sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

ESCORPIÃO (5)

      
Por sua grande afinidade com o interior da Terra, com o mundo ctônico, a serpente, como aparece nos mitos, não pode ser separada simbolicamente do signo de Escorpião. Lembremos que Ísis, a deusa dos encantamentos que traziam os mortos de volta à vida e mestra no uso dos venenos, era representada muitas vezes na forma ofídica ou escorpiônica. Perséfone, Prosérpina para os romanos, era chamada de aquela que avança serpenteando.


ARTES   DA   CURA  -  ÍSIS ( STELA METTERNICH )

Em grande parte das antigas civilizações, a serpente sempre foi considerada simbolicamente segundo uma dualidade que tanto a via como princípio e como fim da vida. Destrutiva, traiçoeira, perigosa, venenosa, e ao mesmo tempo criadora, benfeitora e regeneradora
URÓBORO
como a grande mestra das artes terapêuticas, a serpente deu inclusive, desde a mais remota antiguidade, forma ao símbolo maior da astrologia, o do uróboro (etimologicamente, em grego, cauda e engolir), o símbolo da serpente que engole a própria cauda. Um círculo que simboliza ao mesmo tempo a autofecundação e a vida que se renova perpetuamente. Já se disse que o zodíaco, além de ser um símbolo em si mesmo, era um símbolo carregado de outros e por isso mesmo talvez o mais complexo já elaborado pelo homem. Com seu ciclo e seus subciclos marcados pelos eixos equinociais e solsticiais o zodíaco integrou para sempre a serpente à vida, à morte e ao renascimento.

URÓBORO  -   EGITO
No antigo Egito, as serpentes e os escorpiões sempre foram consideradas ao lado do crocodilo e do hipopótamo como seres ambivalentes, tanto maléficos como, ao mesmo tempo, benéficos, uma encarnação de potências que  se matavam podiam também criar, fertilizar e regenerar. A importante presença desses animais no mundo religioso egípcio, usados inclusive sob formas híbridas para representar muitos deuses, espantou os gregos quando de seus primeiros contactos com a terra dos faraós. Logo entenderam, porém, os visitantes, como Plutarco, que aquelas representações constituíam a principal característica do pensamento religioso egípcio: nenhum ser vivente era totalmente bom ou totalmente mau. Os mais sethianos animais egípcios, sempre temidos, encarnavam também forças favoráveis e benfeitoras.


OSÍRIS    E   ÍSIS

Perceberam os gregos, que, opondo-se a Osíris, o Ser Bom, seu irmão Seth representava o mal. O primeiro simbolizava com Ísis, sua esposa, a fertilidade, as cheias do Nilo, a fartura, o renascimento. O outro confundia-se com a falta, com a carência, tendo por símbolos o deserto, o seco e a esterilidade. Osíris e Ísis
NILO
tinham poder sobre as extensas margens inundáveis do Nilo, nas quais a riqueza do país se renovava anualmente através da agricultura. Seth, por seu lado, sempre dominou os lugares desérticos, sendo representado por animais que neles viviam, animais que se opunham à vida do Nilo e à fertilidade dos campos, como os hipopótamos e os crocodilos, os primeiros destruindo as plantações e os outros atacando os camponeses e as populações ribeirinhas. 

ANÚBIS


Esta associação de Osíris e de Ísis com o Bem não impediu que de seus cultos participassem animais marcados por forte ambivalência, como o chacal e a serpente. O chacal, como sabemos, emprestou o seu corpo a Anúbis, uma das divindades mais antigas do Egito. Os epítetos deste deus sempre evocaram a vida do deserto, seu mundo natural. Com o apelido de Upuaut (aquele que abre os caminhos) é Anúbis o encarregado de conduzir o morto ao Outro Lado. É o chacal um animal noturno, necrófago,  psicopompo, devido à sua vivacidade e à sua esplêndida visão noturna.

Era também nas fronteiras do deserto com o mundo civilizado que viviam animais fabulosos, seres estranhos  conhecidos pelos nomes de afrit ou djin, muito reais para a imaginação popular. Estes animais perturbavam bastante a ordem estabelecida, de modo
SETH   ATACANDO   APOPHIS  
especial a caminhada do morto para o Duat, o Outro Lado. Eram muito temidos, sendo por isso necessário conhecê-los bem, todos manifestações de Seth. É no período histórico do Egito que encontramos imagens desses animais, principalmente no revestimento de túmulos e em ilustrações de textos funerários. Demônios entre o homem e o animal, animais fantásticos, seres híbridos, como o sha (cão com longas patas e cauda em leque), o saga (animal com cabeça de ave de rapina, mamas, patas de leão e de cavalo), o safer (besta com asas, cabeça de ave de rapina e cauda de leão) e o sedja (besta com cauda de leão e cabeça de serpente).  

