quarta-feira, 29 de novembro de 2017

ESCORPIÃO (3)



HADES

A reputação de Hades, como deus do inferno, do mundo subterrâneo, tanto entre os imortais como entre os humanos era péssima. Sinistro, taciturno, seus irmãos e pares jamais o viam, não participando ele, por seu lado, das famosas reuniões olímpicas. Ele não visitava ninguém, todos o temiam. Quanto aos mortais, todos evitavam pronunciar seu nome, usando eufemismos, como o nome Plutão, o rico, para se referir a ele. Entretanto, se considerado mais de perto, se levada em conta toda a sua história, Hades era um deus justo. Com ele, nada de favores, de tratamentos especiais. Todos, ricos ou pobres, eram recebidos do mesmo modo no seu reino. Nem justo ou injusto, simplesmente inexorável por que desconhecia sentimentos como piedade ou compaixão. Cumpria a sua função, governando com eficiência a parte que lhe coube quando da divisão do universo entre ele, Poseidon e Zeus.


REINO   DE   HADES ( GRAVURA / ANÔNIMO )
Os mortos, no reino de Hades, não eram senão sombras sem consciência ou sangue, eidola. Moviam-se mecanicamente, tudo era repetitivo, não passavam de fantasmas errantes que perambulavam por planícies de asfódelos, tão tristes e soturnas como eles. Os gregos, desde Homero, davam à alma (psyche), além de eidolon, nomes como skia (sombra), opsis (aparência),  phantasma (fantasma) e onar (sonho), sempre uma forma frágil, volátil, à qual faltava o corpo (soma), razão do seu esplendor. 

CÉRBERO   E   HÉRCULES ( P. P. RUBENS , 1636 )

Cérbero, o cão tricéfalo, além de cuidar para que as almas não escapassem do destino que lhes cabia, impedia que os mortos descessem ao mundo ctônico sem terem passado ritualmente pela morte. Caronte, o barqueiro, por sua vez. só admitia no seu barco,
CARONTE (G. DORÉ, 1832 - 1883)
para o devido cruzamento do rio Aqueronte, as almas que lhe entregassem o devido óbolo. Julgadas no Tribunal da Verdade presidido por Minos, eram elas encaminhadas, conforme o caso, ao Érebo, ao Tártaro ou aos Campos Elíseos. Para este último iam algumas almas de elite, onde ficariam aguardando o retorno à vida sem sofrimento. Mas eram poucos, muitos poucos, aqueles que podiam sonhar com esse território idílico. Mesmo muitos heróis não os atingiram, o que fazia supor que apenas ter coragem não bastava para que alguém escapasse dos castigos do Hades.


HIPNOS   E   THANATOS   CARREGAM   HERÓI   MORTO

Alguns falavam que o Érebo acolhia os mortos privados de sepultura. Era nele, segundo depoimentos, que ficavam os Palácios
MORFEU , 1777  ( J.F.HOUDON )
de Thanatos, de Hipnos e de seu filho Morfeu, os dois primeiros irmãos gêmeos. O Palácio das Eríneas, deusas do remorso, ficava por perto. Um pouco mais ao longe, tínhamos os domínios de Nyx, a grande deusa da Noite, que, segundo Hesíodo, nasceu diretamente do Caos e gerou muitas calamidades que atacavam os humanos. Nas camadas mais profundas do Hades ficava o Tártaro, lugar jamais alcançado pela luz, prisão eterna dos maus, lugar sem saída. Foi nele, um lugar ao mesmo tempo glacial e fervente, que Urano lançou os seus filhos e que Zeus aprisionou os titãs. Nele, com permanência até o final dos tempos, estão criminosos famosos como Sísifo, Tântalo, Ixion, as Danaides e outros,  devorados por seus remorsos e culpas.

HÉCATE  ( WILLIAM  BLAKE , 1757 - 1828 )

Tão ou mais poderosa que Perséfone, vivia nesse mundo Hécate, deusa dos encantamentos e da magia, a maior e a mais bela de todas as feiticeiras, uma Deusa Tripla, Grande Mãe, na origem. Para uns filha de Nix e do Tártaro, para outros, descendente dos Titãs; o que se sabe de certo é que quando os olímpicos assumiram o poder ela já pontificava e no reino deles conservou os seus privilégios e até os aumentou, sempre muito respeitada. Apesar das tentativas de “enegrecê-la”, ela, quando adequadamente honrada, continuou favorecendo os humanos, proporcionando-lhes prosperidade material, o dom da eloquência nas assembleias, vitórias nos jogos e nas batalhas, pesca abundante e rebanho numeroso. 


