sexta-feira, 8 de maio de 2015

MARFIM E AUSÊNCIA (CONTO)

                                              
“Está ainda por surgir uma nova ciência que se ocupará da aproximação entre os seres vivos, dos seus contatos, dos seus retraimentos, dos movimentos dos seus corpos e dos seus membros. Ciência que será a da solidão do homem e, por isso mesmo, do próprio homem: este o motivo por que não tentou ninguém.” 
                                                                                         JEAN REVERZY.



ÉDOUARD  VUILLARD  -  INTÉRIEUR, 1902

Há muito que o mundo era aquela névoa pousada sobre os objetos. Uma cortina que fora baixando aos poucos até reduzir tudo a vultos e manchas. Sinais, presenças de um dia que só as mãos ajudavam a recordar. Por que se preocupar esta noite? Uma noite como as outras, certamente. Tudo no lugar de sempre. O mesmo silêncio, Corisco ali ao lado, o seu ronronar, a cadeira de balanço rangendo, a negra Lupércia velando no quarto dos fundos, silêncio pesado, no entanto, silêncio bom, a vida se acabando com tempo, sem nada pedir.

Se não fosse pelos sons que de vez em quando chegavam da rua, teria a impressão de viver num lugar deserto. As praias da infância, a casa, a soleira de pedra, a lanterna do alpendre, as gaivotas, o vento na areia, a voz da mãe, tudo voltava. Sentiu um mal-estar quando a casa lhe apareceu, como num sonho, no fundo do mar, navio submerso, enorme e branca, quase em completa escuridão, uma forma mais adivinhada que vista. Alguns peixes nadavam silenciosamente à sua volta, peixes de abismo que não precisam mais de olhos. 

Um leve movimento de cabeça fez com que seus pensamentos se desviassem. Agora eram os sons, o sussurro distante da cidade, buzinas, apitos, um grito, vozes entrecortadas, conversas que chegavam aos pedaços, um latido, outro, risadas, alguém cantando pelo vazio dos quintais. De onde viriam? De repente, tudo silenciava, os ruídos da casa voltavam a se impor, os murmúrios do tempo, como os chamava. Esses, já os conhecia bem, demais até, já se haviam incorporado ao próprio silêncio. Em noites de chuva e vento eram as venezianas como castanholas, umas lâminas soltas, castanholas como as que tio Alexandre havia trazido da Espanha, falando de touradas, leques coloridos, mantilhas, ciganos; nos grandes temporais, com trovões e raios, o céu escuro, corre a esconder as tesouras e a cobrir espelhos, Santa Bárbara nos proteja, que a paineira ficava com a dança de São Guido; nas mudanças de tempo, os estalidos da madeira, os móveis se espreguiçando, disse um dia Maria Amália e todos acharam muita graça, uma menina de cinco anos dizendo essas coisas, uma menina que gostava de pegar aqueles besouros que pulavam do jardim para dentro da casa ou se chocavam contra as vidraças. Cada barulho no seu tempo, na sua estação, sem mistério, sem sustos. Por que então desarrumar os pensamentos hoje? Uma cortina que não valia a pena descerrar...



PIERRE  BONNARD  -  1899

Ajeitou-se um pouco mais na cadeira à procura de outras posições, o corpo sabia encontrá-las. Fechou os olhos aos poucos, relaxando. Dormitava, a cabeça pendente. Aquela mancha negra à sua frente era o piano. Tudo se desvanecia. Marfim e ausência. Rogério, a mãe, Ignez, Maria Amália, tio Alexandre, os primos, vida breve a deles. Noites no piano, castiçais cintilando, o jarro de flores, a sala iluminada e tranquila. Rogério não é hoje mais que uma figura meio apagada naquele retrato pendurado na parede. E a boca, os olhos, como era a voz de Rogério? Fez um grande esforço, mas não conseguiu se lembrar. Quem, para se lembrar deles? Contornos que se iam perdendo, lembranças ainda dolorosas que encobrira, acenos de um tempo que findara. 

