domingo, 1 de fevereiro de 2015

DIVAGAÇÕES SOBRE WHIPLASH




O filme é de Damien Chazelle, uma adaptação de um curta-metragem (Guy and Madeline on a Park Bench) que ele realizou em 2013 e com o qual ganhou o prêmio do júri no Festival de Sundance. Em 2014, Chazelle recebeu com seu longa-metragem Whiplash não só os Prêmios do Júri e do Público do mesmo festival como o de público no festival de Deauville. 


DAMIEN   CHAZELLE

O filme participou nos referidos festivais na categoria U.S. Dramatic. Se deixarmos Aristóteles de lado e aceitarmos o sentido mais comum que no mundo do cinema se dá ao adjetivo dramático, desde produtores e distribuidores de filmes até críticos, locadoras de DVDs e o público em geral, tudo bem! O filme, sob esse ponto de vista, é, de fato, dramático, isto é, exagerado, foi feito para comover e produzir forte impressão em mentes e, sobretudo, corações sensíveis. Por isso, ao lado do qualificativo dramático, encontramos os conhecidos gerúndios que, nesse universo semântico, entre os norte-americanos, servem como adjetivos: astonishing, surprising, stunning, amazing. 

Whiplash é palavra formada por whip, açoite, chicote, e lash, castigar, chicotear. Whip também pode ser castigar verbalmente, virar-se ou começar algo rapidamente com vários movimentos ou, ainda, designar ferimento provocado no pescoço por um tranco, por um deslocamento para frente e para trás. Quem
J. K. SIMONS    ( FLETCHER )
chicoteia quem no filme? Andrew, o jovem candidato ao estrelato, agride a sua bateria, maltrata a sua família, a sua namorada, trata todo mundo mal porque tem um projeto em mente; Fletcher, famoso professor, chicoteia Andrew e os músicos, que se chicoteiam entre si. O resto é um bando de losers, que merece um solene desprezo dos dois principais personagens do filme, o violento professor e o jovem aluno que, como baterista, está em busca de ser o top of the top.



ANDREW   NEYMAN  ( MILES  TELLER )

HANK  JACOB  LEVY
O título do filme faz referência também à canção Whiplash, de Hank Levy (1927-2001), várias vezes mencionada no transcorrer da ação. Compositor, saxofonista e regente, Hank Jacob Levy trabalhou com Stan Kenton e Don Ellis. Ao que parece, Hank entrou no filme não só para lhe fornecer o título, mas porque seus interesses musicais iam bem mais além do trivial jazzístico. Hank, na sua vida de diretor de programas universitários, procurou, como alguns expoentes do jazz haviam feito (Benny Goodman, por exemplo), estreitar as relações do jazz com a música erudita. Além de estudioso do contraponto e de incursões mais sofisticadas (Passacaglia & Fugue), Hank interessou-se pela utilização de odd meters (medidas que contêm batidas simples e compostas) por compositores como Paul Hindemith, Maurice Ravel e Igor Stravinsky. Não há referências, mas é bem possível que, além das informações que Chazelle nos passou sobre um professor que o teria inspirado, Hank Levy tenha também algo a ver com a composição de Fletcher, embora esta influência não seja tão enfatizada. Repare-se que no filme uma das obsessões de Fletcher são exatamente os meters e a precisão que ele exige dos seus alunos para observá-los, algo que Hank estudou bastante.

Um dos fetiches do filme de Chazelle é o chicote, presente de modo especial no discurso de Fletcher. O homem só abre a boca para agredir, vituperar e destruir. É o que os americanos chamam de tongue-lash, a língua usada como um chicote. Vendo-o em ação no filme não pude deixar de me lembrar de que o chicote, em algumas antigas culturas, como a egípcia, era um símbolo do terror salutar, atributo do deus Min, que, ao usá-lo, produzia a energia criadora.

