segunda-feira, 2 de novembro de 2015

THYMOS, PHRENES E TYCHE

  
GRÉCIA - SÉCULO V AC
           
Do século V para o século IV aC, as instituições políticas gregas, aquelas que os atenienses haviam criado desde o fim do período arcaico (séc. VIII aC), perderam a sua força. O mundo grego, Atenas em especial, sua polis mais importante, sentiu que os valores do passado, alguns ainda presentes, já não mais atendiam aos anseios de seus cidadãos. As tendências sociais que então começaram a se instalar, ao invés de motivadas por valores político-religiosos, modelados pela religião olímpica, que tinham em Apolo sua divindade condutora, se voltavam agora, nos séculos apontados, para a evasão, para a autoindulgência, para uma atitude de desdém com relação à vida pública, para uma contemplação indiferente diante do que acontecia.

DEMÓSTENES
O povo ateniense parecia mostrar-se a esse tempo completamente desinteressado dos negócios da cidade, nem mesmo motivado para defender a liberdade grega ameaçada por Felipe da Macedônia. Os discursos angustiados de Demóstenes são uma prova mais do que evidente do que acontecia. O desinteresse pelos negócios do Estado, como sempre, eram explicados pela crise econômica e social que o mundo grego atravessava então, acrescentando-se a esta crise o fracasso que foi a guerra do Peloponeso para a Ática. Empobrecida e desiludida, Atenas praticava uma democracia de fachada, algo apenas puramente formal. 


EPICURO
Os gregos começavam a pagar um alto preço por terem apostado, com todas as suas forças, na eternidade da comunidade-polis, na sua organização política, no seu estilo de vida, na proteção que dela obtinham emocional e espiritualmente. 

Quando a polis se revelou inviável, não apenas politicamente, mas com relação a um estilo de vida, quando as exortações a uma regeneração moral se tornaram inúteis, descabidas e até insultuosas, o grego ateniense começou a buscar novos valores, novas divindades. Nem mesmo, como uma última tentativa de reverter esse quadro, as guerras de conquista e as aventuras colonialistas entusiasmavam mais, recursos sempre usados pela elite dirigente  quando internamente as coisas iam mal. À medida que tudo isto se tornava evidente, notório, as ideias sobre a religião, a sociedade e a moralidade sofreram transformações correspondentes. Um grande cansaço e um crescente desânimo tomaram conta dos gregos atenienses.

O século IV na Grécia foi por isso marcado por períodos de grande ativação de cultos religiosos de mistério e orgiásticos e de práticas de magia, entronizando-se nesse mundo, ao final do período, a
TYCHE
figura da deusa Tyche, a Sorte ou a Fortuna. Em grego, o nome da deusa vem de um verbo que significa alcançar por acaso, por sorte, traduzido pelos substantivos acaso, fado bom ou mau, prevalecendo, contudo, a ideia de bom êxito. Aos poucos, o Acaso foi substituindo o que as divindades da morte, as Moiras, as Fiandeiras, sobretudo, haviam imposto até então, a ideia de que na vida todos têm um pedaço, um quinhão, do qual não se pode fugir. O inevitável, o determinado, o destino cego, ao qual os próprios deuses se submetiam, foi dando lugar a uma possibilidade, a de que era possível, com alguma sorte, "atingir um alvo", escapar da mão pesada do Destino, outro significado que o culto a Tyche punha em circulação. O tom de fatalidade passou a dar lugar ao sonho, o de que era possível alcançar alguma coisa, de que era possível escapar da lei de causa-efeito, que era possível, com 
alguma sorte, ter esperança. Era só não errar o alvo e estar no lugar e no momento certos.

A deusa Tyche nunca teve propriamente um mito. Era representada por uma figura feminina cega. Tinha um pouco de providência, um pouco de causalidade, uma dosagem que dependia afinal, em grande parte, da conduta humana. Tyche era a divindade do destino, símbolo do capricho e da arbitrariedade que passou a comandar a existência. Implacável, não por maldade, mas por uma espécie de indiferença às consequências de seu capricho. Era representada muitas vezes com a cornucópia. Favorecia a fecundidade, a abundância, a vitória, mas, podia, sem razão alguma, retirar tudo o que proporcionara, independente do mérito de cada um.