HÉCATE
Hécate (a que fere à distância, de longe, etimologicamente) é uma deusa lunar trívia (as três fases lunares visíveis), honrada nas encruzilhadas, que visitava a cada vinte e oito dias, quando subia à superfície terrestre, acompanhada de animais que simbolizavam a fecundidade. As encruzilhadas, como se sabe, são lugares de mudança, de transformação, de viradas de destino. O poder que a deusa tinha sobre elas era dividido com Hermes, também nelas honrado, na sua forma itifálica. Profundamente misteriosa, tinha Hécate relação direta com a Lua Nova, período em que aparecia nas encruzilhadas. Presidia às aparições de fantasmas e de espectros, assumindo então a função de senhora dos malefícios, dos pesadelos, deusa perigosa, terrível, sempre temida, que destruía aqueles que ficavam “prisioneiros”, imobilizados, sem nada decidir, nas encruzilhadas. Era, como tal, invocada secretamente no curso de todas as operações de magia negra. 


ERÍNIAS
Tinha Hécate como atributos a tocha que iluminava o caminho que levava aos infernos, o punhal sacrificial, o chicote para despertar as consciências sonolentas e a chave que abria as portas de acesso a lugares proibidos ou secretos. Como Ísis e outras Grandes Mães, Hécate possuía poderes que lhe permitiam intervir em todo o universo. As Erínias, grandes divindades dos remorsos e das culpas, nas incursões que faziam em conjunto, a acompanhavam sempre respeitosamente, com grande deferência. Ativa colaboradora do Hades, Hécate sempre se manteve muito à vontade nas suas atividades, mesmo depois de Perséfone ter recebido o título de rainha dos infernos. 

HADES  RAPTA  KÓRE
( 1621/22 , G.L. BERNINI )
Por sua associação com o mundo subterrâneo e com os temas de morte e renascimento, Escorpião sempre foi conhecido como o signo da vida subconsciente. Inicialmente, na mitologia grega, como sabemos, o mundo subterrâneo foi governado apenas por uma divindade masculina, Hades. Quando ele raptou Kóre para transformá-la em Perséfone, restaurava-se com esse ato, quanto ao mundo infernal, a dignidade do princípio feminino, entendendo então os gregos que o vasto, inexplorado e inexplicado mundo da vida subconsciente pertencia, de fato, ao elemento feminino. 

Esse entendimento, aliás, já estava implícito na ação da deusa
PLUTÃO
Hécate, e mesmo quando o patriarcado tomou posse do oráculo de Delfos. Apolo só conseguiu sentenciar oracularmente quando se valeu das sibilas, isto é, quando recorreu ao feminino. O mito do Hades como um todo nos revela que os princípios masculino e feminino devem sempre operar através do equilíbrio e de compensações. É por isso que Plutão, num mapa astrológico, é tão feminino quanto masculino. 

 Na astrologia, assinale-se, Plutão é o grande reformador que destrói para reconstruir melhorando, que questiona tudo, abolindo usos e costumes para reformulá-los mais eficazmente, forçando as reciclagens. É por essa razão que Dioniso tanto é chamado de Faleno como é considerado como o mais feminino dos deuses gregos, lembrando-nos sempre que toda produção terrestre tem como origem mais profunda e última (ou primeira) as profundezas infernais. 

MEMÓRIA
( MAGRITTE , 1898-1967 )
Na Psicologia, como se sabe, pertence ao subconsciente (feminino) aquele conjunto de fatos ou vivências pouco conscientes ou que estão fora do limiar da consciência atual ou aos quais ela não pode ter acesso. Nem tudo que está na esfera do subconsciente, entretanto, é inconsciente; alguma coisa pode subir, dela se pode ter consciência. Diz-se, por isso, que no inconsciente estão abrangidos todos os conteúdos ou processo psíquicos que não são conscientes, isto é, que não estão referidos ao eu de um modo perceptível.