Entretanto, nada tão vivo e real como essas presenças que ainda pareciam andar pela casa. Tinha a impressão de que os alcançaria com as mãos, todos sentados na sala, como à espera de que alguém fosse tocar piano. Poderiam, então, depois, conversar, uma conversa tranquila, sem urgências, sem que os olhos falassem coisas diferentes das palavras que estavam sendo ditas e que ninguém ficasse atrás delas, escondendo-se, todos rindo, felizes e bons, todos contentes porque capazes de conversar assim tão despreocupadamente. Depois, seriam servidos biscoitos, todos preferindo os sequilhos de Lupércia, e refrescos, limonada, licor para os adultos. Cada um contaria um caso, todos se interessando muito pelo que estava sendo dito, inclusive pelo que as crianças diziam, uma casa diferente, onde crianças tomavam parte em conversa de gente grande, nada de senhor pai ou senhora mãe, ninguém precisando fingir que dava importância a elas, até que, bem tarde já, quando o João Pestana estivesse chegando para alguns, muitos já levando a mão à boca para esconder um bocejo, aí, então, papai  diria que já eram horas, levantando-se. Tio Alexandre iria embora com Rogério e nós, cambaleando de sono, subiríamos, com Maria Amália nos braços de mamãe.

Já sob as cobertas, entre risos e cochichos, ouviríamos os ferrolhos sendo corridos, as trancas, as janelas sendo fechadas, até que mamãe gritasse baixinho uma boa-noite-durmam-bem-não-façam-barulho. As luzes apagadas, gozaríamos, então, sem saber que as estávamos gozando, daquelas pequenas alegrias de um resto de noite, os passos abafados de papai no corredor, o cheiro da roupa limpa, o perfume do sabonete, as toalhas de linho, até que o nosso último olhar se perdesse sobre a bacia e o jarro em cima da cômoda, naquela figura do jarro, e que João Pestana nos levasse. 

Ao lado do piano, no fundo do salão, dois armários que iam até o teto e um grande baú de couro, sustentado por suportes de madeira; mais adiante, a coluna com o cachepô de faiança, e, sempre,
ODILON   REDON
sempre, impregnando tudo um odor de madeiras velhas. Canto respeitado, reino do gato Jeremias, grande ancestral de Corisco, era o lugar de onde saíam histórias antigas, quando os armários e o baú se abriam, prazer de tardes e noites chuvosas, exemplos, lições, demonstrações, tudo o que deveria ser imitado. Os olhos esbugalhados, o coração batendo mais rápido, observávamos, escutávamos em absoluto silêncio, como se estivéssemos num teatro, embora nunca tivéssemos ido a um. Molduras de estanho, colares, pentes, tiaras, chapéus, bengalas, fechaduras de prata, plumas coloridas, chapéus de feltro, botões de madrepérola, licoreiros, angélicas, toalhas de renda, cartolas, lanternas, bússolas, binóculos, caleidoscópios, relógios, biscoiteiras de porcelana, símbolos indecifráveis de um mundo encantado para o nosso temor e espanto. 

Rogério era o mais curioso, mas ele foi asa de pássaro batendo, passou rápido, deixando saudade. Tio Alexandre trouxe a notícia. Difícil viver sem ele, sem aqueles olhos azuis, seu sorriso calmo, a vida chegando quando ele entrava. Mas ele se foi. Durante muito tempo perguntou à mãe o que era leucemia. Depois, esqueceu. A vida foi se encarregando de pôr as coisas no lugar. Sentiu apenas que Rogério não teve tempo para tomar posse do seu destino. Os anos se passaram, a vida voltou a tecer os seus fios. Retraía-se, seu corpo mudava, não sabia bem o que fazer com ele. Serenamente vazia, a compensação vinha pela poesia e pelo piano. Aos poucos, foi retornando à sua verdadeira proporção para descobrir que não havia surpresas, que tudo estava ordenado desde sempre. Há milhões de anos ordenado. Guardou as mágoas, recolheu a dor e sobreviveu.

