quarta-feira, 15 de abril de 2015

O ÓDIO

A sinonímia deste sentimento que nos leva a querer mal a alguém e nos causa alegria com o mal que lhe acontece é vasta. Ele pode se manifestar de várias maneiras. Anda sempre na companhia de outros sentimentos, igualmente intensos, dominadores, como a inveja, o ciúme, o medo... Lá no fundo, todos sabemos, mais ou menos claramente, que o ser humano odeia o que lhe causa incômodo, desprazer, qualquer tipo de sofrimento. Como fenômeno da vida afetiva, o ódio é algo que se impõe. Por isso, é preciso reconhecer que não temos ódio, mas, ao contrário, é ele que nos tem, sempre uma paixão, como sobre ele falaram Santo Agostinho, Montaigne ou Descartes.

Muitas vezes, ouvimos: tenho ódio. Mas ódio de quê, de quem? Embora tenhamos aprendido, desde a infância, a distinguir os sentimentos positivos e elogiáveis dos socialmente negativos e reprováveis, quanto mal já não fizemos e continuamos a fazer por causa das várias formas de ódio que alimentamos inconscientemente, de um modo disfarçado, escondido ou recalcado. Todos os que escreveram sobre o ódio, filósofos, sociólogos, teólogos, psicólogos, religiosos, escritores, ou simplesmente os que o vivem e sobre ele falam, são unânimes na afirmação de que a energia desse sentimento é tão poderosa que pode transformar inteiramente a vida de quem é possuído por ele. Ele vive dentro das casas, está em todos os relacionamentos humanos, paira nas ruas, invisível, veloz, e é contagiante como um vírus. 

ÓDIO NA LITERATURA

Na literatura, encontramos exemplos bem claros do ódio contra o indivíduo que tem coragem de ser diferente dos demais. Cito aqui um romance francês famoso, O Estrangeiro, de Albert Camus, escrito em 1942, que Luchino Visconti transformou em filme, com Marcello Mastroianni no papel principal. O personagem-título, Meursault, acusado de ter matado um árabe, é condenado, não pelo assassinato em si, mas por ter agido sempre de maneira inusitada, isto é, ao longo de sua vida não agiu como a sociedade esperava que agisse segundo os papéis que desempenhava, inclusive o de assassino. Por exemplo, no enterro da mãe, não chorou, não demonstrou aparentemente nenhuma emoção, a emoção que um filho, em circunstâncias como essa, deveria demonstrar. Interrogado, quando da morte do árabe, declarou não ter sentido nenhum remorso, nenhum arrependimento. Sua justificativa: talvez o calor e a luz forte do Sol o tenham levado a matá-lo. Primeiro um tiro e depois mais quatro, no corpo já morto. Por estes exemplos e, principalmente, por sua indiferença, a acusação o considerou um misantropo perigoso, um ser antissocial, que deveria ser executado para que não voltasse a dar semelhantes exemplos à humanidade. No final da história, o capelão da prisão tentou convencê-lo, antes de sua execução, de que ele deveria se reconciliar com Deus. Nada conseguiu.     

ÓDIO NA FAMÍLIA

Irmão é aquele que com relação a alguém é filho do mesmo pai e da mesma mãe. Neste caso, temos os chamados irmãos bilaterais ou germanos. Irmãos consanguíneos serão os irmãos só por parte de pai, sendo as mães diferentes. Irmãos uterinos têm a mesma mãe e pais diferentes. Gêmeos são os irmãos que nascem do mesmo parto. Irmão de criação é aquele que convive com um que descende diretamente dos genitores e ele não, sendo com ele criado. Colaços são os irmãos de leite, sendo filhos de genitores diferentes.


Siameses são os que nascem ligados fisicamente. Quaisquer que sejam as situações, a História registra casos de irmãos que se agrediram, que se mataram. Ódio, muito ódio entre eles. Temos, por exemplo, o caso de José e seus irmãos. Filho de Jacob, patriarca bíblico, e de Raquel, José, sendo preferido pelo pai, os irmãos, dez ao todo, tentaram matá-lo, jogando-o num poço cheio de serpentes e escorpiões. Acabou sendo vendido como escravo a Putifar, no Egito, tendo conseguido resistir ao assédio da mulher dele, Zuleika. No cinema, um dos melhores filmes sobre o tema é Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti.

