quarta-feira, 8 de novembro de 2017

TODAS AS MANHÃS DO MUNDO

         
CENA   DO   FILME   TODAS   AS   MANHÃS   DO   MUNDO

No início do séc. XVII, a Itália assumiu um papel inovador na cultura musical da Europa. A França, que no século anterior desempenhara esse papel, agora, no séc. XVII, se mostrava indiferente, se não avessa, às ondas renovadoras que partiam de Florença, de Roma, de Veneza e de outras cidades italianas, anunciando nascimento de uma nova moda cultural, de um novo gênero. A ópera italiana se impunha ao gosto musical europeu, um gosto que nascera e se desenvolvera no final do séc. XVI. A rigor, o nascimento da ópera pode ser fixado no final do séc. XVI, quando músicos e poetas italianos, ainda sob o influxo renascentista, procuraram recriar a perdida arte teatral dos antigos gregos. 

Na França, os instrumentistas se sentiam atraídos, diante da crescente influência da ópera no resto da Europa, pelo cultivo dos soli e de orgulhosa virtuosidade. O relevo de linhas melódicas criou todo um mundo de possibilidades inesperadas para os músicos franceses. Os solistas se transformaram em executantes respeitosamente ouvidos. Esta tendência deu nascimento à sonata e ao concerto, composições instrumentais. Com isso, a música instrumental ia conseguindo conquistar o seu lugar e demonstrava que a polifonia vocal não era a única capaz de traduzir nobres sentimentos e pensamentos. 


VIOLA   DI   BRACCIO ( GAUDENZIO  FERRARI , C.1535 )

Dentre os instrumentos que ganharam destaque no séc. XVII, um deles, o violino, graças, aliás, à Itália, de onde saíra para fazer uma tímida entrada na música das cortes no séc. XVI, assumiu um papel
VIOLA  DA  GAMBA
(JEAN - MARTIAL  FREDOU, 1710 - 1795)
muito importante. Fabricado pelos famosos
luthiers de Cremona, os Amati, os Guarnieri e os Stradivari, chegaram a todas as grandes capitais europeias. As violas começaram a perder importância. O alto e o violoncelo, por exemplo, colocariam num segundo plano a viola di braccio e a viola da gamba. O violino começou a dominar na música de câmara. De outro lado, o cravo de 45 notas fascinava uma legião de compositores, que com ele descobririam novas formas musicais.

RABAB
No séc. XVII, a viola da gamba era o nome dado a qualquer instrumento musical de uma família de arco largamente utilizada, caracterizada por uma caixa de ressonância de fundo chato, presença de trastes, seis cordas, posicionada verticalmente entre as pernas quando de sua execução. A viola da gamba, descendente da vihuela espanhola e do rabat mourisco, como sabemos, foi muito usada no Renascimento e no Barroco.


VIHUELA   DOS   ANJOS ,  CATEDRAL  DE  VALENCIA

Tendo vivido provavelmente entre 1640 e 1693, Sainte-Colombe, por se ter perdido o seu prenome, passou a ser chamado por historiadores da música, como era hábito então, de Monsieur
SAINTE - COLOMBE
Sainte-Colombe. Durante o séc. XVII, teve muita fama como compositor e instrumentista, sendo o mais famoso tocador de viola da gam
ba de seu tempo. O que se sabe dele, muito pouco, foi obtido nos Arquivos Nacionais Franceses e retirado de depoimentos de alguns de seus alunos, que deixaram seu nome na música francesa. Em sua obra Le Parnase Français, de 1732, Evrard Titon Du Tillet nos revela que Sainte Colombe vivia retirado e que oferecia às vezes recitais em sua casa, dos quais suas filhas, Françoise e Brigide,  participavam.   

A dificuldade para a obtenção de informações sobre Sainte-Colombe, conforme atestam outros depoimentos da época, deve-se a ele mesmo, ao seu temperamento irritadiço, esquivo e fugidio.

Viveu sempre recluso, evitando contactos, nenhuma vida social. Modesto e, ao mesmo tempo orgulhoso, porque consciente da qualidade excepcional de sua música, tanto como compositor como instrumentista, Sainte-Colombe acentuava também estas características de sua personalidade pelo fato, segundo depoimentos, de ser jansenista, “quase um protestante” como chegaram a afirmar alguns de seus contemporâneos. No filme Todas as Manhãs do Mundo Sainte-Colombe é um homem de meia idade, refugiado na sua casa de campo, longe da corte. Ali, recusando-se a aceitar os favores reais, ensina a sua arte às suas duas filhas. Este é quadro familiar desse mestre quando se inicia o filme e lhe aparece o jovem Marais, pedindo-lhe aulas e logo se tornando pretendente da filha mais velha.  