A questão de se apurar em que estado se encontra um conteúdo inconsciente escapa de toda possibilidade de conhecimento direto. Também é impossível se determinar a dimensão desse mundo inconsciente. Só através das constatações existenciais pode ele ser percebido, embora nunca muito claramente. O que se sabe é que conteúdos conscientes podem se tornar inconscientes em razão de uma perda de energia. É o que chamamos de esquecimento. Esses conteúdos, também nos diz a experiência, podem emergir do seu afundamento sob determinadas condições, através de sonhos, hipnose, práticas de livre associação etc.


SONHO  (1956 , SALVADOR  DALÍ)
É possível também que os conteúdos conscientes possam ficar submersos sem grandes perdas de sua energia em virtude de esquecimentos intencionais, como é o caso da repressão de conteúdos penosos (recalques). Em casos de dissociação da personalidade, pela dissolução da unidade da consciência, em virtude de um violento choque nervoso ou de uma profunda e intensa afeição podemos ter também casos de submersão ou de repressão como mencionamos. 

Os conteúdos inconscientes permitem que uma tentativa classificatória possa ser estabelecida. É possível, por isso, falar de um inconsciente pessoal, que compreenda todas as aquisições de uma existência pessoal, tudo aquilo que, em suma, é esquecido, reprimido, sentido, pensado para além do limiar da consciência. Além desses conteúdos pessoais inconscientes podemos admitir que existam outros que não provêm de aquisições pessoais, mas que se originam de ideias inatas e que fazem com que as experiências vividas sejam organizadas através  de determinados padrões de comportamento comuns a toda a humanidade. O inconsciente coletivo é, nesse sentido, uma espécie de reservatório ancestral de experiências, herança racial jamais tornada consciente, mas que se manifesta nos sonhos por imagens arquetípicas em ligação com mitos, lendas etc.

FREUD,1926 (SCHMUTZER)
Freud distingue no psiquismo três instâncias: o consciente, o pré-consciente e o inconsciente, correspondentes a níveis decrescentes a partir do primeiro. Tanto na Psicologia como na Psicanálise, o consciente (masculino) é o aspecto da psiquê que constitui o lado da vida mental a que se tem acesso instantâneo e que está em maior contacto com a realidade exterior. Esta realidade exterior é simbolicamente a superfície terrestre, o mundo natural, onde o ser humano vive, se locomove e age. Logo abaixo da superfície terrestre (feminino), sempre simbolicamente, começamos a descer, como os mitos explicam, em direção do Hades através de certas aberturas, cavernas, grutas e regiões pantanosas. Os gregos chamaram essa região vestibular do Hades de “O Bosque de Perséfone”, um lugar lúgubre, desolado, onde vivem espectros, fantasmas, e seres que se fixaram num estado entre a vida e a morte, que não morreram ritualmente. 


BOSQUE DE PERSÉFONE
( G. DORÉ , 1832 - 1883 )
Dentre os fantasmas e espectros desse mundo, destacamos Algos (Dor), Geras (Velhice), Ponos (Fadiga), Metanoia (Arrependimento), Ftonos (Inveja), Penia (Pobreza), Hybris (Desmedida) etc. A analogia entre o “Bosque de Perséfone” e a vida pré-consciente parece bastante aceitável, principalmente se lembrarmos, segundo a própria doutrina freudiana, que faz parte dela tudo aquilo que não está presente na consciência, mas que pode ser lembrado sem resistência ou repressão internas. O pré-consciente é uma espécie de antecâmara, está dotado de uma certa memória que provém da vida pulsional. As entidades que o habitam, conforme o caso, embora não presentes na consciência, a invadem muitas vezes, podendo gerar muitos problemas. 

INFERNO  ( WILLIAM  BLAKE , 1757 - 1928 )

Não é por acaso que muitos mitólogos consideram as entidades acima mencionadas como divindades alegóricas. A alegoria (do grego, dizer outra coisa além do seu sentido literal) é um processo que nos permite representar pensamentos, ideias ou qualidades sob forma figurada em que cada elemento funciona como disfarce da ideia representada. Nesta linha de raciocínio, o Érebo e o Tártaro constituiriam a vida inconsciente, as camadas mais profundas do Hades. Lembremos que qualquer coisa que escape de nossa consciência, ela não cessa de existir, ela não desaparece. Nós a perdemos de vista somente. Grande parte da nossa vida inconsciente é assim constituída por uma multidão de pensamentos, de impressões, imagens temporariamente obliteradas, não conscientes, mas que continuam a nos influenciar. O Érebo (obscuridade, escurecimento, etimologicamente) é no mito, como sabemos, uma prisão onde as almas ficam aprisionadas por longo tempo, submetidas a sofrimentos indescritíveis. O escurecimento do Érebo tem um caráter involutivo, regressivo, negativo. O interior da terra é escuro, negro, mas é nele que irá se operar a regeneração do mundo diurno, o mundo de cima. Na escuridão temos o desaparecimento de todo o conhecimento distinto, analítico, exprimível, privação de toda evidência 