Depois, apareceu o outro primo, Luiz. Apareceu, não, ele veio naturalmente pelas mãos do pai. Coube à mãe explicar o que queria dizer a presença de Luiz. Nada muito claro, mas pareceu-lhe que ela procurava dizer que a unidade da família deveria ser preservada e que poder e prestígio se consolidavam pelo casamento. Como não entendesse bem, a mãe encerrou, dizendo-lhe que mais tarde compreenderia melhor. O pai, por seu lado, mais direto, disse-lhe 
JEUNES  FILLES  AU  PIANO - AUGUSTE  RENOIR
que já era tempo de passar do piano, dos bordados e das poesias para outro destino, o casamento, ajudar um marido a se tornar um grande homem, como esposa e mãe. Ficou noites sem dormir pensando no que significava ser mulher. Luiz vinha de um outro ramo da família que não conhecia bem. Trazia não só cafezais, fazendas, mas casas comissárias, as duas pontas do fabuloso negócio que desbravava terras e fundava cidades, como dizia o pai, entre contente e expectante. Luiz tinha os privilégios dos filhos de família primogênitos. Pertencia à estirpe dos varões que mandam e governam. Lembrou-se do dia do casamento, quando ao descer do altar, sem dar conta do que fazia, mordeu um botão de flor de laranjeira do buquê que carregava. O pai e a mãe sorriram, realmente o casamento se consumava. Nas semanas que se seguiram à festa, jantar e baile, duas palavras lhe ficaram nos ouvidos: opíparo e copioso. Nunca as ouvira antes, teve que perguntar ao pai o que queriam dizer. 

Luiz gostava de penteados esculturais e de botas de pelica para as mulheres; quanto aos vestidos, só figurinos franceses, e todos com muitas anáguas. Para servir a mesa, só copeiras brancas, loiras de preferência, era mais chique... O primeiro conflito que teve com Luiz foi por causa de literatura. Não propriamente conflito, porque não reagiu. Espantou-se mais com a grosseria de suas palavras do que com o gesto. Luiz lhe disse que para mulheres só admitia umas poucas letras, algumas operações aritméticas e algumas cantigas de ninar, se não houvesse amas, observou, e, quanto a leituras, só as do livro de orações,  pois, mais do que isso, era pôr em risco a estrutura do lar. Afirmava tudo isto com um ar cínico, às vezes exaltado, como era seu costume. Como resposta, conseguiu apenas ponderar, com voz sussurrante, a garganta fechada e os olhos úmidos, que, embora não fosse uma animadora de salões, ele bem sabia que a música, as poesias, a arte, enfim, ao lado dos bordados e dos crochês, das mesas bem servidas e de receber visitas, faziam também parte da sua vida, que precisava sonhar, que gostava de beleza, de fantasia. Da resposta que ele lhe deu não se lembrava bem. Mantivera-se calma, disso se lembrava, sim. Ele lhe arrancou então das mãos, com violência, um livro de Alberto de Oliveira que tio Alexandre lhe emprestara; ainda tinha na memória os versos de "Cheiro de Espádua", que estava a ler naquele momento.  Procurou abrir-se com a mãe, procedera bem, mal? Depois de ouvi-la, a mãe, ao que parece não entendendo bem o que procurava, lhe falou sobre as virtudes da maternidade, concluindo  com a recomendação de que mantivesse sempre o corpo arredondado e macio, o olhar meigo e atento, não importando o número de filhos, e, acima de tudo, evitasse o sol para assegurar a alvura do rosto a fim de não ter que recorrer ao disfarce do pó-de-arroz. Olhou-a atônita, sem saber o que dizer. 