CORNELIUS JANSENIUS
( ANÔNIMO)
O jansenismo, lembre-se, é um conjunto de princípios estabelecidos por Cornélio Jansenius (séc.XVII), bispo de Ipres, condenado como herético pela Igreja Católica. Os princípios jansenistas enfatizavam a predestinação e negavam o livre-arbítrio sustentando ser a natureza humana por si só incapaz de realizar o bem. O jansenismo se irradiou como movimento político a partir da abadia de Port-Royal, que fazia oposição a Luís XIV, prolongando-se por todo o séc. XVIII. A palavra jansenista acabou como adjetivo na língua francesa para designar pessoa de austeridade extrema, rigor na aplicação de preceitos religiosos e morais, rigidez de costumes.

SAINT - GERMAIN  L'AUXERROIS
Pesquisas recentes levantam a hipótese de o prenome de Sainte-Colombe  ser Jean e que ele teria residido em Paris, oriundo de uma família lionesa, na atual Rue de Rivoli, na paróquia de Saint-Germain l'Auxerrois, onde teria residido também o seu mais famoso aluno, Marin Marais, que depois ocupou o lugar de gambista solo na corte de Luís XIV. O nome de Sainte-Colombe está ligado à origem da sétima corda da viola-baixo, da família das violas. Com esta corda, o instrumentou ganhou em extensão sonora e maior riqueza expressiva. Entre composições suas que chegaram até nós temos os 67 Concerts à deux violes esgales, as 6 Suites pour basse de viole seule e Le Tombeau des Regrets. Deixou um filho natural, conhecido pelo nome de Sainte-Colombe, fils, que também compunha e tocava violas; indo para a Inglaterra, lá lecionou música e a arte do instrumento. Deixou em homenagem ao pai uma elegia fúnebre chamada Tombeau de Sainte-Colombe. 


MARIN   MARAIS  ( ANDRÉ  BOUYSOVI , C. 1704 )   
Marin Marais (Paris, 25 de maio de 1656 - Paris, 15 de agosto de 1728) era de modesta origem; o pai (cordonnier) fabricava sapatos. Socialmente, na família de Marais, a figura de maior destaque era um tio paterno, que seguira a carreira eclesiástica, sempre um meio de ascensão para os membros das classes menos favorecidas. A outra possibilidade ascensional para os representantes das classes baixas estava na carreira militar, como nos deixou descrito de forma inesquecível Stendhal em Le Rouge et le Noir (O Vermelho e o Negro).

Depois  de  ter feito  parte do coro de Saint-Germain-l´Auxerrois, Marin Marais aprendeu viola-baixo e aos 16 anos tentou se tornar aluno de Sainte-Colombe. Segundo algumas versões, fantasiosas, quem sabe, conta-se que Sainte-Colombe teria desistido de dar lições ao jovem Marais, sentindo-se ameaçado pelo talento do jovem. Alguns relatos nos informam que Marais escondia-se no jardim da casa de Sainte-Colombe para ouvi-lo, procurando assim desvendar os segredos de sua genialidade. 

NICOLAS   HOTMANN
Parece estar comprovado que Sainte-Colombe foi aluno na sua juventude, na corte francesa, do instrumentista belga Nicolas Hotmann, que se destacou como músico de Luis XIV. Segundo o Novo Dicionário Grove de Música e de Músicos, foi deste belga que saíram as primeiras composições para a viola da gamba, tocadas até hoje na forma de danças.



JEAN - BAPTISTE  LULLY
Marais  conseguiu um lugar na orquestra da Academia Real de Música, então dirigida por Jean-Baptiste Lully, nome afrancesado do italiano Giovanni Battista Lulli, que o protegeu. Em 1676, casou-se com Catherine Darnicourt. Com ela, segundo alguns biógrafos, teve mais de dez filhos. Em 1679, Marais obteve o cargo de tocador de viola (gambista) da câmara de Luís XIV, cargo que acumulou com seu trabalho na Ópera, por cerca de 40 anos.

