeiro dia de trabalho naquele escritório, na Secção de Cobranças do Departamento Financeiro. Quando chegou, era um tipo magro, bigodinho fino, meio desnutrido, de óculos desde os nove anos. Chegara com uma carta de apresentação do padre Roque, da Escola Santo Ignácio, na sua melhor roupa, um terno de brim caroá que herdara do irmão mais velho, um tecido tão áspero que quase lhe punha as pernas em carne viva. Conformou-se, a mãe lhe dizendo que era roupa para toda a vida, que mais tarde poderia comprar o que quisesse. Trabalharia ali até conseguir coisa melhor, apenas para obter um pouco de prática. Moço, tinha ambições, sonhava. Faria um curso noturno. Mas os anos foram se passando e o emprego melhor não veio. Depois, depois, desistira. E ficara ali naquela sala saturada de silêncio, de cochichos dissimulados, no meio daquela gente que só pensava em mega-senas, a dactilografar, a escrever, a anotar, a fazer cálculos. Chegara a subchefe do Setor de Controle Bancário. Feito um balanço provisório, achou-se um homem digno, afinal, era respeitador, sempre de terno escuro e, ainda que, às vezes, com camisas de punhos puídos, desmazelo da mulher, sem dúvida, puro relaxamento, punhos que sempre procurava esconder dentro da manga do paletó quando pegava uma camisa assim.  Cinquenta e dois anos, ainda magro, de olhos mortos e inexpressivos, atrás daquelas lentes grossas, dedos amarelecidos pela nicotina, fumando Continental, um pigarro eterno, fazendo não só seus serviços de dactilografia para fora como, ainda, seu maior orgulho, dando alguns palpites, trabalhando na revisão dos textos. Tinha umas letras, comprara ao longo da vida alguma coisa, conhecia um pouco os clássicos da língua, a gramática lhe era familiar, não tudo mas o que sabia dava para o gasto. Lembrava-se, com orgulho, de algumas leituras, dos portugueses especialmente, que gostava de citar, Garrett, Camilo, Eça, este apesar de meio desbocado, Júlio Dinis, e, quanto aos nacionais, sentia-se meio contra-corrente, pois gostava bem mais do esquecido Lima Barreto do que do badalado Machado. O prazer maior estava nos dicionários, no Antenor Nascentes, no Caldas Aulete, no Morais Silva, no Laudelino Freire, no Aurélio. Sorriu. Apesar de tudo, achava-se um sujeito razoavelmente bom, um homem que amaria os outros homens se não fosse obrigado a desconfiar de todos.

Contemplou as paredes mais uma vez, com raiva crescente, enquanto tirava uma baforada de outro cigarro que acendera. Irritou-se consigo mesmo porque se deixara, desarmado, surpreender pelo olhar do chefe. Como detestava aquele homem! Seu jeito de andar, suas unhas polidas, seu ar de gigolô antigo, suas roupas, seu ar empolado e pretensioso. Dos primeiros tempos, só restava o Gomes. Mas hoje mal se falavam. Não tinham mais nada a dizer. A vida os igualara e emudecera. O Gaspar, coitado, resistiu até o ano passado. Três meses de aposentadoria e um derrame o levou. Com os outros colegas não se dava, só o mínimo profissional. Na maioria, uma garotada atrevida com quem não queria saber de familiaridades. Cortara logo, não admitindo mais que os cumprimentos de praxe, que a boa educação pede. Nada mais.

E um dia se casara com Estela, os filhos vieram. Não é que o Artur já estava fazendo o cursinho para o vestibular de Administração de Empresas! Haja dinheiro! A Luizinha e o Flávio também, como dragas, engolindo dinheiro, sempre mais, mais! Depois, aquela mania da Estela, enfeitar a menina, vá lá que ela seja bonita, isso ela é, como poucas, com aqueles peitinhos empinados, mas ela só vive falando de festas, de roupas, comprando, comprando, é demais! Lembrou-se do computador. Com ele, tinha certeza de poder faturar um pouco mais para os extras da família. Olhou as mãos sem saber o que fazer com elas, mãos brancas, corpo branco, nunca pegara um bronzeado na vida. Como o Flávio rira na praia, ele, todos. Pudera, vestir aquele maiô antigo de lã, a Luizinha dizendo que não queria ir, que tinha vergonha. Sabia que ela o achava ridículo. Tinha razão, pensando bem, ridículo. Magro, branquelo, de óculos, totalmente fora de moda. Um pai que não se usa mais. Inventara uma desculpa para não ficar perto deles na praia, uma besteira qualquer, vou até ali e já volto, ir aonde?, se não havia nenhum lugar para ir. Mas foi, saiu andando, achando-se cada vez mais ridículo. A primeira coisa que fez ao chegar perto das pedras foi sentar na areia e ficar tomando sol. As pálpebras semicerradas, saboreando um cigarro. Pôs-se a olhar o mar, as barracas coloridas, as mulheres. Ah, o corpo das mulheres! Quando a bola branca riscou o azul do céu viu a mulher loira. Bela como jamais vira outra, mulher de sonho, de cinema. A carne querendo saltar do maiô de duas peças, o riso despreocupado dos maravilhosos dentes brancos. A praia era agora uma imensa boca escancarada, a boca dessa mulher loira. E depois havia também aquele jeito dos rapazes de óculos escuros, a naturalidade das meninas seminuas. A praia decididamente era deles; sentiu-se totalmente deslocado, mais do que nunca no velho maiô de lã. Vontade de estar em outro lugar, no escritório, em casa. Ali, não existia. Deitou-se finalmente de olhos fechados na areia, vencido, esperando a insolação. Desejou acabar ali de uma vez por todas, misturar-se àquela areia que lhe picava as costas. Ao abrir os olhos, Flávio, ao seu lado, olhava-o estranhamente. Estela o chamava. Não viu mais a mulher loira.