O ódio entre os gêmeos, entretanto, parece ser o mais perturbador. Em todas as culturas e mitologias encontramos histórias sobre os gêmeos e o ódio que sentem um pelo outro. O fenômeno dos gêmeos sempre colocou, desde a antiguidade, o problema da ambivalência, exprimindo uma oposição entre forças da luz e forças das trevas. Simbolizam eles, no fundo, a própria dualidade do ser humano, as suas oposições internas e o conflito que devem enfrentar para superá-las. Caim e Abel, Rômulo e Remo, Esaú e Jacob são exemplos clássicos destas oposições. Inúmeras histórias apresentam os gêmeos como antagonistas, um bom e outro mau, este último sempre criando obstáculos para perturbar a ação do outro. 


CAIM  E  ABEL

ÓDIO PARA CRIANÇAS

Branca de Neve, muitos se esquecem, não é de Walt Disney. Ela nos vem de um conto de fadas europeu, aproveitado pelos Irmãos Grimm. Jovem princesa, a mais bela de todas, inocente, vê os males do mundo. Por isso, é maltratada por sua madrasta ciumenta, que deseja ser a mais bela das mulheres na terra. Por sua bondade natural, por sua pureza, Branca de Neve é protegida pelos animais da floresta e pelos Sete Anões.

A madrasta: 


- Gênio do espelho meu, vinde do espaço profundo, e dizei se há no mundo mulher mais bela que eu.
- Você é bela, mas Branca de Neve é mais bela, respondeu o espelho mágico que só falava a verdade. 
- Maldita. Eu me vingarei, conclui a madrasta.

Um conflito piegas entre a Maldade e a Bondade? Ou, simplesmente, por mais que teorizem os psicólogos, ideologicamente uma concessão disfarçada do poder patriarcal ao matriarcado?   

ÓDIO NA FILOSOFIA

Empédocles foi um filósofo grego que viveu lá pelos 450 anos aC. Figura excêntrica, orgulhoso, andava com a cabeça coroada de flores, arrastando multidões atrás de si que o procuravam para ouvir os seus discursos. Diz a história, ou lenda, que, para conferir as explicações sobre a origem do universo que propunha, a chamada teoria dos quatro elementos, atirou-se na cratera do vulcão Etna. Para ele, os quatro elementos estavam na origem de todas as coisas. Quando misturados, tínhamos os nascimentos, com a separação
EMPÉDOCLES
tínhamos a morte. Para Empédocles, a mistura e a separação dos elementos provinham de duas atividades; o Amor (Filotes) e o Ódio (Neikos). A primeira unia os elementos e a segunda os separava. A vida universal transcorria entre essas uniões e separações no decorrer do tempo, umas uniões durando mais, outras menos. A multiplicidade da vida cósmica se compunha num todo, sempre eternamente igual, a que ela chamava Esfera. Na Esfera divina todos os elementos estavam unidos pelo Amor, permanecendo o Ódio fora, circundando a Esfera. Em determinados pontos da Esfera, devido à ação do Ódio, os elementos se separavam, dando origem à diversidade dos seres. O Amor, por seu lado, procurava reconstituir o todo perdido, conciliando os elementos. Isto explicaria porque tantas e sempre novas criações aparecem no universo. Para Empédocles, a existência individual dos seres é sempre obra do Ódio. Assim, se temos na composição de um ser, por exemplo, Fogo e Terra, podemos buscar no outro, para um melhor equilíbrio, os elementos que faltam, Ar e Água. Um será assim o mestre do outro. Um aprendendo com o outro e deixando de se ver, como normalmente acontece, como antagonistas, irritando-se e agredindo-se constantemente. 