Fletcher (J.K. Simons) era não só o mais famoso e terrível professor do Shaffer Conservatory, uma das melhores escolas de música do país, como chefe da banda formada pelos alunos. Participar dessa banda como seu titular era praticamente adquirir,
WYNTON   MARSALIS
como está dito no filme, o direito de tocar em verdadeiros templos do jazz como o Lincoln Center, cuja orquestra é hoje dirigida pelo trompetista Wynton Marsalis, seu diretor artístico também. Acho útil, para melhor avaliação de Whiplash, transcrever aqui um pequeno trecho da divulgação de espetáculos jazzísticos do Lincoln Center: ”Acreditamos que o jazz seja uma metáfora da democracia. Porque o jazz é improvisação, ele celebra a liberdade pessoal e encoraja a expressão individual”. Fala-se depois que o jazz, por ser swinging (balanço), deve procurar a liberdade para que espaços comuns sejam encontrados e mantidos dessa maneira. E concluindo nos é dito que, por se enraizar no blues, o jazz é inspiração para que a adversidade seja enfrentada com persistente otimismo.



LINCOLN  CENTER  JAZZ  ORCHESTRA

Notado por Terence Fletcher, Andrew é convidado para tomar parte nos ensaios da banda do Conservatório. O perfeccionismo de Fletcher e a sua pedagogia o levam a fazer exigências absurdas aos alunos, submetendo-os a vexames e indignidades que transformam os ensaios em verdadeiras sessões de tortura. Aparentemente homofóbico, racista, desbocado, truculento, monomaníaco, Fletcher chega inclusive à agressão física. Para os alunos, entre respeitosos e atônitos, olhares baixos, ele apresenta como justificativa de suas atitudes a sua esperança de um dia de sair de suas mãos um outro Bird. 


ANDREW   E   FLETCHER

Fletcher conta então aos seus aterrorizados alunos que, um dia, Charlie Parker, o futuro Bird, quando adolescente, participou de uma sessão de jazz com Jo Jones, então famoso baterista. Tendo cometido alguns erros, Charlie foi agredido por Jones, que lançou na sua direção um prato (cymbal no filme), uma das peças circulares de metal usadas como instrumento de percussão nas baterias. Charlie se retirou, fechou-se em casa e

por um ano, sem aparecer para ninguém, praticou exaustivamente. Isso aconteceu quando Parker tinha, ao que parece, dezesseis anos, conforme nos conta Stanley Crouch, biógrafo de Parker, em Kansas City Lightning. Esse tempo em que ficou sozinho, exercitando-se, é que está na origem de seu apelido Yardbird. Yard quer dizer pátio, palavra que designa, no caso, o lugar onde os frangos ficavam por um tempo até que engordassem e pudessem ser exibidos e vendidos ou transformados em fried chicken, iguaria da cozinha popular norte-americana, que Parker devorava compulsivamente, comercializada, como fast-food, pela famosa marca KFC, desde 1939. Yardbird, com tempo, virou simplesmente Bird, apelido que nada tinha a ver, como muitos supõem, com as alturas condoreiras a que Charlie elevou o jazz. 

DIZZIE   GILLESPIE
Criador do bebop, com Dizzie Gillespie, consciente do que fazia e de seu valor, Bird, com um absoluto domínio técnico de seu instrumento, deu nova dimensão ao jazz, tirando-o da condição de simples música dançante. Ao mexer com estruturas, envolvendo-se com problemas de linguagem, e não com linhas melódicas como a maioria fazia, jogando, isto é, tocando para o grande público, Parker mudou o status do jazz. Não foi simplesmente mais um grande músico negro, descontrolado, de extremos em tudo, insaciável, que destruiu a sua vida bebendo

todas e se drogando, suicidando-se rapidamente. O filme que Clint Eastwood fez em 1988 sobre ele, obviamente por razões de mercado e/ou por incapacidade sua de alcançar a real dimensão de Bird, destacou muitos mais os seus dramas pessoais e quase nada a sua importância na música popular norte-americana.