Autor de óperas (Alcide ou Le Triomphe d´Hercule, Arianne et Bacchus, Alcyone, Sémelé) e de música instrumental (5 Livres de pièces à une et deux violes avec basse continue, além de outros). Marais rejeitou a música italiana, inscrevendo toda a sua produção na tradição francesa, sempre muito mais “luminosa” se a compararmos com a de seu mestre Sainte-Colombe. Suas peças para viola, cerca de 700, se caracterizam por um grande refinamento harmônico, por seu caráter elegíaco e por uma escrita tanto rigorosa quanto solta, leve, o que lhes dava um ar de improvisação. Sabe-se que em 1701 Marais foi convocado para dirigir musicalmente uma cerimônia em honra ao delfim da França, na qual se reuniram, entre músicos e cantores, cerca de 250 participantes, e foram interpretadas peças suas. Assumiu depois o cargo de maestro permanente da Ópera. Mais para o fim da vida, a estrela de Marais empalideceu um pouco, tanto devido a novos nomes que surgiram no cenário musical francês como pela pouca receptividade de sua última obra operística (Sémelé). Até a morte de Luís XIV, Marais continuou a tocar viola da gamba na corte e a dar aulas, atividade que se prolongou até o final de sua vida, em 1728.




O que está acima entendo ser útil para uma apreciação mais abrangente de um dos melhores filmes feitos sobre a chamada música clássica e, em especial, a do período barroco, Todas as Manhãs do Mundo, de 1991. Não foi por acaso, aliás, em que pesem algumas concessões ao (mau) gosto de certo público (cenas de sexo, que também foram parar na capa do DVD, editado pela Koch & Lorber, na França) e alguns desvios históricos, que o filme se constituiu em sucesso de bilheteria e de crítica (evidentemente na Europa), ganhando muitos prêmios. 

ALAIN   CORNEAU
Alain Corneau, o diretor do filme, fez seus estudos secundários e preparatórios em Orléans, onde, num ginásio local, teve como professor um jovem que se tornaria em pouco tempo um dos maiores mestres franceses em História antiga, especialista em mitologia grega, Pierre Vidal Naquet (1930-2006), que parece tê-lo influenciado bastante.  De origem judaica, de esquerda, Naquet, cujos pais foram mortos em Auschwitz, ainda adolescente, participou da resistência francesa durante a guerra e, mais tarde, dos movimentos pela libertação da Argélia. Na década de 60 já era um nome importante nos meios culturais do país.

Crescendo num ambiente familiar fortemente marcado pelo cinema e por ele influenciado na juventude, acabou Alain Corneau optando inicialmente pela música (jazz), tendo participado de diversos grupos como baterista. Todavia, o deslumbramento pelo cinema, o americano de modo especial, pesou mais. Inscreveu-se no IDHEC, desenvolvendo, com muita versatilidade, estudos entre a realização cinematográfica e temas históricos, artísticos e psicológicos. A esse tempo, mantinha ligação com um grupo de atores de primeira do cinema francês, gente como Patrick Dewaere, Marie Trintignant, Bernard Blier e outros. 

Depois de trabalhar como realizador de documentários e assistente de direção com Costa-Gavras, Roger Corman e Nadine Trintignant, com quem passaria a viver e se casaria mais tarde, em 1998,  realizou, em 1974, o seu primeiro filme, France Societé Anonyme, por ele repudiado. Dentre seus filmes mais conhecidos, inicialmente, destacamos A Ameaça, Série Negra, A Escolha das Armas e Noturno Indiano, este último de 1989, baseado numa história de Antonio Tabucchi, filme com o qual abandonou o cinema comercial.  


PASCAL   QUIGNARD
Pouco tempo depois, seguindo a mesma linha, interessou-se por uma história de Pascal Quignard, Todas as Manhãs do Mundo, na qual a música ocupava lugar de grande destaque, tendo como tema as relações entre dois compositores e instrumentistas do séc. XVII, Sante-Colombe e Marin Marais.  Pouco depois (2002), voltou-se Corneau para o Japão, realizando um filme notável, Stupeur et Tremblement, nunca exibido no Brasil ao que me conste. Em 2004, Corneau recebeu o prêmio René Clair pelo conjunto de sua obra. Em 2006, Gregory Marouzé realizou um documentário sobre sua obra e sua influência no cinema francês, Alain Corneau, du noir au bleu. Faleceu em 2010, aos 67 anos, levado por um câncer pulmonar, pouco depois de ter terminado Crime de Amor. Ao se despedir de Corneau, no cemitério, Nadine declarou para os amigos presentes que son double (seu duplo) se fora.