De um modo geral, para penetrar no mundo da magia grega será preciso descer aos abismos do inconsciente, como a figura da deusa Tyche a ele nos remete. Nada de Apolo, portanto, que é o deus do
PALAS  ATHENA  ( KLIMT )
conhece-te a ti mesmo, do nada em excesso, suas máximas inscritas no oráculo de Delfos, ou de Palas Athena, a deusa das acrópoles, guia de heróis. Para ampliar o nosso enfoque, devemos nos aproximar, não do campo do nous (inteligência enquanto percepção do mundo) ou do logos (faculdade de raciocinar), mas, sim, do campo do que os gregos chamavam de thymos (sentimentos, afetividade, coração, enquanto princípio orientador da vida) e de phrenes (entranhas). 

É preciso lembrar que o mundo do thymos permaneceu subterrâneo durante toda a civilização grega. Acima, pontificaram,
APOLO
principalmente no período clássico da história grega, os deuses da religião olímpica, principalmente os cultos de Apolo e de Palas Athena, que sempre falaram aos gregos de vida espiritual, de gênio artístico, de juventude, de beleza e de progresso. Nos novos tempos, destronados, com o cansaço e a desilusão da sociedade, deram lugar a Tyche, nitidamente uma divindade dos períodos de decadência, de crise social, de desinteresse até pela vida moral.

É preciso lembrar que no mundo grego, desde Homero, há uma tradição subterrânea que está infiltrada nas profundezas da vida grega, desde o final do período neolítico. Entenda-se: os estudos gregos, tanto os mítico-religiosos como os filosóficos, com poucas exceções, sempre foram dominados por uma visão oficial de helenistas muito famosos, cheios de títulos acadêmicos pomposos, a maioria presa a uma tradição platônico-aristotélica, que pouca ou nenhuma atenção deu ao que o thymos e o phrenes significaram para o mundo grego. Tais helenistas sempre priorizaram o logos, a ratio dos latinos, em detrimentos dos outros dois conceitos.

PLATÃO
Platão, por exemplo, sempre opôs os conceitos de thymos, de phrenes e de mythos ao de logos, dando a esta palavra o sentido de verdadeiro, de opinião correta.  Daí a sua aversão pelos poetas, seres que nunca entrariam na sua cidade ideal, que produziam textos perigosos, plurívocos, isto é, textos que poderiam ser interpretados de várias maneiras, que sempre colocavam os homens uns contra os outros. Por essa razão também o conflito que a tradição platônica manteve com a sofística. Platão sempre defendeu a ideia de uma verdade objetiva universal que levasse a uma lei moral verdadeira para todos. Os sofistas, ao contrário, falavam que não há o Homem, mas simplesmente homens, que não são naturalmente iguais, sendo, portanto, as leis, como tudo o mais que eles estabeleciam algo convencional, mutável sob o ponto de vista histórico e geográfico.

Outro conceito fundamental da religião olímpica, apolínea, ao qual Tyche se contrapunha frontalmente, era ao de Ananke, conceito que
ANANKE
tanto encerrava ideias de coação e violência como de fatalidade. Em torno desse conceito se reuniam várias divindades femininas que, de modo providencial, tinham por finalidade, através de sua ação, de fazer a reposição de limites. Qualquer excesso praticado pelos mortais, no sentido do bem ou da mal, provocava a sua intervenção. As Moiras, Nêmesis, as Erínias, as Keres e outras divindades atuavam como representantes de Ananke, conceito que encerra ideias de algo mecânico, de inexorável. Era o próprio agir humano que determinava qual dessas deusas viria para constranger aquele que se desviasse da conduta correta, que a religião
AS   MOIRAS  
olímpica, aristocrática, apolínea, impunha. Uma coação que obrigava o criminoso, com maior ou menor sofrimento, a voltar aos limites dos quais ele nunca deveria ter saído. A essas deusas que atuavam através da Ananke se dava também o nome de agentes da Necessidade, entendida esta palavra como um constrangimento exercido sobre os desejos e as ações do homem pelo encadeamento inevitável dos princípios, das causas e dos efeitos. Desta maneira é que a necessidade se confundia com a Fatalidade.  