É pelas razões acima expostas que podemos compreender também, segundo Plutarco nos informa, como a áspide, serpente que no antigo Egito era comparada a um astro celeste em virtude da extrema facilidade com que se deslocava e porque tinha a fama de não envelhecer, foi parar na religião. Tendo o corpo formado por sucessivas mudanças (mudas), tecnicamente ecdises, foi essa serpente no Egito, ao que parece, usada para dar forma a antigas concepções urobóricas do zodíaco. Perigosa, sethiana, potência maléfica, a áspide tinha um veneno mortal. Era, assim, invencível, razão pela qual não só foi colocada  emblematicamente na fronte de Ísis como também na coroa dos faraós. 


HÓRUS   E   O   ESCORPIÃO
O que se diz da serpente, poderá se afirmar também com relação ao escorpião, animal sethiano. Muito presente na religião egípcia, é conhecida a história de Hórus que, ainda uma criança, nos pântanos do delta do Nilo, foi atacado por um escorpião. Quem o salvou foi sua mãe Ísis, juntamente com Thot. Além de Ísis, o escorpião aparecia associado ao culto da deusa Serqet em cujos templos os seus sacerdotes exerciam um importante papel médico, como especialistas na arte da cura com relação aos ataques de animais em geral e de venenosos em particular. 


SERQET
A alternância entre o bem e o mal (enchentes e vazantes do rio Nilo), mais do que em qualquer outra antiga civilização, sempre esteve presente na vida dos egípcios, alternância que eles, desde que as primeiras tribos se instalaram no país, viveram anualmente, projetando-a inclusive no seu quotidiano. O rio Nilo ensinou aos egípcios que no universo tudo é duplo, que tudo funciona através de polaridades. Toda a religião do antigo Egito, através das histórias dos seus deuses, não foi elaborada senão para expressar esta e outras leis universais.


APOPHIS

O maior monstro da mitologia egípcia, Apophis, segundo vários textos cosmogônicos, nasceu de uma cusparada de Nut, grande deusa celeste, mãe dos deuses e dos astros. Nascido sob a forma
RA
ofídica, Apophis, diariamente, tenta interromper a caminhada da barca do deus solar Ra, engolindo uma grande quantidade de água para fazê-la encalhar no seu caminho eclíptico. Com esta ação, encetada a cada aurora e a cada crepúsculo, o monstro procura deter o Sol, impedindo assim a marcha do tempo, sempre um combate entre as forças das trevas e das forças da luz, diuturnamente renovado. Ra sempre vence Apophis, auxiliado inclusive por Seth, que, com a sua espada, ataca o monstro, que reaparece a cada manhã. O que nos fica deste importante episódio, como aliás os antigos  egípcios o consideravam, é que no universo a presença e a ação de Apophis são indispensáveis, pois a luz  só tem sentido quando pensamos na sua negação (as trevas). Esta passagem da mitologia dos egípcios é mais uma clara ilustração de que no universo, como nos esclarece o hermetismo greco-egípcio, os opostos são simplesmente os dois extremos de uma mesma coisa.         

Se estendermos o nosso olhar à antiga Grécia,  não é de se estranhar  também que os antigos gregos, num lugar sagrado como o da  Acrópole, onde pontificava Palas Athena, deusa que tem como um de seus principais atributos a inteligência refletida, introduziram, para defender a cidade, a imagem protetora de uma serpente.  Como se apurou, simbolizava tal serpente a alma de Erictônio, primeiro rei mítico da cidade, metade serpente da cintura para baixo, metade ser humano da cintura para cima, criatura monstruosa gerada pela própria deusa.

São inúmeras, entre os antigos gregos, as histórias em que as serpentes aparecem positivamente.  Uma delas, por exemplo, nos revela que  ao sugar as orelhas de certas crianças no berço,
  ARTE    DA    LÍNGUA    DOS    PÁSSAROS

sinalizadas pelos deuses, a serpente lhes concedia o dom da adivinhação ou o poder de entender a língua dos pássaros, além de lhes fazer participar simultaneamente do masculino e do feminino. Profetas e médicos célebres, como Melampo, por exemplo, receberam desse modo seus dons oraculares. Melampo é um personagem da mitologia grega que, associado à serpente, “vive” em companhia de muitos outros no signo de Escorpião, que têm a capacidade de penetrar no oculto. Melampo, o de pés negros, etimologicamente, um dia, encontrou uma serpente fêmea morta e ritualmente a cremou. Os filhotes, agradecidos, diz o mito, purificaram-lhe a língua e os ouvidos, lambendo-os. Tornou-se então um extraordinário mantis, capaz de traduzir os sons emitidos por todos os animais, inclusive o das aves, além de ter adquirido o conhecimento total sobre as ervas mágicas e medicinais. 