TÁRTARO  ( J. VAN SWANENBURG , 1571 - 1638 )

A última camada do Hades é o Tártaro, encontrando-se a Terra simetricamente distante dele e do céu. Ele é o abismo mais profundo das entranhas da Terra, lugar de escuridão absoluta, que a luz jamais alcança, símbolo da inconsciência total, prisão dos grandes criminosos, de onde ninguém escapa. Sempre a cercar o Tártaro ideias de impotência, de impossibilidade de mudança, de tortura. As almas nele encerradas não alimentam nenhuma esperança de fuga, de consolação ou socorro. 


SOLUTIO
Alquimicamente, lembremos, o signo de Escorpião tem relação com a solutio, operação típica do elemento água. É neste sentido, da solutio, por exemplo, que Dioniso atua quando leva, através do kykeon, na fase da orgia,  os participantes dos Mistérios de Elêusis à dissolução do seu ego, proporcionando-lhes um verdadeiro banho de imersão orgiástico na vida instintiva. Essa experiência apaga diferenças em nome de uma identificação coletiva dos mystai. Os aspectos fixos e estáticos da personalidade dos participantes são dissolvidos ou reduzidos a estágios primordiais que podem até anteceder a própria vida instintiva. É nestas ocasiões que a solutio dionisíaca poderá ser vivida como aniquilação do ego,  passível de proporcionar o surgimento de uma nova forma. 

A solutio, vivida como  putrefação,  mortificação ou outra operação qualquer do gênero, na linguagem dos alquimistas, equivale à nigredo, ao desaparecimento da forma, uma experiência que lembra sempre a morte. Como o próprio nome indica, a cor da nigredo é o negro, cor do signo de Escorpião. O negro caracteriza, num primeiro momento, as trevas, a tristeza, o nada, a anulação de toda evidência e esperança. Entre os gregos, o negro era a cor do luto, da mágoa, da lástima; no latim, temos o verbo latino lugere, chorar a perda, de onde saiu a palavra luto. Uma operação que os alquimistas associam à solutio e à mortificatio é a putrefactio, a decomposição que destrói os corpos orgânicos mortos; está ela vinculada ao apodrecimento, que, sob o ponto de vista astrológico, é o prelúdio do renascimento, uma imagem escorpiana altamente positiva. Era por essa razão que muitos ritos de iniciação na antiguidade se realizavam à noite; o postulante atravessava uma morte simbólica num lugar escuro para se tornar um homem novo e renascer para a vida espiritual depois dessa travessia.

SERQET
Entre os egípcios, lembremos, o escorpião era consagrado à deusa Serqet, conhecida desde os tempos pré-dinásticos. O ideograma de seu nome lembra um escorpião aquático (nepa, para os latinos) e seus sacerdotes assumiam uma importante função na área médica, em particular quanto à cura de picadas de animais venenosos. Esta deusa era companhia inseparável de Ísis, que a levava em todas as suas peregrinações, devendo-se a ela, talvez, em parte, o poder desta última de transmitir a vida através da morte (renascimento), como nos informam os chamados Mistérios de Ísis.

Acolitada por Nephtis, Neith e Serqet, Ísis aparece também como  guardiã e protetora das vísceras e dos corpos a serem reanimados. Serqet desempenhava um importante papel nas cerimônias de embalsamamento como protetora das entranhas dos mortos. Era ela quem tomava conta do canopo (vaso destinado a conservar as vísceras), encarregada de manter “saudáveis” os intestinos. Aparecia a deusa, por essa razão, como grande protetora do morto e de seu sarcófago. Não é por acaso que no Egito um dos mais antigos hieróglifos é o do escorpião, encontrado no alto de alguns cetros de faraós.  
  