ÓDIO NA POESIA

Charles Baudelaire (1882-1867) – Desde cedo, como ele mesmo o reconheceu, sempre se sentiu um solitário. Além disso, um revoltado com relação à humanidade e, em especial, com relação à sua família (a mãe casara-se em segundas núpcias), que escandaliza por causa de sua vida desregrada, boêmia. Inadaptado, sempre alimentou um profundo spleen, agravado por uma angústia mórbida, mesclada por um ódio difuso contra o mundo. Traduziu tudo isso em versos. Numa série que publicou (1865) na famosa revista literária Revue des Deux Mondes, sob o título de As Flores do Mal, o primeiro poema tem o título de Prefácio, que traduzimos: 

A idiotice, o erro, o pecado, a avareza, 
Ocupam nossos espíritos e agem em nossos corpos, 
E nós alimentamos nossos amáveis remorsos, 
Como os mendigos alimentam a sua vermina. 

Nossos pecados são persistentes, 
nossos arrependimentos são fracos, 
A todos os nossos desejos atendemos fartamente, 
E retornamos alegremente ao caminho enlameado, 
Acreditando com lágrimas mentirosas 
lavar todas as nossas manchas. 

Sobre o travesseiro do mal está Satã Trimegisto 
Que acalenta longamente nosso espírito encantado, 
E o rico metal de nossa vontade 
Se evapora todo por obra deste sábio alquimista. 

É o Diabo que detém os fios que nos movimentam! 
Nos objetos repugnantes encontramos atrativos; 
A cada dia em direção do Inferno descemos um passo, 
Sem horror, através das trevas que fedem. 

Mas entre os chacais, as panteras, as cadelas, 
Os macacos, os escorpiões, os abutres, as serpentes, 
Os monstros vociferantes, uivantes, guinchantes, rastejantes 
Na morada infame dos nossos vícios, 

Há um, mais feio, mais maligno, mais imundo! 
Embora ele não faça grandes gestos nem dê grandes gritos, 
Ele faria da terra, de bom grado, um monturo 
E, num bocejo, engoliria o mundo: 

É o Tédio! O olho pesado de um choro involuntário, 
Ele sonha com cadafalsos enquanto fuma seu huka. 
Tu o conheces, leitor, este monstro delicado 
-Hipócrita leitor,- meu semelhante, - meu irmão!

ÓDIO NA MITOLOGIA 

O ódio pode ser provocado pelos mais diversos sentimentos, inveja, insegurança, ciúme etc. Sob este último aspecto, a história de Fedra é exemplar. Princesa cretense, por razões políticas, uniu-se a Teseu, rei de Atenas, que tinha um filho, Hipólito, de uma união anterior. Assim que o viu, Fedra foi tomada pela paixão. Hipólito, belíssimo jovem, entretanto, consagrara-se a Ártemis, deusa virgem, e evitava qualquer contacto com sua madrasta, apesar de sua insistência. Repudiada e temendo que Hipólito revelasse algo a seu marido, Fedra resolveu se vingar. Rasgando as suas vestes, simulou que fora atacada sexualmente pelo jovem. Teseu, temendo cometer alguma violência contra o filho, pediu que seu pai divino, o deus Poseidon, resolvesse a questão. Ao se afastar de Atenas, numa estrada, os cavalos do carro que Hipólito conduzia, assustados pelo ataque de um monstro marinho enviado por Poseidon, se precipitaram no mar, matando o jovem príncipe. Cheia de remorso, Fedra se suicidou, deixando, porém, uma carta ao marido, na qual incriminava Hipólito, insistindo na mentira de que tentara violentá-la.          

ÓDIO COMO VIOLÊNCIA COLETIVA


Um dos principais ingredientes da psicologia das multidões no capítulo da violência coletiva é o ódio. E ele o responsável tanto pelo arrebatamento como pelo sentimento de agressividade que se apossa em determinadas ocasiões dos grandes grupos humanos como as multidões, O linchamento é um dos aspectos deste ódio. O ódio acionado coletivamente provoca o dogmatismo, a intolerância e traz também a ideia de irresponsabilidade, pois todos o sentem. O ódio dá unanimidade; como todos são culpados, ninguém é culpado. O ódio, nesta perspectiva, é um sentimento simples, extremado, intenso. Ademais, opera por contágio. No linchamento, é um gatilho que, quando disparado não há como voltar atrás.