A história de Todas as Manhãs do Mundo  tem como cenário os anos de 1650, durante o reinado de Luís XIV, período profundamente marcado pelo artificialismo da vida social e pelo culto da aparência. Nesse mundo, Sainte-Colombe foi uma exceção. Depois de ter perdido a mulher, fechou-se totalmente na sua arte, dedicando-se obsessivamente a ela. Foi apontado como um renovador da técnica de se tocar a viola da gamba. Foi durante esse período que Marin Marais, então muito jovem, procurou-o para se aperfeiçoar como instrumentista. O filme é, no fundo, a história da solidão de um homem que, com a sua arte, põe em relevo aquilo que é essencial como vida para que o melhor de si, como artista, apareça.

O filme tem natureza confessional e é narrado do ponto de vista de Marin Marais já velho. Empoado e com sua peruca cacheada, cuja imagem Corneau destaca com um surpreendente e longo close up, Marais nos fala de seu mestre. Irritado com o barulho que os estudantes de música faziam, Marais grita, pedindo silêncio, para que ele possa falar sobre o gênio que fora Sainte Colombe. Temos dois temperamentos no filme, iluminados inclusive de um modo diferente, quando fotografados. Podemos dizer mesmo que a maior parte das cenas do filme de Corneau faz uma referência verbal ou visual à luz não só com relação aos dois personagens principais como com relação ao mundo e aos valores que Sainte-Colombe e Marais representavam. 

SAINTE   COLOMBE   E   MARIN   MARAIS
É de se notar, quanto a este aspecto “luminoso” do filme, como há sempre perto, ao lado, atrás, de Sainte-Colombe um candelabro a iluminá-lo, seja fazendo ele a sua música ou se comunicando com o fantasma de sua mulher. É com esta observação, acredito, que podemos falar de Sainte-Colombe como Marais o sentiu na velhice: um músico que não procurava a grande música ou a boa música, mas, simplesmente, a música em si mesma, uma arte consagrada aos mortos ou uma proteção contra a nossa própria morte. Por isso, as referências a túmulos, ao Hades grego, à barca de Caronte...     


Para transformar a obra de Quignard em filme, Corneau contou
JEAN - CLAUDE   CARRIÈRE
com a preciosa colaboração de Jean-Claude Carrière, premiado roteirista, escritor, diretor e  ator  francês, que sempre trabalhou  com grandes diretores, como Luis Buñuel, Peter Brook, Ettore Scola e muitos outros. No elenco, nos principais papéis, estão Jean-Pierre Marielle (Sainte-Colombe), Gérard Depardieu (Marin Marais) e Guillaume Depardieu (Marin Marais jovem). 

JORDI  SAVAL  E
 MONTSSERAT  FIGUERAS  
Um dos pontos altos do filme é a sua excepcional trilha sonora, sob a responsabilidade do músico e compositor catalão Jordi Savall (1941), grande mestre, na atualidade, da viola da gamba e de outros instrumentos antigos. Jordi Savall, foi casado com a grande cantora Montserrat Figueras, é o fundador de três conjuntos, Hesperion XX, Hesperion XXI e La Capella Reial de Catalunya, cujos repertórios ele vem apresentando no mundo todo (inclusive em São Paulo) o que há de melhor na música do Renascimento e do Barroco. Premiadíssimo, sua discografia alcança mais de cem gravações. Hoje, Savall lança os seus discos por sua própria editora, o selo Alia Vox.

COUPERIN
Da trilha musical do filme fazem parte também peças de Couperin e de Lully. No seu conjunto, estas peças, com as de Sainte Colombe e Marin Marais, naturalmente, nos dão um razoável panorama da música barroca do século XVII. Lembre-se que Lully pontificou no reinado de Luís XIV como a figura musical mais importante da época, sendo também o responsável pelos espetáculos de dança que montava para o rei se exibir como dançarino.