O conceito de Ananke passou a ser usado na filosofia, desde os pré-socráticos. Ananke era o necessário, aquilo que governava tudo de modo providencial, aquilo que não podia deixar de acontecer. Neste sentido é que Ananke se opunha não só ao problemático como ao que existe pura e simplesmente. É como tal uma necessidade moral, um dever, que se propõe ou se opõe à liberdade humana, embora não a constrangendo ou a ela se impondo de modo absoluto. 

Do mundo de Tyche fazem parte conceitos como acaso, indeterminação, ambiguidade, alternância, ambivalência, probabilidade, relatividade. A melhor maneira de tentar fixar melhor o que Tyche queria dizer para os antigos gregos é o de se buscar a sua etimologia, ir ao verbo tynkhanein, que antes de significar alcançar por sorte ou ter êxito sugere uma intervenção divina, um poder para o qual os humanos não têm explicação.  Por isso, com Tyche, ao longo da história da humanidade, pensavam os gregos, nos períodos de decadência,  vemos tantos exemplos do Mal triunfante, da sua não condenação, ou, mesmo, o que é mais comum, do Mal quando travestido de Bem, com uma espantosa e assustadora evidência, ser tão procurado pelas recompensas que oferece.

Opondo-se ao logos dos filósofos, isto é, a uma Grécia (Atenas, principalmente) que se considerava luminosa, rica, olímpica, criadora dos grandes valores e das instituições, que estava no centro de uma inigualável produção artística, a vida cotidiana dos gregos, do homem comum, inclusive da sua aristocracia, era grandemente dominada por aquilo que os gregos  chamavam, como dissemos, de thymos e de phrenes. O primeiro era um lugar no  interior do pensamento (subjetividade) e o segundo um lugar-sede das paixões.

No corpo humano, como já mitologia nos descrevia, o thymos e o phrenes estavam localizados na região peitoral, próxima do coração. Ambos eram diferentes da psyche, sopro, respiração, que animava o corpo (soma) e que, na ocorrência da morte, escapava pela boca do ser humano, como está em Homero, e que se encaminhava para o Hades, o mundo infernal, na forma de um eidolon, um simulacro da antiga forma humana, em estado de eterna evanescência. Se era pelo thymos que na antiguidade o grego
ARISTÓTELES
sentia, era pelo phrenes que ele agia. Aristóteles, ao contrário do poeta, dará uma nova versão disto que aqui se expõe: para ele, era o thymos que impelia o herói à ação, em função da sua percepção (aisthesis). Aristóteles, lembre-se, chamava de aisthesis koiné o senso comum, uma faculdade da psyche e era na região do peito que, tanto para Platão como para ele, que se localizava a epithymia, o desejo.


Para o entendimento de como estes conceitos se revelavam na Grécia antiga, uma abordagem da personalidade de um de seus maiores heróis, Aquiles (figura acima), é sempre interessante. Bravo e destemido como nenhum outro, Aquiles é a imagem do guerreiro ideal. Ao lado de uma incomensurável ferocidade nos campos de batalha, era capaz, por outro lado, noutros momentos de sua vida, de demonstrações de uma terna sensibilidade, chorosa e soluçante, incomum mesmo nas mulheres. Inteiramente governado pelo que o peito (phrenes e thymos) lhe ditava, foi considerado pelos estoicos como um ser carregado de pathos (sofrimento), um frenético dominado pelas paixões, muito diferente de Ulisses, um herói dominado pela prudência (pronoia), pela sabedoria e pela moderação (sophrosyne). 



