Marta abriu os olhos lentamente. Sabia, no entanto, que qualquer tentativa seria inútil. Uma vez rompido o fio, que tudo estava por um fio, na recusa e na lucidez, não mais reencontraria o sono. Os olhos abertos, inútil tentar. Talvez fosse possível se não existisse nada, se outra fosse a vida. Agora, as coisas estavam à sua frente. E, com elas, manhãs, dias e noites queimando na memória. Olhou o quarto, a desordem, as marcas deixadas pelo corpo de Carlos Alfredo. Mas já a claridade entrava pela janela. O mundo lá de fora. Sons indistintos, vozes cortadas, palavras que não chegavam a se completar, a rua. E também um leve rumor de chuva, a chuva que escorrera e alagara toda a noite. Se tudo fosse diferente...
Ruídos familiares, Maria lidando na cozinha. Aquele corpo a arrastar-se sobre os tamancos. Como os detestava! Ainda mais pelas manhãs, quando tudo o que incomoda incomoda mais. Os chinelos não serviram para nada. Dar foi o mesmo que jogá-los no lixo. Maria agradecera com um sorriso estúpido, mas nunca os pusera nos pés. Os pés de Maria. O cheiro forte de café lembrou-lhe que daí a pouco ela viria com a bandeja. A significação daquela presença. Como se dissesse que precisava sair da cama, vestir-se, viver mais um dia. Ficaria ali, fincada numa recriminação muda, o olhar parado. Deixar de pensar em Maria. Mas tudo lembrava Maria. A manhã era Maria. Aproveitar a cama um pouco mais, isso sim, enquanto ela não viesse.
A cortina parecia agora a vela de um barco. Sempre enfunada. Enfunada. En-fu-na-da, repetiu alto, destacando bem as sílabas. Gostou da brincadeira, achando a sua voz bonita. Ia continuar quando as manchas luminosas da parede atraíram a sua atenção. Ora aqui, ora ali, manchas que às vezes adquiriam formas estranhas. De gente, de bichos, de ambos. Figuras fantásticas. Ainda há pouco, sem dúvida, um palhaço transformara-se num elefante. Permaneceu uns segundos na parede até que uma lufada mais forte levantou a cortina. A luz mudou de direção. No lugar, então, desumano, um círculo. Quase perfeito, se não fosse o lustre. Ficou a imaginar de onde, como era formado. Cortina, vidros, veneziana, a árvore do jardim, chuva, claridade, tudo era aquele círculo. Não gostou da figura. Lembrava geometria, teoremas (a soma do quadrado... dos catetos ou da hipotenusa?). Complicado, nunca chegara a entender. E depois para quê? Irmã Verônica. Boazinha a Irmã Verônica. Não brigava com ninguém. Pena que a tivessem transferido. Será que se lembrariam? Oito anos não é tanto tempo assim. O colégio. Sorriu. Agradavam-lhes esses pensamentos. Se pudesse organizá-los como num fichário; dizer depois, bem hoje vou pensar nisto, naquilo... Tudo classificado, ali, à mão. Os pensamentos na mão, entre os dedos. Lamentou não ter visitado as freiras ainda.
Virou-se. De alto a baixo, finíssimas partículas de pó dançavam nas faixas luminosas. O rumor de chuva desaparecera. Um sol pálido penetrava agora pela janela. "Sol e chuva, chuva e sol...", e o círculo de luz movera-se na parede. Pensou em cerrar as cortinas. Mas preferiu abandonar o corpo ao calor da cama. Antes, a carne sossegada que se comprazia na madorna da manhã. Havia também aquele torpor, incômodo à medida que fibras, músculos, a matéria despertava. E uma tontura de roda gigante na cabeça. Lembrança viva apesar dos anos. Era o cansaço, reconheceu finalmente. Cansaço de muitas noites, acumulado, empilhado, tijolo por tijolo, entre a escuridão e o sono de Carlos Alfredo.
Correu os olhos pelo quarto. O espelho do guarda-roupa devolveu imagens confusas. Distintamente na penumbra só o braço alvo, quase a tocar o chão. Os chinelos, a cadeira, o quadro, paisagem suíça, reclame de chocolate, pensou, tinham uma presença forte e insólita. Incomodavam como o círculo de luz, o cansaço. Desejou que não fossem tão evidentes. Assim não lembrariam nada. Sensação esquisita, quase medo. Ou medo. Mas medo de quê? Aquelas coisas todas do quarto a expulsá-la da cama. Maria. Obrigando a decisões. Sempre decisões. Fazer, não fazer. Será que a vida se resumia nisso? Nunca um momento de calma? Não no sono, na vida? Fechou os olhos. Dormir. Logo, porém, os abriu. E tudo ali, sem razão, numa impersonalidade que esmagava. Um quarto de hotel.