Linchar é executar sumariamente, sem julgamento regular e por decisão coletiva, um criminoso ou alguém suspeito de sê-lo. É a chamada lei de Lynch, que apareceu nos USA como um instrumento de justiça dos brancos racistas. Quase todas as vítimas de linchamento eram negras. Quem a instituiu, ao final do séc. XVIII, foi um fazendeiro da Virgínia, William Lynch. Criminosos apanhados em flagrante, muitas vezes forjado, eram sumariamente liquidados. Existe uma copiosa literatura sobre o linchamento, tanto histórica como sociológica e jurídica. Distinguem-se dois tipos de linchamento. Um é bem ordenado, limpo como o chamavam os especialistas, praticado por gente rica, limitado o castigo apenas ao criminoso, O outro é o chamado coletivo, praticado por grupos, no qual podem tomar parte várias pessoas; é desordenado, difuso, e pode gerar outras formas de violência muitas vezes incontroláveis, como incêndios, quebra-quebras etc. 

ÓDIO EM FREUD 

Segundo Freud, o ódio é uma paixão que visa à destruição do seu objeto. Ódio e destruição caminham juntos. Quando odiamos, queremos, no fundo, destruir. Essa vontade de destruição está associada a objetos ou seres que sejam fonte de uma sensação de desprazer, de dor, de sofrimento para nós. Pessoas próximas ou distantes, familiares, podem merecer todo o nosso ódio. O ódio não admitido por um parente volta-se geralmente contra a própria pessoa, muitas vezes na forma de uma culpa autopunitiva, somatizações. O masoquismo, nesse caso, é outro companheiro do ódio. Masoquismo, como sabemos, é um comportamento, inclusive sexual, através do qual uma pessoa tem necessidade de sentir dor e humilhação para obter alguma coisa, algum prazer. Chega esse comportamento às vezes ao sadomasoquismo, fazer sofrer e sofrer ao mesmo tempo. Como exemplo, Freud cita casos de ódio entre mãe e filha, na luta mais ou menos explícita que ambas podem travar para serem amadas pelo pai, de forma exclusiva; o ódio entre irmãos ou irmãs, na luta pelo amor parental, etc. 

Freud insiste na tendência inata à maldade, à agressão, à destruição, à crueldade. Socialmente, isso, para ele, é desastroso, já que o homem satisfaz sua aspiração ao gozo, a viver bem, segundo esse entendimento, à custa do seu próximo. Para viver em sociedade, É necessário renunciar a toda essa agressividade, o que nem sempre se consegue. Procura-se então um derivativo que receba a carga destrutiva que acumulamos. Este derivativo pode ser buscado fora da comunidade, do país, da classe social, exportado etc. “Criam-se” inimigos para receber toda a agressividade recalcada. Isto pode acontecer internamente, também. “Alguém precisa ser satanizado”. 

Um exemplo disto é o tema universal do bode expiatório, que nos vem desde a mais remota antiguidade. Elegemos um bode expiatório, que passa a receber todo o nosso ódio. Projetamos nele toda nossa culpa a fim de tranquilizar a nossa consciência, que sempre tem necessidade de um responsável, de uma punição, de uma vítima. Sacrificado o bode expiatório, nos aquietamos, ficamos tranquilos, pelo menos por uns tempos. Um dos melhores exemplos do que aqui se fala está nas touradas. Como não sabemos lidar com a nossa besta interior (a nossa vida instintiva), mas, para mantê-la intocada, montamos um espetáculo de sangue, violência e morte para que alguém, o toureiro, no qual nos projetamos, se encarregue, em nosso nome, de matá-la simbolicamente numa arena através do sacrifício de um touro. 

Lembramos que a tradição do bode expiatório é universal e funciona em ambientes familiares, em locais de trabalho, na vida escolar, nos meios de comunicação de massa, na política, onde quer que pessoas se agrupem para fazer alguma coisa. É muito usada por pessoas, grupos sociais ou pela própria sociedade como um todo, que nada faz, para projetar a sua culpa (a sua inércia, o seu comodismo, o apego aos seus privilégios, a sua hipocrisia e a sua má-fé etc.) e aquietar a sua consciência que sempre tem necessidade, como se disse, de um culpado, de um castigo e de uma vítima.