EURÍPEDES
Foi no teatro, na tragédia, como aparece no fim do período clássico da  história grega, que os temas acima expostos se revelaram de um modo muito contundente. Quem os expôs, como nenhum outro, foi Eurípedes, ao descrever os demônios que vivem no interior do ser humano, com o seu teatro todo construído sobre as paixões. Em vida foi Eurípedes o menos prestigiado dos três maiores nomes da tragédia grega. Depois de morto, no correr dos tempos, tornou-se o mais importante porque o mais universal, sobrepujando os excepcionais Ésquilo e Sófocles. É de Eurípedes, ao substituir as Moiras por Tyche, a observação de que o coração humano é o grande laboratório do trágico. 

Para explicar as profundezas da personalidade do antigo homem grego, temos hoje à nossa disposição alguns estudos clássicos,

como o de E.R. Dodds, o excelente Os Gregos e o Irracional, que levanta o problema das forças instintivas e irracionais na antiga sociedade grega. Recorrendo à antropologia e à psicologia, amparado por sólidos e abrangentes conhecimentos sobre mitologia, religião olímpica e filosofia, Dodds nos demonstra que na cultura grega havia talvez mais loucura que racionalidade.

Mas o que aqui nos interessa não é a cultura grega como, em que pesem os seus desvios, produto de um corpo organizado de conhecimentos racionais, ao qual Aristóteles procurou dar forma com a sua episteme. Move-nos a intenção de procurar informações

sobre uma outra Grécia, a vivida pelo homem comum, informações que sobretudo a arqueologia vem colocando à nossa disposição. Livros como Les Mages Hellenisés, de J.Bidez e F.Cumont podem ser um bom início desse contacto, se não for possível, é claro, para os realmente interessados neste assunto, que as leituras e os estudos se completem com visitas à Grécia, às suas pequenas cidades e vilas do norte, principalmente, e às ilhas do Egeu para se conhecer como tudo isto ainda está presente no cotidiano grego, mesmo levando-se em conta os séculos de dominação otomana, a forte presença da religião grega ortodoxa e, naturalmente, hoje, a praga do turismo de massa. No geral, ignorados pelo helenismo oficial, presentes apenas nas obras de alguns eruditos, falamos da Grécia das práticas obscuras, do comércio  religioso popular, das maldições, dos epitáfios, das tabuinhas, dos amuletos, dos sortilégios, da magia, encontrados nos cemitérios, nas procissões, nos mercados, nas encruzilhadas, de como tudo isto se infiltrou nos cultos domésticos com os seus deuses familiares (theoi patrooi), com as suas fórmulas e rituais.

No período helenístico da história grega (sécs. IV-I aC),  por exemplo, inúmeros charlatães, em nome do Orfismo, percorriam a
LÂMINA  METÁLICA
Grécia vendendo lâminas  metálicas com inscrições que asseguravam à alma uma boa viagem depois da morte. Declarava-se nelas que, pela magia órfica, era possível limpar todas as impurezas das almas. Platão, em A República, já fustigara os charlatães que, em nome do Orfismo, vendiam a salvação. As lâminas órficas, como se sabe, serviram como fonte de inspiração para, no Cristianismo, se estabelecer o sistema de indulgências. 

Os sortilégios e as fórmulas mágicas que abasteceram o mundo grego eram originários  do Egito grego e romano. O conteúdo
FÓRMULA  MÁGICA
mágico destes papiros egípcios está expresso em linguagens variadas egípcias (hieroglífica, hierática, demótica, copta) e em latim. A maior parte dos documentos tem datas que se estendem do séc. II aC ao séc. V dC. As tabuinhas de feitiçaria ou mágicas, muitas de chumbo, contêm fórmulas que nos ligam à ideia de outra vida depois da morte. Algumas, porém, propõem a materialização de intenções, tanto com relação a problemas pessoais ou no sentido de que outras pessoas sejam atingidas.  O ouro e as pedras preciosas, por suas virtudes operacionais, eram muito usados também como amuletos (protetores). Em muitos amuletos encontramos também textos órficos, que nos falam numa viagem depois da morte.