YVES   ANGELO
A excepcional fotografia do filme é de Yves Angelo, que também fotografou de Corneau o seu Noturno Indiano. Às vezes, Angelo assume também a direção, tendo na sua filmografia a realização de O Coronel Chabert e de As Almas Cinzentas. Na direção de arte, Corneau contou também com a colaboração de outra grande figura do cinema francês, Bernard Vézat, que participou, como diretor de arte, dentre outros filmes, de Camille Claudel, de Bruno Nuytten, O Coronel Chabert, de Yves Angelo, O Novo Mundo, de Alain Corneau e de A Filha do Pai, de Daniel Auteuil.



A fotografia de Todas as Manhãs do Mundo tem a explicá-la, sem dúvida, os ensinamentos, muito bem aproveitados por Yves Angelo, daquele que foi um dos maiores diretores de fotografia do cinema, Henri Alekan. A experiência mais radical e fascinante de Alekan quanto ao uso da luz, ele a realizou quando, em 1961, fotografou La Princesse de Clèves, de Jean Delannoy. Foi este, ao que me conste, o primeiro filme iluminado inteiramente pela luz de velas.

Alekan (1909-2001), que trabalhou com G.W. Pabst, Max Ophuls, Marcel Carné, Jean Cocteau, Win Wenders, Raul Ruiz e outros grandes diretores, escreveu talvez o melhor trabalho sobre a relação cinema-fotografia-iluminação. O trabalho tem por título Des
JOHANNES   VERMEER
Lumières e des Ombres
(Sobre Luzes e Sombras), com uma introdução de Joseph Losey, um prefácio de Alain Robbe-Grillet e um posfácio de Marcel Marceau (que poderíamos querer de melhor se temos um time destes patrocinando a publicação de um livro?). Esse texto de Alekan e seus trabalhos no cinema, naturalmente, estão por trás das experiências felizes ou não de muitos diretores de fotografia. A isto que afirmo aqui temos que acrescentar também a influência que Nestor Almendros (o preferido de Truffaut e Rommer, por exemplo) exerceu e vem exercendo sobre diretores de fotografia na medida em que provou
EDWARD   HOPPER ( 1882 - 1967 )
com o seu trabalho cinematográfico como as imagens de um filme podem ser enriquecidas se o fotógrafo tem incorporado à sua noção de estética o conhecimento da obra dos grandes mestres da pintura do passado (Johannes Vermeer, 1632 - 1675 )e do presente (Edward Hopper).  

Merece ainda referência, quanto a este tópico, a pesquisa histórica feita para a realização do filme, especialmente quanto aos figurinos, cenografia e iluminação (fotografia), toda ela baseada na obra pictórica de Georges La Tour, gênio da pintura francesa que viveu entre 1593 e 1652. Neste particular, não é possível deixar de salientar a influência do chamado caravagismo na obra de La Tour. Na sua obra, La Tour explorou magistralmente todas as possibilidades expressivas da iluminação noturna (a fonte de luz
GEORGES   DE  LA   TOUR
proveniente quase sempre de uma vela). As formas tendem à abstração, simplificadas, esculturais, e contribuem ao extremo para a concentração da expressão, quase sempre recolhida e serena, quase nada dramáticas. Nesse mundo de La Tour a luz ganha não somente um valor construtivo, mas místico. A quase totalidade das obras de Georges de La Tour se encontra no museu do Louvre (La Madeleine à la veilleuse, Les Mangeurs de pois, Le Tricheur etc.). La Tour é, decididamente, para poucos, muito poucos...

Outra anotação que não podemos deixar de fazer é a de que Todas as Manhãs do Mundo, com suas imagens, cenografia, figurinos e cenários é, como não poderia deixar de ser, um filme, no seu todo, tributário do Barroco (etimologicamente, pérola irregular), uma forma de arte nascida na Itália. Invadindo a música, a pintura, a escultura, a arquitetura e as artes decorativas, o Barroco incorporou elementos do Renascimento e do Maneirismo, ligando-se assim à estética da Contra-Reforma. Há que se destacar aqui, porém, um fato importante: enquanto a maior parte dos artistas desta época, compositores sobretudo, como Lully, optava pelo meraviglioso, por uma ornamentação elaborada, exuberante, cheia de floreios, e pelo virtuosismo instrumental, Sainte Colombe procurava um sentido contrário. No barroco francês, ele foi uma personalidade muito mais ligada ao oscuro, às sombras, do que à luz. É por isto que nele sua persona parece ter coincidido com o que ele era interiormente.