TIRÉSIAS

Casos semelhantes são os de Tirésias, o maior mantis (adivinho) da antiga Grécia, e de Cassandra, a princesa troiana, que obtiveram os seus dons através de contactos que haviam mantido com serpentes.
PITONISA   EM   TRANSE
O mesmo se diga com relação às sacerdotisas que, em transe, recebiam as mensagens de Apolo nas grutas do oráculo de Delfos, eram conhecidas pelo nome de pitonisas. Sentavam-se em pequenos bancos forrados com a pele da serpente-dragão Python que Apolo matara ao tomar posse do santuário, antes tutelado por Geia, a Grande Mãe, e por Têmis. 

Uma tradição caldaica, por exemplo, retomada com sucesso, segundo consta de registros gregos, tinha o nome ofiomancia, que consistia na formulação de presságios em função dos movimentos do réptil. A fé que os antigos gregos depositavam nesses presságios para o conhecimento do futuro era tamanha que quando uma serpente invadia uma casa um altar doméstico era levantado em sua honra. 

GENIUS   LOCI
Na antiga Roma, temos a mesma reverência à serpente, que em inúmeras regiões, representava o genius loci. Entre os romanos, os genii locorum tinham o status de divindades. Eram entidades imanentes tanto com relação ao ser humano como com relação a cada coletividade, cidade ou local. Imanente, como se sabe, é aquilo que está na interioridade de um ser, que nasce com ele, que lhe é inerente, que faz parte de sua natureza.

Esses gênios ou espíritos, em muitas regiões da península itálica eram venerados sob a forma de répteis ctônicos, de serpentes, o mais comum. Eles funcionavam de modo semelhante ao das ninfas gregas, como entidades protetoras, espíritos da natureza, que garantiam a vitalidade do lugar.  Se o lugar se degradasse, desapareciam. Ruínas, lugares abandonados, deteriorados pela ação dos homens sinalizavam que o gênio do lugar não fora reverenciado adequadamente. Quanto ao ser humano, o gênio era uma divindade tutelar que o acompanhava do nascimento à morte, como seu duplo, seu daimon, seu anjo custódio, seu conselheiro, atuando como uma espécie de super-ego. 

A serpente é um ser antiquíssimo, mantendo-se no aspecto como  a conhecemos há pelo menos cerca de 380 milhões de anos. Como o escorpião, do ponto de vista da sua funcionalidade, da sua eficiência, da forma que tem para agir no mundo, é a serpente um sucesso da natureza. Enquanto o homem é considerado pelas religiões e pela ciência como o ponto final de um longo, sofrido e discutível processo evolutivo, fracassado quem sabe, a serpente e o escorpião, há milhões e milhões de anos, permaneceram sempre os mesmos, continuando a nos surpreender ainda hoje com  o seu desempenho no mundo.    

É a serpente, como nosso ancestral mítico, mestre da fecundidade, e das mulheres, a incontestável dona de todos os valores noturnos. Como arquétipo fundamental, está ligada à vida inconsciente do ser
 KRISHNA    E   ANANTA
humano. Animal de sangue frio, desprovido de pelos, de penas e de patas, deslocando-se sobre o solo ou na água, podendo descer ao interior da terra, representa, com relação ao homem, o vitorioso início de um esforço evolutivo, sendo, com relação ao homem, seu complemento e oposição ao mesmo tempo. Não foi por acaso que os hindus a honraram como Ananta o símbolo do infinito e o sustentáculo da criação cósmica. Como tal, a serpente, juntamente com os peixes, os javalis, os crocodilos, as tartarugas e os elefantes, animais sem idade, na tradição hinduísta, são considerados como cosmóforos e imago mundi. 


PERSÉFONE
A serpente, furtiva e invisível, vivendo nas camadas profundas da terra, às quais pode descer por orifícios que só ela conhece, como se fossem as entradas para o Bosque de Perséfone, foi colocada simbolicamente pelo homem como um ser do mundo que está abaixo da sua superfície  consciente. Ela é secreta, enigmática, associada sempre à vida obscura. Compreender qualquer coisa ligada à serpente é compreender qualquer coisa ligada à morte, ao invisível, à adivinhação e ao renascimento. 