Para os gregos, a terra da magia era indubitavelmente o Egito. O
TOTH
deus Toth era considerado como o seu inventor, sendo também tido como o patrono da astrologia, da medicina e da alquimia. Na Grécia, porém, a magia acabou por se transformar numa espécie de linguagem de marginais, isto é, daqueles que não tinham vez na estrutura social da polis (o mesmo aconteceu em Roma). Lembremos que a polis grega se baseava na exclusão social das mulheres, dos metecos (estrangeiros), dos adolescentes e dos escravos, no seu todo gente marginalizada socialmente, que acabou optando por Dioniso, a divindade que destruiu a Grécia apolínea. Eram “virtudes” do cidadão, do aristocrata, o falar bem, a ociosidade e a posse de muitas terras. As mulheres gregas usaram a magia e a feitiçaria como uma possibilidade expressiva, pois não tinham nem o socorro da religião oficial. 

Platão deixou-nos um registro em As Leis sobre a impressão que o Egito lhe causara porque lá se admitia a participação das almas dos mortos nos negócios humanos. Os gregos, em muitos textos, davam o nome de demônio, nas inscrições funerárias, ao morto, à alma dos que não eram reconhecidos nas cerimônias cívicas, nas festas, pois escapavam das preces, do pensamento cultual, não fazendo parte do mundo religioso, mas nem por isso deixando de atuar, de marcar presença. 

Ulisses, na Odisseia, realizou a Nekyia (evocação dos mortos) para

entrar em contacto com Tirésias, o maior dos adivinhos, um episódio muito semelhante àquele que se praticava no antigo Egito, de onde a prática veio para a Grécia. Em papiros egípcios fala-se muito das perigosas legiões noturnas que, incontroláveis, vinham para se misturar e participar dos negócios dos vivos. Os egípcios chamavam de bau a vontade maligna que, emanando de um homem, de um feiticeiro, de um morto ou de uma divindade hostil, podia provocar a loucura, a doença e a morte. Os gregos chamavam de phtonos, a  inveja, (mau olhado, a Invidia dos romanos) maligna, destrutiva. À “boa inveja” davam o nome de Dzelos (emulação).

Os gregos entendiam a magia como a arte de produzir, por processos ocultos, certos fenômenos que não se enquadravam no curso normal dos acontecimentos (a nossa ciência ainda faz o mesmo hoje, quando não consegue encontrar explicações “científicas” para tais fenômenos). Por trás deste entendimento estava a ideia da permeabilidade que as coisas ofereciam a este poder. Como componentes da magia, apontavam: o desejo de agir sobre qualquer coisa, mesmo que ela não fosse atingida e a ideia de que as coisas eram carregadas ou se deixavam carregar do que chamavam de fluidos humanos. A magia, como tal, procedia do maravilhoso e fazia apelo a conhecimentos ocultos. 

A palavra magia deriva de mago, nome que recebiam os antigos sacerdotes babilônicos, na Pérsia e na Assíria. Faziam parte do mundo desses sacerdotes artes como a Astrologia, a Quiromancia, a Necromancia, a Alquimia e a Taumaturgia, ainda hoje incompreensíveis para a nossa ciência oficial. Já o termo feiticeiro, oposto ao de mágico, revelava um sentido pejorativo, procedendo do Latim vulgar, sortiarius, com o significado de o que diz a sorte. Em latim, temos facticius, artificial, não natural, para a palavra feitiço. 

O feiticeiro é aquele que pratica uma magia de caráter primitivo, secreto, ilícito. O feiticeiro não é depositário de uma ciência, mas, sim, apenas, de certas receitas. A feitiçaria era uma magia de caráter popular entre os gregos, rudimentar. Era um saber mais prático que teórico, muitas vezes adquirido através de experiências penosas, confundidas com uma ascese. No fundo, o feiticeiro se julgava um ser sobrenatural, muitas vezes recebendo este poder por via hereditária. Com o cristianismo, o feiticeiro passou a ser visto como alguém tivesse feito um pacto com o diabo. 