PUTREFACTIO
A putrefactio é a operação que melhor caracteriza o signo de Escorpião na medida em que durante o período em que o Sol o atravessa fica mais claro, mais nítido para nós, o desaparecimento da vida vegetal da face da terra. Chuvas e frio, galhos que se retorcem, que se quebram, folhas que rodopiam ao vento, tudo se espalhando sobre a terra para dar origem ao húmus, o elemento que possibilitará o aparecimento de novas formas de vida mais adiante. As águas perdem a sua fluidez, fixam-se, tornam-se escuras, lamacentas, trazendo, de um lado, imagens de estagnação, silêncio, decomposição, lodo, onde micro-organismos trabalham invisivelmente, e, de outro, invadindo tudo, odores fétidos materializados pelo gás metano, o gás dos pântanos. 

Os pântanos, como o de Lerna (oitavo trabalho de Hércules), carregados de matéria em decomposição, ao estender a sua influência pestilenta, sempre apareceram relacionados com o império do mal, do pecado e da perdição. A cercá-los sempre uma ideia de imobilismo, de uma passividade feminina. Foi por essa razão que o Budismo fez dos pântanos símbolos dos prazeres sensuais, obstáculos para a caminhada pela via óctupla. Lembremos que os pântanos, na Psicanálise, são imagens da vida inconsciente e lugar de germinações invisíveis. Na China, os pântanos são “centros espirituais”, onde o poder do céu se manifesta.
  
Toda operação alquímica, como se sabe, tem aspectos positivos e negativos. A solutio, quando experimentada como putrefacfio, é sempre negativa, dolorosa, um retorno, num primeiro momento, à prima materia dos alquimistas, para, quem sabe, dali se partir para  uma outra forma. Não é por acaso que figuradamente apodrecer pode tomar o sentido de permanecer muito tempo num lugar, inibir mudanças, transformações, apodrecer num emprego, por exemplo, ainda que sempre presentes, de médio para longo prazo, ideias de corrupção, de deterioração, de perversão. A putrefação é, nesse sentido, o triunfo da morte, de Thanatos.

THANATOS
(VON DER MARK, SÉC.XVIII) 
Thanatos é palavra que em grego sugere extinção, dissipação, transformação, escuridão. Insensível, Thanatos, dizia-se (Hesíodo), possuía um coração de ferro e entranhas de bronze. Era uma espécie de gênio da morte que estava sempre presente quando Átropo, a Moira, punha fim à vida de alguém, cortando o fio que o prendia à existência. A palavra Thanatos toma o sentido de ocultação, de algo que vai se desvanecendo, se apagando. Isto se devia ao fato de que o morto se tornava um eidolon, um corpo evanescente, insubstancial, uma energia fraca, bruxuleante, que guardava vagamente a forma física. 



G. DE  CHIRICO ( 1888 - 1978)
Thanatos, ao mesmo tempo que apontava para os gregos o aspecto perecível e impermanente da existência, sugeria também uma ideia de revelação e de regeneração. Era, como tal, a divindade que introduzia os humanos em mundos desconhecidos, enviando sua alma (psyche) ao Hades. Para Homero, psyche, ao se retirar do corpo físico na ocorrência da morte, transformava o agregado de membros e órgãos, o corpo do herói (soma) num cadáver sem movimento que logo iria de putrefazer. 

Para muitos, Thanatos lembrava que a morte podia ser vista também como um rito de passagem, ao abrir as portas para um reino diferente, indicando que a vida e a morte eram complementares. Para os que não o viam apenas desse modo, para os que sempre haviam orientado a sua vida só no sentido material, sua presença era espanto, terror e olhos esbugalhados. Não sendo um fim em si, Thanatos era também neste sentido libertação do sofrimento e das preocupações. 
                         
É no signo de Escorpião que encontramos, além das histórias de Hades, de Thanatos, de Osíris e de Dioniso, as Shiva que, talvez mais do que quaisquer outras divindades, nos fale da morte como de preparação para uma vida nova. Terceira pessoa da trimurti hinduísta, na qual exerce a função destruidora e, como tal, renovadora, é (foi) neste sentido, muito mais reverenciado pelos antigos povos védicos que Brahma (criação) e Vishnu (conservação), as outras duas pessoas da mencionada trimurti. 