Desviou o olhar para os cantos escuros do quarto, ocultando-se entre as cobertas. No entanto, os pensamentos foram brotando. Vinham de dentro, do fundo, impossível detê-los. Um olho d’água sempre a verter, inesgotável. As preocupações, Carlos Alfredo. De uns tempos para cá fora ele a importunar. Não posso compreender a tua vida. Sempre em casa, trancada. Você precisa sair, divertir-se. Ele nunca dissera, mas bem sabia o porquê das recriminações. Quem não via? Bastava olhá-lo. Aqueles olhos parados, a expressão abatida, forçando um sorriso. Mas Carlos Alfredo nunca pedira nada. Os olhos, sim, suplicavam. Mas sempre fizera por não entendê-los. Não tinha sido essa a compreensão que imaginara.
Ruídos familiares, Maria lidando na cozinha. Aquele corpo a arrastar-se sobre os tamancos. Como os detestava! Ainda mais pelas manhãs, quando tudo o que incomoda incomoda mais. Os chinelos não serviram para nada. Dar foi o mesmo que jogá-los no lixo. Maria agradecera com um sorriso estúpido, mas nunca os pusera nos pés. Os pés de Maria. O cheiro forte de café lembrou-lhe que daí a pouco ela viria com a bandeja. A significação daquela presença. Como se dissesse que precisava sair da cama, vestir-se, viver mais um dia. Ficaria ali, fincada numa recriminação muda, o olhar parado. Deixar de pensar em Maria. Mas tudo lembrava Maria. A manhã era Maria. Aproveitar a cama um pouco mais, isso sim, enquanto ela não viesse.
A cortina parecia agora a vela de um barco. Sempre enfunada. Enfunada. En-fu-na-da, repetiu alto, destacando bem as sílabas. Gostou da brincadeira, achando a sua voz bonita. Ia continuar quando as manchas luminosas da parede atraíram a sua atenção. Ora aqui, ora ali, manchas que às vezes adquiriam formas estranhas. De gente, de bichos, de ambos. Figuras fantásticas. Ainda há pouco, sem dúvida, um palhaço transformara-se num elefante. Permaneceu uns segundos na parede até que uma lufada mais forte levantou a cortina. A luz mudou de direção. No lugar, então, desumano, um círculo. Quase perfeito, se não fosse o lustre. Ficou a imaginar de onde, como era formado. Cortina, vidros, veneziana, a árvore do jardim, chuva, claridade, tudo era aquele círculo. Não gostou da figura. Lembrava geometria, teoremas (a soma do quadrado... dos catetos ou da hipotenusa?). Complicado, nunca chegara a entender. E depois para quê? Irmã Verônica. Boazinha a Irmã Verônica. Não brigava com ninguém. Pena que a tivessem transferido. Será que se lembrariam? Oito anos não é tanto tempo assim. O colégio. Sorriu. Agradavam-lhes esses pensamentos. Se pudesse organizá-los como num fichário; dizer depois, bem hoje vou pensar nisto, naquilo... Tudo classificado, ali, à mão. Os pensamentos na mão, entre os dedos. Lamentou não ter visitado as freiras ainda.
Virou-se. De alto a baixo, finíssimas partículas de pó dançavam nas faixas luminosas. O rumor de chuva desaparecera. Um sol pálido penetrava agora pela janela. "Sol e chuva, chuva e sol...", e o círculo de luz movera-se na parede. Pensou em cerrar as cortinas. Mas preferiu abandonar o corpo ao calor da cama. Antes, a carne sossegada que se comprazia na madorna da manhã. Havia também aquele torpor, incômodo à medida que fibras, músculos, a matéria despertava. E uma tontura de roda gigante na cabeça. Lembrança viva apesar dos anos. Era o cansaço, reconheceu finalmente. Cansaço de muitas noites, acumulado, empilhado, tijolo por tijolo, entre a escuridão e o sono de Carlos Alfredo.
Correu os olhos pelo quarto. O espelho do guarda-roupa devolveu imagens confusas. Distintamente na penumbra só o braço alvo, quase a tocar o chão. Os chinelos, a cadeira, o quadro, paisagem suíça, reclame de chocolate, pensou, tinham uma presença forte e insólita. Incomodavam como o círculo de luz, o cansaço. Desejou que não fossem tão evidentes. Assim não lembrariam nada. Sensação esquisita, quase medo. Ou medo. Mas medo de quê? Aquelas coisas todas do quarto a expulsá-la da cama. Maria. Obrigando a decisões. Sempre decisões. Fazer, não fazer. Será que a vida se resumia nisso? Nunca um momento de calma? Não no sono, na vida? Fechou os olhos. Dormir. Logo, porém, os abriu. E tudo ali, sem razão, numa impersonalidade que esmagava. Um quarto de hotel.