Na Grécia antiga não encontramos feiticeiros com os poderes xamânicos clássicos, o domínio do fogo e a elevação nos ares ou o
HERÓDOTO
controle da técnica do êxtase. Ele domina, contudo, alguns poderes que lhe são conferidos pelos deuses. O nome mais comum para designar o feiticeiro em grego era mágòs, do antigo persa, designativo de uma tribo, a Meda, conforme Heródoto registrou, com o sentido de intérprete de sonhos. Quem deu nome a essa tribo, como o seu grande ancestral, segundo a mitologia, foi Medo, que conhecia a arte dos vaticínios, herdade de sua mãe. Medo era filho de Medeia e de Egeu, este também pai do herói Teseu. 

 O verbo grego magganeyo significa usar filtros, sortilégios, com o sentido de enganar, mentir. Em grego encontramos também a palavra goeteia para designar uma forma de magia que entremeia as profecias com gritos. Outro nome do feiticeiro grego é pharmakos, nome que era usado também para designar uma planta de uso medicinal, um pó ou uma droga, no sentido da magia, aplicando-se a palavra depois tanto a um remédio como a um veneno. O nome passou, com o tempo, a ser usado para designar aqueles que envenenavam. 

Na biografia de Péricles, encontramos, conforme Teofrasto narra, a presença da magia; quando, vitimado pela peste que
TEOFRASTO
assolava Atenas, ele começou a usar amuletos protetores que as mulheres do palácio lhe haviam dado. Era voz corrente na cidade que as pessoas de condição social inferior tinham em si, em estado latente, Phtonos, o demônio da inveja, um sentimento que, no fundo, decorria de sentimentos de injustiça, de inferioridade e de exploração. Tais sentimentos aumentaram na medida em que os espoliados viam o Estado e as classes superiores pilhar, como sempre acontece, a caixa (Héstia), o tesouro publico, para servir a suas ambições pessoais e financiar operações de prestígio.

A inveja, explicava-se, procedia de uma força maléfica que tinha o nome de baskania, má sorte, inveja do destino. O remédio contra a baskania era a cuspida, ou melhor, três cuspidas, sendo o três o número ideal para estas coisas. Cuspia-se sobre o próprio corpo para evitar a má sorte. Báskanos é aquele que lança "uma sorte". A baskania não pode suportar a força da beleza e da juventude. A Morte a lançava também contra as pessoas que se elevavam. Em muitos epitáfios encontramos esta ideia expressa, a má sorte que Hades, o deus dos infernos, lançava. "Fora, má sorte!", esta a fórmula que encontramos em muitos braceletes e joias. 

A palavra latina fascinus tem ligação também com a feitiçaria. Vinha de fascis, feixe de varas atadas fortemente. Era na magia uma operação que prendia, que ligava, não permitindo mais
OFICINA  DE  VULCANO (HEFESTO) 
a liberdade da vítima. O deus Hefesto era o dono absoluto do fascinus, que os gregos chamavam tanto de phaskides (feixe) como de ankala (aperto, abraço).  Ao produzir maravilhas com a sua habilidade divina de deus construtor e artífice, patrono das artes do fogo, da tecnocracia, Hefesto fascinava aqueles que passavam a usar o que fabricava, objetos, utensílios, armas. Uma de suas especialidades era a produção de broches, joias, braceletes, colares, para as deusas e para as belas mortais. Outra grande arte do deus era também a fabricação de fechaduras secretas, de autômatos (o de Creta, por exemplo), de artefatos móveis. Estas características nos permitem entender hoje o valor desse mito. Defeituoso, feio, com os pés voltados para trás, o deus revela uma dupla fraqueza espiritual: a perfeição técnica dos seus produtos lhe bastava por um lado, mas, por outro, seu valor e sua utilização o deixavam indiferente. Um deus totalmente aético. 