ÓDIO NO TEATRO

Do Misantropo, de Molière: 

Filinto: Você deseja um mal tão grande à natureza humana?
Alceste: Sim, tenho por ela um ódio terrível.

Este estranho ódio a todos os homens fará com que Alceste decida se retirar do mundo. Fugir para um deserto. O misantropo é um atrabiliário. Um certo tipo de biles  negra o torna melancólico, mal humorado, resmungão, queixoso e chato. Dir-se-ia, talvez, em francês, um emmerdeur. Sua missão é reformar o mundo, pois, para ele, os homens são falsos, patifes, hipócritas, bajuladores. Alceste é uma espécie do pai da virtude, que, com razão em muitas coisas, só abre a boca para pregar moral, para criticar, denunciar, e sempre com ódio.

ÓDIO E A LÍNGUA GREGA

Os antigos gregos possuíam dois radicais (morfemas) para formar palavras que encerrassem a ideia de ódio, temor, repugnância, raiva ou aversão intensa. São eles phob e mis/miso. O primeiro tem relação com phobos, nome que encerra ideias de espanto, temor, ódio, medo, exasperação, inquietação, pânico, de pôr em fuga. O radical grego phob (fob) aparece em palavras terminadas em fobia, que se distribuem em três grupos: a) palavras indicando hostilidade sofrida por um grupo humano: xenofobia (aversão, ódio ao estrangeiro (xenos, estrangeiro, em grego); b) palavras indicando uma aversão natural com relação a um outro ser ou matéria, elemento: homofobia, aversão à homossexualidade (homo, o mesmo, semelhante, em grego); hidrofobia, aversão à água (hidr+o, água, em grego); c) palavras indicando uma aversão, uma angústia doentia, experimentada em certas situações: claustrofobia, medo, aversão, horror a lugares fechados (claustra, do latim, fechamento); gefirofobia, medo de atravessar pontes e viadutos (gephyra, ponte, em grego).


ARES

 Uma ligação mitológica: Ares, deus da guerra, era, entre os antigos gregos, o mais odioso dos imortais. Seus apelidos: bebedor de sangue, flagelo dos homens, deus das lágrimas, belicoso. Como toda divindade, possuía um séquito barulhento, ruidoso, que sempre o acompanhava. Dele faziam parte várias figuras sinistras e violentas como as Keres, divindades infernais, cruéis e sanguinárias, que viviam nos campos de batalha; Eris, a deusa da discórdia, muito presente nos tribunais; Enio, a devastadora, cujos gritos eram aterrorizantes; Deimos e Fobos, gêmeos, filhos que tivera com Afrodite, o primeiro representando o Terror e o outro o Horror. Ambos não têm representação no mito, não há histórias sobre eles. Sempre acompanharam o pai, bastando a sua simples presença para provocar os sentimentos que personificavam. 

O radical mis/miso vêm do verbo misein, odiar. Em português, esse radical nos deu, por exemplo, misogamia (miso + gamos, união, casamento), aversão ao casamento; misoginia (miso + gyné, mulher), aversão a mulheres; misologia (miso + logos, palavra, lógica), aversão à lógica, à arte do raciocínio; misoneismo (miso + neos, novo + ismo, qualidade, doutrina, sistema), aversão ou desconfiança com relação a mudanças, a inovações; misopedia (miso + paidos, criança, filho) aversão a crianças, filhos; misosofia (miso + sophos, conhecimento), aversão, ódio ou desprezo pelo saber, pela ciência; misodemia (miso + demos, povo), ódio ao povo, aversão às coisas populares; misoponia (miso + ponos, fadiga proveniente do trabalho), aversão, ódio ao trabalho.

ÓDIO À MULHER

Qualquer pessoa medianamente informada sabe que o Judaísmo e duas dissidências suas, o Cristianismo e o Islamismo, satanizaram e continuam satanizando a mulher, cada uma à sua maneira. As três são consideradas religiões patriarcais porque defendem o poder do pai e a ideologia que ele representa, quer em termos religiosos, políticos, econômicos, sociais ou familiares, mesmo que formalmente esse poder possa ser exercido por mulheres, como encontramos alguns exemplos no mundo atual.