Uma das figuras míticas mais interessantes que podemos incorporar ao mundo escorpiano é Asclépio, deus médico de Epidauro, filho
RUÍNAS   DE   EPIDAURO
de Apolo. O nome Asclépio vem de uma palavra grega que significa toupeira. Esse animal, embora não o seja, é considerado cego porque gosta de viver em lugares escuros, em buracos no interior da terra, uma imagem da vida subconsciente. Toda a medicina de Asclépio fala de transformações através de processos como a enkoimesis (deitar e dormir), a oniromancia (interpretação dos sonhos), a metanoia (mudança de sentimentos) e da nooterapia (transmutação mental), processos que propunham uma reforma psíquica através do controle de sentimentos e emoções incubados. A questão da medicina psicossomática já estava perfeitamente definida em Epidauro, no centro médico tutelado por este deus. Componente importante do cenário onde este deus atuava, no chamado Labirinto, era a Grande Serpente, ser ctônico, símbolo da vida que renova constantemente. Não será difícil perceber por isso, acredito, para o leitor mais atento e informado, o quanto Asclépio está por trás da doutrina psicanalítica.

Quando o cristianismo primeiro e depois o islamismo, dissidências do judaísmo, se impuseram como religiões vitoriosas, o mundo masculino marcou a sua posição definitiva de poder em extensas áreas da Europa, da Ásia e da África mediterrânea, subjugando totalmente o princípio feminino. Essa vitória, como sabemos, ocasionou, em grande parte, dentre outras coisas, a destruição ou a satanização de todo o universo simbólico relacionado com uma ordem anterior, que política, religiosa e socialmente valorizava o mundo feminino e os seus símbolos.


SAMAEL
Os judeus, por exemplo, para proclamar e consolidar a vitória do princípio masculino sobre o feminino, sempre afirmaram que Caim era filho de Eva e da Serpente (nachash, em hebraico), a forma ofídica que Samael, o príncipe das trevas, líder dos anjos expulsos do céu, tomara não só para tentá-la como para com ela se relacionar sexualmente. E isto além de defender aberrações como a de que o princípio feminino (Eva) foi gerador pelo princípio masculino (Adão). É por esta e por outras razões que as religiões patriarcais precisaram e precisam,  para se afirmar e manterem-se no poder ou evitar desvios, de guerras, de aventuras colonialistas e, sobretudo, no plano mental, recorrer ao dogma e à fé, isto é, recorrer a um “conhecimento sem saber” que vive de uma hipotética e inatingível esperança no progresso da civilização, na elevação do nível de vida da humanidade, na vocação pacífica dos homens,  

Se formos ao mundo islâmico, temos as mesmas ideias com relação à mulher e aos seus símbolos. A imagem mais conhecida que o Corão nos dá da mulher é elaborada através de uma metáfora: a mulher é como que um campo que o homem deve fecundar. No mais, as recomendações de praxe encontradas na ortodoxia religiosa das religiões patriarcais: ela deve ser virtuosa, boa esposa, submissa com relação a seu marido e aos costumes estabelecidos, não cometer pecados, observar as recomendações de pudor e a quarentena, se menstruada, esta sempre considerada como um mal (adha), uma sujeira, e que ninguém se aproxime dela até que purificada. Não devemos nos espantar, entretanto, quanto a este último item, a menstruação. É só lembrar que em inglês, língua que nos é mais próxima e familiar, um sinônimo de menstruação nos meios religiosos é curse, palavra que quer dizer maldição, imprecação, execração. Como verbo, curse é atormentar com calamidades, infelicitar.

SERPENTE   DE   BRONZE
No geral, como em outras tradições, a visão que a ortodoxia religiosa do mundo muçulmano tem dos ofídios e da serpente, em particular, é negativa. Temida, evitada, seu simbolismo fica restrito não só aos males que ela causa como por fazer ela parte de um mundo de entidades maléficas agrupadas sob o nome de Íblis, muitas delas sobreviventes de um período histórico pré-islâmico. Íblis, etimologicamente, quer dizer Satan, o lapidado, a figura principal da demonologia islâmica. Por ter cometido o pecado do orgulho, não se prostrando diante de Adão, foi expulso do paraíso. 

É evidente que nos meios cultos islâmicos, como acontece em outras tradições, a serpente é simbolicamente ambivalente. Temida por um lado, satânica, ardilosamente tentadora, é, por outro, através dela que se pode entrar em contacto com o oculto, com a estrutura invisível do cosmos. Seu nome, nesse sentido, é hayya, nome que a liga à criação do mundo, assumindo ao mesmo tempo funções divinas, maternais, curativas e alquímicas. É neste sentido também que em antigos cultos agrários semitas ela aparece como dona dos presságios e dos poderes noturnos, nos quais o deus lunar tomava parte sob forma ofídica.