Hefesto carregava os produtos que fabricava com um fascínio tal que aqueles que os utilizavam não conseguiam mais deles se libertar. É o tecnocrata que abusa do seu poder criador para impor a sua vontade. Por isso, é, par droît de conquête, o grande patrono dos tecnocratas de todos os tempos, sobretudo dos de hoje.  Além disso, com seus produtos, ele se apodera das pessoas, inclusive dos outros deuses. Procurou Hefesto, conforme sua história demonstra, sempre, uma compensação por sua deformidade física. Vingou-se, procurando e obtendo, na mesma proporção, sucesso incomparável nos empreendimentos industriais e técnicos nos quais se lançava, inclusive na esfera de sua vida amorosa, sempre ligada às mais belas deusas. 

Para se defender de seus inimigos, os gregos dispunham de dois métodos bem diferentes: mobilizar os deuses contra eles ou as imprecações (araí), públicas ou secretas. Já a evocação (epagoge), tinha por fim tanto atacar um inimigo como a conciliação com uma divindade. Todos estes procedimentos eram da alçada de feiticeiros, bem como o chamado encantamento (epoidê), também usado na arte médica no sentido de contribuir para a cura. Este último se vale do canto, sempre ligado à magia entre os gregos. A música, o canto especialmente, esteve presente, desde os tempos homéricos, na vida grega pública ou privada. Platão se refere ao canto (epoidê) como um método educativo e um meio excelente para ajudar a cidade a viver mais feliz. O canto, ao permitir a tradução das lições de virtude e de felicidade,  levava os cidadãos a um mundo melhor.


EPITÁFIO  GREGO  -   "EU  NADA  ESPERO.  NADA  TEMO.  SOU  LIVRE".

Nenhum povo mostrou maior solicitude com relação aos mortos que o egípcio, exemplo que os gregos procuraram seguir. Era tão grande essa solicitude que os vivos chegavam até a escrever aos mortos, prática adotada pelos gregos. As cartas eram colocadas nos recipientes que continham iguarias destinadas aos mortos, sempre com o objetivo de assegurar o seu recebimento do "Outro Lado". Estas cartas continham mensagens as mais variadas. Os vivos acreditavam de tal modo na vida depois da morte que utilizavam sortilégios para os ajudar na vida subterrânea. 

Na Grécia eram comuns as visitas protocolares aos mortos. Para os gregos, os mortos não repousavam no lugar em que mais tarde os cristãos os enterrariam, chamados cemitérios, etimologicamente, lugar para dormir, nem naqueles lugares como os construídos em Alexandria, chamados cidades dos mortos. O grego, na morte, sempre continuou individualista, nada de juntar demais os mortos, agrupá-los em grande número, pois essa prática sempre lhes
CERÂMICO  ( KERAMIKOS )
pareceu promíscua. Se a morte sobrevier, dispor os mortos sempre em pequeno número, nunca muito próximos, mas aqui e acolá, como no Cerâmico, em Atenas, onde podemos constatar isso ainda hoje. Muitas famílias, por isso, preferiam a beira das estradas, um jardim afastado, a sombra de um pequeno bosque para enterrar os seus mortos. Eram comuns na Grécia antiga as conversas entre vivos e mortos na beira dos túmulos. Conversas que muitas vezes descambavam para acaloradas discussões. As vítimas de assassinato costumavam intervir na vida dos seus assassinos e se mostravam mesmo prontas a auxiliar os vivos nas suas operações mágicas. Dentre os vingadores que participavam das operações mágicas na condição acima encontramos os acidentados.


A feitiçaria tem duas grandes figuras em Circe e Medeia, esta
CIRCE
sobrinha daquela. Circe era filha do deus Hélio, irmã de Pasífae, rainha de Creta, e tia de Medeia. Passa por uma espécie de maga maior, padroeira da arte. Famosíssima por predizer a Ulisses as dificuldades e perigos que o esperavam no seu longo itinerário de volta à sua terra natal, Ítaca. Numa das passagens da Odisseia, narra-se o episódio em que os nautas enviados pelo herói são transformados em animais semelhantes a porcos, quando se aproximaram do palácio da maga, na ilha de Eéia. Foi o deus Hermes, ancestral de Ulisses, quem o salvou do mesmo destino.