Vieram, então os enjoos e desejos, os filhos, os resguardos, o Vinho Biogênico, as ardósias, as primeiras cartilhas onde “o menino vê o gato” e “a bola é de Babá”. Luiz, do alto das suas botas, sobranceiro, orgulhava-se como reprodutor, festejando cada nascimento, abrindo garrafas de vinho do Porto. Com ele, definitivamente, aprendera que as coisas se impunham sem que fosse possível qualquer escolha. Onde errara? A chuva, por exemplo, que antes significava barcos de papel, o melhor banho de mar do mundo, desde que não houvesse raios, passeios alegres e despreocupados, sem receio de resfriados, noites quietas e sossegadas, histórias do tio Alexandre, o desfile das peças que saíam dos armários e do baú, horas que pingavam vagarosa e generosamente, virou cuidado, janelas se fechando, lenha úmida, roupa que não secava, virou tempo ruim para as crianças, garganta inflamada.  Percebia vagamente que faltara alguma coisa em sua vida. Sentia-se só e abandonada diante do que não escolhera. 

Durante anos e anos Deus fez a sua vontade. Deu e tirou. Mortes, desenganos, alegrias, ilusões, obscuras promessas que não conseguia entender. E depois desse tempo todo descobriu que também se podia viver sem felicidade, Foi naquela tarde de domingo. Luiz dormia, os filhos e as noras reunidos com amigos no jardim, rindo, ouvindo música. Um sentimento de paz parecia se alastrar pela casa, paz irreal, escorrendo dos telhados, das nuvens, misturada à luz que em jorros inundava a sala. Encostou a cabeça no vidro da janela e sentiu o rosto molhado. Viu, então, as marcas que o tempo deixara, os cabelos grisalhos, a expressão contraída. Um momento, não mais que um momento para que a vida inteira se esvaísse. Sentiu que regressava sozinha de uma longa viagem, uma sensação de queda, como se olhasse o mundo pela primeira vez. E ele nunca lhe parecera tão distante. Reconhecimento tardio de que aquele não era o mundo para o qual havia se preparado. Olhou mais uma vez pela janela, tendo a impressão de que a sombra gigantesca da paineira gerara aquele domingo. Passou as mãos pelo rosto. As lágrimas rolavam sem ressentimento.

Procurou lembrar-se de alguns momentos que, se não plenos, se não houvessem trazido alguma satisfação, sempre ajudaram pelo menos a continuar. Quem sabe, perguntava-se, se não é só isso que existe realmente, se não é só isso que realmente conta. Apenas um pouco de habilidade e eles apareceriam, os momentos perfeitos. Agarrar-se a eles. Era só calar as perguntas, não pronunciar certas palavras, passar por cima de algumas coisas. Ou então e ao mesmo tempo, por que não?,  visitar e receber pessoas, um chá à tarde, agitar-se como todos se agitam, ocupar-se, voltar às obras assistenciais, pensar nos filhos, nos netos, lembrar datas de aniversário, ir às compras, conversar com os vizinhos, distrair-se, viajar, ver coisas bonitas, cansar um pouco o corpo, se possível, para que o sono viesse logo.  Um pouco de habilidade, apenas, não dar espaço para que os pensamento aflorassem. Sorriu, afundando-se um pouco mais na cadeira.

Uma rajada mais forte escancarou a janela do fundo, inflando as cortinas, como as velas de um barco. Pressentiu que a madrugada ia cedendo lugar à aurora e que logo a sala se encheria de claridade, apesar das cortinas. Os objetos sairiam inevitavelmente das sombras, trazendo a manhã. Pequeninos círculos de luz já começavam a rodopiar no teto, à sua frente. Fixou o olhar na obstinação dos objetos. As mãos começaram a se movimentar, tentava fazer com que os dedos se cravassem nos braços da cadeira, um esforço que, entretanto, sabia inútil. Aquelas mãos, como se não fossem suas. Desistiu. Tentou investir contra tudo o que estava ali à sua volta. Lá fora, a vida renascia aos poucos, a luz já estava dentro da sala, irrecusável agora, incontestável. Tentou mais uma vez. Não conseguiu. Percebeu que havia esgotado todas as suas lembranças.


ILUSTRAÇÃO   DE   LÚCIO   MENEZES