A mulher loira... estremeceu quando o sinal rompeu o silêncio. O chefe dobrou o jornal, continuando sentado. Pose, pose de chefe, cretino!. Não atinou porque ele ficava à espera de que saísse. Amassou o cigarro no cinzeiro, pegou a máquina de escrever, deixando escapar um até amanhã indiferente ao se encaminhar para a porta. O elevador estava no décimo andar. Apertou o botão, nada. Não gostava do ascensorista. Mulatinho confiado, atrevido. Devia estar conversando, prendendo a porta em algum andar. Nove, oito, sete, seis, a porta se abriu e ouviu o grito: lotado! Resolveu descer pelas escadas. Cinco andares, não era muito. Quando chegou ao térreo, as pernas tremiam. Realmente, envelhecia. Pensou, então, já na rua em tomar um trago antes de entrar na fila do ônibus. Não que fosse amigo da bebida, mas de vez em quando gostava. Um, dois, no máximo três. Depois, então, para casa.

Pediu um conhaque pequeno. Quando aquele gosto forte lhe bateu no palato, teve a impressão exata naquele momento de que a bebida era a coisa mais importante do mundo. Que ele e o cálice eram uma coisa só. Levou-o aos lábios, virando-o de uma só vez. O conhaque desceu queimando a garganta, enquanto os olhos ficavam úmidos. Envergonhou-se da fraqueza. Tentou disfarçar um pouco. Certamente a bebida o deixara vermelho. Um resfriado também. Tossiu, tosse forçada, de garganta, ao mesmo tempo que um forte calor inundava-lhe o corpo. Como se bolinhas de fogo corressem pelas veias. Sensação gostosa, de calor, de força. Pediu mais um. Enfim, que diabo!, uma vez ou outra não fazia mal E, depois, conhaque no frio até que faz bem. Já estava no quarto quando uma mulher entrou e, aproximando-se, lhe disse coisas porcas. A sua primeira intenção foi afastá-la, ela quase que lhe metia a língua no ouvido, afastá-la. Queria que ela desaparecesse. O gesto cresceu dentro do peito, a mulher falando, falando. Um grito, não, um soco, um punho enorme sobre a cabeça dela e pronto. Mas o gesto não saiu. No lugar, apenas, diante do sorriso debochado do rapaz do bar, a resposta vaga de sempre. Hoje tinha um compromisso, não podia, estava mesmo atrasado. Achou-se estúpido e vazio quando a mulher foi embora, chamando-o de velho veadão. Não conseguiu indignar-se... 

Saiu somente depois do décimo conhaque. A cabeça girava. Postes, árvores, luminosos, as buzinas, tudo incomodava insuportavelmente. Sentia-se muito mal, a cabeça rodopiando. Por um instante lamentou... Não, não lamentava nada. Bebera, e daí? Que importava? Cair na rua? Que caísse! Pela primeira vez na vida a realidade lhe parecia diferente. As ruas, a mesma paisagem percorrida e cansada, tudo perdia o sentido da evidência. Foi então que os seus olhos bateram no cartaz colado no vidro da porta de entrada do cinema. Nele viu a mesma mulher loira da praia, uma imensa boca a rir. Uma vontade de encostar os lábios naquela boca, que aqueles braços se fechassem... A vista começou a ficar turva, o estômago queimava. Pressentindo o tombo, procurou equilibrar o passo; agarrou a máquina de escrever, a alemã, com toda a força das suas mãos. Alguns metros e entraria na fila do ônibus. Começou a falar umas coisas ininteligíveis, deu um encontrão num sujeito que ia passando, foi empurrado, tentou se defender, pensou em Estela, na loira da praia, no Gaspar, no namorado da Luizinha, nos seus peitinhos, pisou o pé de uma mulher que estava à sua frente, a mulher começou a gritar, palavrões pra cá, safanões pra lá, a fila se desfazia, uma angústia insuportável parecia arrebentar-lhe o peito. Nem percebeu quando a máquina de escrever lhe escapou das mãos e, com violência, alcançou a cabeça da mulher que gritava. Um murro o fez cambalear. O segundo jogou-o no chão. Já no asfalto, os pontapés o atingiam no peito, nas costas, na cabeça. Um líquido quente misturava-se na sua boca aos dentes partidos, era um homem digno, tentava dizer, mas nada conseguia, alguns sussurros apenas, ninguém ouvia ninguém, só mais gritos, empurrões e pontapés. Não adiantava explicar àquela gente, um homem digno, digno, lembrou-se dos dicionários, digno queria dizer honrado, decente. Baixou os olhos, viu a camisa manchada de sangue. Tentou levantar-se. Mas a dor profunda de um pontapé na cabeça o pôs novamente no chão. Ouviu alguém dizer que a mulher parecia morta. Batiam-lhe muito. Quando rolou para a sarjeta já não sentia mais nada. A lama manchava-lhe toda roupa. As pancadas, agora, já não tinham a menor importância. Ficaria ali, até que tudo terminasse, quieto, sem fazer qualquer esforço, sem reagir, não adiantava explicar àquela gente que era um homem digno afinal de contas. 

Estela e os filhos foram ao hospital visitá-lo. Não os reconheceu.