Entre os judeus, um dos mais significativos exemplos dessa atitude com relação à mulher está na Bíblia. No Gênese, registra-se que Deus criou o macho e a fêmea em condições de igualdade. Contudo, o macho, com o beneplácito divino, não deu à fêmea tal condição. Rebelando-se, ela fugiu para o deserto e dali passou ao mar Vermelho. Os judeus deram a esta primeira mulher de Adão o nome de Lilith, considerando-a como um demônio e rainha da noite, e a consideram como mulher de Samael, o senhor das trevas do Sitra Achra (o Reino do Mal). Belíssima, sedutora, além de raptora de crianças, ela ataca aqueles (homens) que dormem sozinhos para ter com eles filhos-demônios através das suas poluções noturnas. Eva só aparece mencionada no capítulo seguinte, como um produto masculino, inteiramente submissa a Adão, seu senhor e mestre. Samael, esposo de Lilith, na forma de uma serpente-demônio, seduziu Eva, o que provocou a expulsão dela e de seu esposo Adão do paraíso. Lilith reina nas sextas-feiras e é representada comumente sob os traços de uma mulher nua com a parte inferior do corpo pisciforme, numa evocação direta da imagem das primeiras sereias.    


ADÃO  ,  EVA  E  LILITH

Entre os judeus, apesar de todos os avanços (mulheres disputando o rabinato, seu acesso aos textos religiosos etc.), na liturgia tradicional, nos chamados agradecimentos matinais feitos a Deus, ainda têm muito valor frases como esta: Bendito sejas Tu, Rei do Universo, que não me fizestes mulher. Quanto ao Islã, basta citar apenas, em que pesem diferenças entre alguns países, para caracterizar a profunda desigualdade entre homens e mulheres, que a poligamia continua como uma prerrogativa masculina, que a mulher para trabalhar e se educar fora de casa precisa de autorização do poder masculino ao qual estiver subordinada, que a estética feminina continua como uma imposição masculina etc. etc. etc.

Ainda recentemente, na Arábia Saudita, foi noticiado pela imprensa que cobre o oriente e pelas redes sociais (Internet, Twitter etc.) que o Mufti (jurisconsulto, erudito, imã) da Arábia saudita, o sheikh Abdul Aziz Al-Sheikh, expediu uma nova fatwa (aviso religioso que tem a força de orientação legal, sem ser propriamente uma lei. É geralmente baixado pela figura religiosa mais elevada) na qual se declara que o homem pode comer a sua mulher no caso de estar submetido a situações de fome severa. Homens podem, assim, de acordo com a Sharia, a lei islâmica, comer partes do corpo de sua mulher até que a sua fome seja satisfeita. O Mufti disse, para justificar a sua proclamação, que ela é uma evidência do sacrifício que as mulheres devem fazer com relação aos seus maridos e que, com isto, elas estarão dando uma demonstração suprema de união com a carne de seus maridos. Esclareceram mais os meios religiosos sauditas que a fatwa do Grande Mufti, a principal figura da lei islâmica (Sharia), deve ser seguida pelos muçulmanos de todo o mundo. 

No Cristianismo, os exemplos abundam. Lembremos inicialmente de Tertuliano (155-222), o primeiro dos escritores cristãos, que exerceu na África do Norte um verdadeiro magistério doutoral, sendo muito grande a sua influência na formação da linguagem teológica do cristianismo latino. São dele as seguintes palavras (De Cultu Feminarum) sobre a mulher: Mulher, tu és a porta do Diabo.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
Foste tu que tocaste a árvore de Satã e a primeira a violar a lei divina. Com efeito, sempre responsabilizada pela queda do gênero humano, excluída, em inúmeras religiões cristãs ou não, do sacerdócio, a mulher sempre recebeu qualificativos muito depreciativos. Aristóteles, o sábio estagirita, adotado pelo tomismo, a chamou de macho mutilado. São João Crisóstomo, um pouco mais suave, disse: a mulher é uma ferida da natureza sob a máscara da beleza.