Nada tão distante e falso com relação ao real Charlie Parker do que a imagem que dele Fletcher fazia, como justificativa para impor a sua pedagogia. O mesmo se diga com respeito ao jovem Andrew,

que queria ser um novo Buddy Rich. Parker, para usar a maneira de ver poundiana, foi um inventor, redimensionou repertórios, teve que pagar um elevado preço pela sua ousadia. Um percentual mínimo, dois três por cento, se tanto, no mundo do jazz, poderão ser incluídos nesta faixa de inventores. Já Buddy Rich faz parte de uma faixa abaixo, a dos mestres, onde estão uns cinco por cento do mesmo universo jazzístico. Os noventa e tantos por cento restantes fazem parte da terceira faixa, na qual se enquadra a enorme maioria, os chamados diluidores, que se apropriam do que os das outras duas faixas mencionadas produzem ou fazem, repassando tudo para o grande público, devidamente mastigado e rebaixado.






A visão tradicional que a mass communication norte-americana nos oferece, que o jovem Chazelle incorpora com muita habilidade e nos passa através de Fletcher, é a de que o top of the top pode ser
GENE   KELLY
 alcançado em universidades, sob a supervisão de um coach competente, como se se tratasse de uma competição esportiva. Aliás, a personalidade de Buddy Rich se encaixa bem nesta proposta: um grande entertainer desde a infância cujas performances sempre estiveram ligadas às big-bands, com desempenhos em que era dada uma grande ênfase à velocidade 
FRED   ASTAIRE
e a drum solos. O grip de Buddy Riche era tradicional, muito bom, mas standartizado, nele se destacando sobretudo o seu empenho físico, não fosse ele, aliás, um faixa-preta em artes marciais. Se me fosse permitida uma comparação meio extravagante, eu diria que Buddy Rich estava mais do lado de um Gene Kelly enquanto Charlie Parker estava muito mais para Fred Astaire. 

Whiplash tem um subtítulo: Em busca da perfeição. Mais adequado para mim seria um outro: os fins justificam os meios. O que Fletcher entendia como gênio era nada mais que excelência no desempenho físico. Algo que lembra muito o que acontece nos treinos a que grandes atletas têm que se submeter. Basta notar o olhar e o sorriso de Fletcher quando Andrew, no seu solo do final do filme, dá “aquele algo mais” orgasticamente: a sua transpiração, a crispação do seu rosto, os tendões e músculos do corpo estirados ao máximo, as mãos feridas... 

O recado do filme é explícito: acima de princípios éticos e morais, tudo é válido para que os objetivos sejam alcançados nesse universo, todo feito de extrema competitividade e nenhuma cooperação, tolerância e simpatia. Quanto ao trabalho, o melhor ou

nada, pois não há lugar para good jobs, coisa para loosers. A crença no desempenho como produto de características intrínsecas a cada um e na igualdade de oportunidades para todos é que permite à sociedade americana se autodividir em winners e losers. No fundo, o filme se insere filosoficamente naquela corrente de pensamento tão cara aos americanos, o pragmatismo, na formulação de William James, segundo a qual é verdadeiro tudo leva ao sucesso. 


Whiplash, nesse sentido, pode ser considerado mais como um filme que procura transplantar certas técnicas esportivas para o cinema do que nos mostrar os processos educativos que podem formar um bom músico. Fletcher e Andrew pensam em precisão cronométrica, batidas que têm que caber em determinados espaços, arrastar-se e acelerar são verbos muito usados. Para quem gosta e entende um pouco de jazz, Whiplash pouco ou nada tem a ver com música. O filme nos fala acima de tudo de certos distúrbios de comportamento, de certas formas de abuso do poder e de deformação de personalidades, que por estarem tão arraigados na vida americana ganharam condição de (a)normalidade. Melhor seria, por isso, deslocar Whiplash para o campo da Pedagogia e da Psicologia, porque, quanto à música, ao jazz, talvez nenhum filme como este a tenha maltratado tanto. O que o filme procura legitimar é que uma pessoa para ter sucesso numa sociedade altamente competitiva, para que possa se elevar acima dos outros, ela deve se sacrificar ao máximo, superar-se, ultrapassar os seus limites, destruir a sua família e jamais amar alguém, como certas imagens e cenas do filme procuram enfatizar. Com filmes como Whiplash cada vez mais longe estamos da proposta kantiana segundo a qual o valor moral de uma ação não se mede pelos seus resultados (seu sucesso), mas pela intenção que a anima e pelos princípios que a orientam.