Acima de Circe e de Medeia, de quem eram tributárias, só Hécate, filha de Astéria, deusa triforme lunar, tida como inventora da magia,
HÉCATE
que vivia no mundo infernal. Pertencente à primeira dinastia divina, Hécate sempre conservou suas prerrogativas e privilégios, mesmo no reinado de Zeus. Embora benfeitora, dispensadora de riquezas materiais e espirituais, tanto a imortais como mortais, podia se tornar cruel e destrutiva. Temida sobretudo pelos malefícios que podia causar, o que dependia do comportamento dos humanos, era a rainha da noite, dos demônios e dos fantasmas que com ela subiam à superfície da Terra, sempre acompanhada de animais uivantes, grunhidores e relinchantes que simbolizavam a fertilidade (cadelas, porcas, éguas, lobas). Postando-se nas encruzilhadas, como deusa dos terrores noturnos, entregava-se a diversas operações mágicas e divinatórias sob seu triplo aspecto, como Selene, Ártemis e Perséfone. Dividia o poder sobre as encruzilhadas com o deus Hermes, na sua forma itifálica, e a ela se faziam sacrifícios através de encantamentos para a obtenção de seus favores.   

MEDEIA
Medeia tinha o poder da ambiguidade na feitiçaria, sabendo ferir e matar, mas podendo também curar e salvar. Curou Hércules de sua loucura, rejuvenesceu Jasão. Foi através das artes de Medeia que o herói Jasão pode conquistar, com os argonautas, o famoso velocino de ouro. Foi ela, sob promessa de casamento feita pelo herói, quem lhe forneceu armas e o bálsamo maravilhoso com que untou seu corpo, tornando-o invulnerável ao ferro e ao fogo. Foi ela também quem adormeceu o pavoroso dragão que montava guarda ao velocino de ouro nos bosques do deus Ares, permitindo que o herói lhe cortasse o pescoço, se apoderasse do tesouro e voltasse à embarcação.

A Grécia antiga foi a mãe da filosofia, da tragédia, da arte política, da poesia para a cultura ocidental. Ao lado dos textos clássicos que nos foram legados por ela, inúmeros documentos e inscrições, esquecidos, desprezados pela cultura oficial, continuam trazendo à luz práticas obscuras realizadas em praças, ruas, encruzilhadas e cemitérios. 

Este lado demoníaco costuma ser ignorado pelo pensamento acadêmico, para que, assim acreditamos, o lado luminoso do mundo grego não fique prejudicado, diminuído. Vemos, contudo, quando nos voltamos para esse lado escuro da Grécia antiga, que a luminosidade do pensamento grego coexistia com as maldições que eram confiadas às tabuinhas que os mortos levavam na sua viagem infernal. Podemos, voltando-nos para o tema ora abordado, perceber que os "bons sentimentos" engendram também violentas invectivas, terríveis ameaças, como sempre aconteceu na história da humanidade. Através da Grécia, neste particular, descobrimos que por trás da superfície do mundo que tinha Apolo como deus da harmonia havia um outro, cheio de "som e fúria", de gritos e
PHTONOS
frenesis. Desde Homero, por exemplo, lendo-o bem, até o período helenístico, podemos rastrear toda uma literatura sobre o mau olhado; Phtonos, demônio que personifica a inveja, o ciúme, a mágoa provocada pela felicidade merecida de outrem, vive, com outros demônios como ele, no Bosque de Perséfone. A religião e a medicina, a psicanálise, sobretudo, mais recentemente, vêm tentando, há milênios lidar com eles. Uma luta vã, inglória, como tudo parece indicar. O que fica disso tudo é que a Grécia, bela, harmoniosa, resplandecente, tinha também, como nós mesmos, um outro dado,  sombrio, feio e mau. A Grécia de que tratamos um pouco aqui é a Grécia das trevas, do irracional, da loucura, a face escondida daquela que conhecemos, como o mundo do Sol, do Logos e da Sabedoria.