O nosso espanto será maior, contudo, se saindo do terreno religioso, formos, na cultura ocidental, ao que falaram da mulher filósofos e escritores muito reverenciados. Mesmo admitindo com boa vontade que as afirmações que fizeram corresponderiam ao esprit du temps, que eles não poderiam escrever de modo diferente porque era assim que a sociedade a via etc. etc. etc., não dá para admitir que tenham falado da maneira como o fizeram. E note-se que dentre os detratores das mulheres encontramos nomes de grande relevo na história do pensamento ocidental e de escritores antológicos.

Schopenhauer deixou-nos esta pérola, muito conhecida: A mulher é um animal de cabelos longos e ideias curtas.         Apesar de muitos
comentadores acharem que o que Nietzsche (um dos pilares da filosofia ocidental) escreveu sobre as mulheres tem que ser interpretado de outro modo (nunca chegaram a explicar direito o que seria esse outro modo), o que temos dele é que as mulheres devem ser propriedade dos homens e que devem ser “enjauladas” para que não voem. Totalmente contra a emancipação feminina, Nietzsche recomendava que elas deveriam ser mantidas sob controle e medo. Livres, tornam-se intoleráveis. A cada manhã, deveriam se ajoelhar diante dos maridos, colocando-se à sua inteira disposição, como está no Zaratustra.  

Outras pérolas: Dois galos viviam em paz: uma galinha chegou. Eis que começa a guerra (La Fontaine). Vais às mulheres? Não esqueças o chicote! (Nietzsche, no citado Assim Falava Zaratustra). Como um homem pode amar um ser que, a despeito dele, também quer pensar? Uma mulher que pensa é tão repugnante quanto um homem que se pinta (G.E. Lessing). Deixemos as belas mulheres aos homens sem imaginação (Marcel Proust). Para finalizar, extraído do Dicionário de Psicanálise de Elizabeth Roudinesco e Michel Plon: Pouco preocupado com o feminismo, Freud mostrou-se misógino em algumas ocasiões e, em muitas, conservador. A nos atermos às aparências, podemos ver nele um cientista estreito, um bom burguês, um marido ciumento e um pai incestuoso; em suma, um representante da autoridade patriarcal tradicional. 

(Veja, neste blog, matéria sobre assunto no artigo Édipo, Jocasta, Antígone, Freud e Ana). 

ÓDIO E RELIGIÃO

Poucos admitem o ódio que sentem por si mesmos porque gostariam de ser diferentes e não conseguem.  Mas esse ódio é um fenômeno universal, como podemos constatar. Na história das religiões, temos o exemplo de pessoas que, embora o desejem, encontram muita dificuldade para se afirmar na vida, por razões diversas: tomadas por um grande idealismo, por uma incontida ânsia de espiritualidade, alegando muitas vezes desprezar as coisas mundanas, costumam desenvolver uma pulsão tão agressiva contra o seu próprio corpo físico que se entregam a certas práticas que podem ser consideradas como formas disfarçadas de um suicídio lento. Fazem parte dessas práticas o abandono do mundo, a renúncia a um nome, ao ambiente familiar e a entrega a formas severas de mortificação. Este último aspecto aparece muitas vezes nas religiões sob o nome de ascetismo (askeo, em grego, exercitar-se), que se caracteriza sobretudo pela renúncia ao prazer sexual e muitas vezes pela recusa à satisfação de outras necessidades básicas. 

Daí, quanto a este item, os vários motivos, no mais das vezes inconscientes. Muitas vocações religiosas como refúgio, como medo do sexo, como saída para desilusões sentimentais, como forma de evitar a angústia das escolhas diante das exigências da vida, como ego disfarçado (complexo de Moisés, querer guiar e/ou influenciar pessoas), como meio de resolver os problemas materiais da existência, ficando asseguradas casa, comida e, dependendo da personalidade de cada um, maior ou menor possibilidade de ascensão na carreira religiosa (o romance O Vermelho e O Negro,
de Stendhal, dentre os vários aspectos de sua grandeza, é um dos melhores exemplos do que se expõe aqui), como capitulação diante da filosofia de um tempo (leia A Religiosa, romance de Diderot, e veja o belíssimo filme que dele fez Jacques Rivetti). Aliás, a visão que Diderot tinha das mulheres e do feminino é uma clara contestação das envergonhadas razões dos que tentam encontrar desculpas para o machismo de filósofos. Em pleno século XVIII, lá está em Sobre as Mulheres: Mulheres, como eu vos lastimo! Não havia senão uma compensação para vossos males; e se eu fosse legislador, talvez a tivésseis obtido. Libertas de toda servidão, vós seríeis sagradas em qualquer lugar em que tivésseis aparecido.