SHIVA
Shiva nos diz que tudo que teve um começo, tudo o que entrou na existência e que adquiriu uma forma deve necessariamente ter um fim. Tudo que nasceu deve morrer. Tudo que tomou forma deve se desintegrar. O poder de destruição é a via que conduz à cessação do existir. Este poder universal de destruição pelo qual toda existência termina e do qual toda existência emana é chamado pelos hindus de Shiva. Ele é a tendência à dispersão, ao apodrecimento, à desintegração, à decomposição, à aniquilação. Quando o universo se estende indefinidamente, ele se dissolve gradualmente e cessa de existir enquanto organismo. Nada que existe escapa deste processo. Por

isso, a existência é apenas um estágio num universo que se estende (coagulatio) e se decompõe continuamente (solutio). É por isso, como nos dizem os hindus, que a destruição é tão divina quanto a criação e a manutenção. Ou seja, a destruição é a causa última, origem primeira, invisível, de toda a criação. Ele, Shiva, é para os hindus o estágio supremo do real, pois além dele só podemos falar do não-existente. Por isso, os Upanishads o descrevem como um abismo sem fundo.

Na sua forma destrutiva, Shiva aparece montado num touro branco (Nandi) e carrega nas mãos um tridente (trikala, trishula), símbolo da dissolução universal, um retorno à indiferenciação. Enquanto destruidor de todas as coisas, ele é Kala, o Senhor do Tempo. Lembremos que para os hindus há duas espécies de tempo. Um é corolário do espaço, o que nós percebemos, outro é o chamado Grande Tempo (Maha-Kala), uma eternidade sempre presente, indivisível e sem medida. Shiva é o dono dos dois. Nesse cenário, para os hindus, são os planetas que determinam os ritmos do tempo relativo, as condições do mundo como as percebemos, sendo os agentes das leis cósmicas que regem o destino humano 

SHIVA   E  TOURO  NANDI
Shiva encarna a tendência centrífuga, tem três olhos (Sol, Lua e Fogo). Seu olho central, frontal, é o da percepção transcendente. Quando ele olha através dele tudo é destruído, reduzido a cinzas. Sob sua fronte, ele leva um crescente lunar, como um diadema, para mostrar o seu poder de procriação, que sempre anda junto com o da destruição. O rio Ganges desceu dos céus em direção da Terra através de seus cabelos, sempre molhados por isso. Rios, simbolicamente, indicam o fluir das formas. A descida do Ganges em direção do oceano representa o retorno à indiferenciação; subi-lo, no sentido contrário, é  acesso ao Princípio, à Fonte Original. 


SHAKIT  DE  SHIVA
O lado feminino (Shakti) de Shiva tem como montaria (vahana) o tigre, sendo a pele do animal um de seus símbolos. Os quatro braços do deus representam a dominação universal; nesse sentido ele é dono das quatro direções do espaço e eles indicam também o seu poder sobre os elementos. O tridente, símbolo da solutio universal, é também nas suas mãos um instrumento de punição. A arma predileta de Shiva é, entretanto, o bastão (Pashupata), uma espécie de porrete com ponta de ferro, com o qual ele aniquila os seres do mal (daityas) e com o qual, no fim dos tempos, como ele o faz ciclicamente, destruirá o universo inteiro. Ao assim agir destrutivamente, ele usa, como Kali, uma de suas formas femininas, um colar de cabeças  em torno do pescoço. Além do porrete e do tridente, Shiva usa também o machado, o laço e o arco. Ao se apresentar sempre com uma serpente enrolada no seu corpo, ele nos dá a entender que ela é um emblema da imortalidade, ao representar o conjunto dos ciclos da manifestação universal, o samsara, encadeamento do ser no vir-a-ser, indefinidamente, da morte ao renascimento. 

Shiva nos anuncia também que a serpente é o símbolo do conhecimento perigoso, o da descoberta da sexualidade. Em muitas tradições, por isso, ela aparece como a tentação, portadora de forças perigosas e maléficas. Os hindus fizeram da serpente uma imagem da kundalini, a energia cósmica e sexual, o poder vital ou libido, adormecido no chakra básico (muladhara), entre a região anal e o sexo, devendo ele ser despertado, vitalizado e dirigido na direção do chakra da coroa (sahasrara), passando por centros vitais intermediários, sublimação compreendo sempre muitos tropeços e fracassos. 


ANANTA
Na Índia, há a imagem da grande serpente Ananta, que estendida sobre as águas primordiais, personifica a eternidade, formando ela com Shiva Narayana, a tripla manifestação da energia cósmica, una e imperecível. A  cidade luminosa de Shiva é Kashi (kash, brilhar), chamada de Varanasi, às margens do rio Ganges, onde se encontram os seus mais famosos templos.



VARANASI   OU   BENARES