ÓDIO NO SAMBA

Escorpiano assumido, conhecido como o autor dos sambas que tratam da dor-de-cotovelo (cornitude), sempre envolvido em grandes paixões, Lupicínio Rodrigues deixou-nos estes versos, em Caixa de Ódio : Matar um amor/que já tem tantos anos/Criar um inferno/dentro do seu lar. Fazer de meu peito/uma caixa de ódio/com um coração que não quer perdoar. Vingança, Nervos de aço, Fuga e outros são sambas em que temos toda a ambivalência do velho Lupe com relação ao seu sadomasoquismo, onde se misturam ódio e amor, desejos mórbidos e gozo agônico.




A vida e a obra de Lupicínio ilustram aquela forma de amor instintivo que jamais admite qualquer lampejo racional. Por isso, o ser amado, em Lupicínio, assume sempre um lugar exclusivo, único, definitivo (enquanto durar a paixão) e, também, destrutivo e, por essa razão, odiado. Para ele, mais do que para qualquer outro, as palavras de Catulo no seu verso magistral: odi et amo. Este verso, que sintetiza o conflito sempre presente em toda relação amorosa, raramente conscientizado, Lupicínio o traduziu excepcionalmente em samba.    

VALMONT, UM PERSONAGEM PARA SE ODIAR?

O maior expoente da Libertinagem no século XVIII é Choderlos de Laclos (1741-1823). Oficial do exército, estrategista, questionou toda autoridade em proveito do prazer. Sua obra mais conhecida, As Ligações Perigosas, é um verdadeiro tratado do Mal. Seus personagens são inesquecíveis, Valmont, Mme. de Merteuil, Mme. de Tourvel.

Para Valmont, o executor da arte de Laclos, a máxima virtude no jogo da Libertinagem, na síntese feita por Roger Vailland (Laclos par lui-même), era: Sempre em ação, sempre seduzindo, nunca seduzido. A seguir, as demais regras: 1) a escolha deve ser sempre meritória; 2) a sedução-ação, como na caça com cães, deve dar todas as chances à mulher a ser perseguida; 3) quanto à queda, executar esta etapa com muita clareza e sem muitas fioriture, floreios, variações; 4) na ruptura, o mérito está no éclatant (brilhante). Ou seja, romper em grande estilo. Esta etapa é sempre um grande desafio para o libertino, nada de ternuras, romper de tal modo que a vítima deva procurar a morte, real ou simbólica. 

Como corolários, a Libertinagem: 1) deve ser o contrário do amor-paixão. O contrário, por exemplo, de La Princesse de Clèves ou de Manon Lescaut. No entender do libertino, o amante apaixonado não escolhe. O deus Eros lança a sua flecha e ele capitula. Esse coup de foudre para um verdadeiro libertino é sempre muito vulgar. 2) O libertino não deve ser um coureur, isto é, não deve viver de um lado para outro, excitando-se por qualquer mulher. O alvo precisa ter muito valor, sua conquista deve ser meritória (mulheres que são monumentos de virtude, por exemplo). Há, por isso, que se escolher o alvo livremente, com muita calma, com a devida apreciação e avaliação. 3) A Libertinagem caminha no sentido contrário do amor erótico, que é coisa para brutos e ignorantes. Sexo é termo da biologia (não foi por acaso que uma sociedade tão imatura e primária como a norte-americana inventou essa idiota palavra, sexy, algo impensável para um verdadeiro libertino). O libertino jamais usa a palavra sexo. 4) A Libertinagem exige longa formação, exercício permanente, aperfeiçoamento constante. 5) A execução deve ser magistral, nada de pedantismo, orgulho, ufanismo. A arte pode admitir a cumplicidade, a mais terna das ligações para um verdadeiro libertino.