Desviou o olhar para os cantos escuros do quarto, ocultando-se entre as cobertas. No entanto, os pensamentos foram brotando. Vinham de dentro, do fundo, impossível detê-los. Um olho d’água sempre a verter, inesgotável. As preocupações, Carlos Alfredo. De uns tempos para cá fora ele a importunar. Não posso compreender a tua vida. Sempre em casa, trancada. Você precisa sair, divertir-se. Ele nunca dissera, mas bem sabia o porquê das recriminações. Quem não via? Bastava olhá-lo. Aqueles olhos parados, a expressão abatida, forçando um sorriso. Mas Carlos Alfredo nunca pedira nada. Os olhos, sim, suplicavam. Mas sempre fizera por não entendê-los. Não tinha sido essa a compreensão que imaginara.
O mundo de Carlos Alfredo tão distante. Fracasso dos anos, vida lenta e morna. Cada dia mais afastados. Como acabariam? Dois velhos que se odiariam? Se suportariam? Os primeiros anos de casamento. Não, ninguém poderia condená-la. Tentara entusiasmar-se. E quantas vezes não fora na frente? Mas será que isso não passava de um meio para compensar a desconfiança que jazia lá no fundo? Lá, bem no fundo? Não, não tinha sido sincera. Entretanto, passados os anos, feito o balanço, muito pouco sobrava. Promessas, planos. No ano que vem, se a gratificação for maior, não podemos, não podemos, não posso. Por que Carlos Alfredo há cinco anos no mesmo lugar? Sim, talvez culpada. Porém, não como ele pretendia. Aliás, nunca tinham falado às claras. Como era preciso. Maria novamente. Essa mulher tem patas de elefante! Como poderia receber alguém?
Suspirou fundo. Aproveitar enquanto Maria não trouxesse o café. E então depois do jantar, quando ficavam a sós na sala, como pesavam as palavras. A falsa intimidade, a conversa banal, os monólogos. Atrás e além, coisas que não poderiam ser ditas. Ou a coragem que faltava. Geralmente, era ele quem começava, baixando o jornal. A sua trincheira. Olhava-o. O Carlos Alfredo de antigamente. Um rapaz sério chegando à sua casa. As noites de noivado na sala, as conversas do pai, o cafezinho, Carlos Alfredo é um rapaz de futuro, você tem sorte, disse-lhe a mãe. Coitada! Se os visse hoje. Metódico, hora certa para chegar e para sair. Carlos Alfredo ia embora. Como se não tivesse vindo. O casamento: o vestido branco e a palidez de Carlos Alfredo. Quase ninguém; meia dúzia de convidados e os padrinhos. Nada de festas, que o pai não quisera. As amigas, nunca mais as vira depois do casamento.
Agora ali estava ele. Um pouco mais gordo, e os primeiros fios brancos nos cabelos. Cabeça baixa, falando. Um "você não acha?" tirava-a das recordações. Estremecia. Responder, falar alguma coisa. O silêncio seria pior que o esforço para abrir a boca. Supôs a princípio que quando os lábios se movessem sairia um grito. Depois... depois acostumou-se. As palavras partiam então facilmente. Mecânicas. Umas depois das outras, ligando-se. Chegava mesmo a ouvi-las, sons estranhos, como se outra as pronunciasse. Outra Marta. Os assuntos do seu dia, qual dia? Nada, senão uma coisa disforme e vaga. O seu trabalho. Nada de pé, sólido. Carlos Alfredo, apesar de tudo, construía. Podia-se tocar, ver. Diferente da poeira que diariamente se acumula e que é preciso limpar. Ontem, hoje, amanhã. Recomeçar.
As longas tardes a perambular pela casa. Voltas sobre si mesma, abrindo e fechando portas, subindo e descendo. Foi então que pensou nos seus momentos secretos. Assim os chamava. Aqui, neste mesmo quarto. As cortinas cerradas, à luz do abajur, esquecida do tempo e de todos, punha-se a experimentar roupas. Principalmente os vestidos de passeio. Uma vez até o de noiva. Os sapatos, luvas, tudo cuidadosamente escolhido. Consumia horas no ritual, caprichando na pintura dos lábios, dos olhos, retocando. Inventava penteados, admirava-se no espelho. Ainda era bela. Nas ruas, os homens ao vê-la passar "diriam alguma coisa". Espetáculo, prazer de tardes chuvosas que Carlos Alfredo e ninguém veria. Talvez, quem sabe, algum dia... Uma estátua, dissera certa vez aquele pintor.
Tinha o sol agora na cama. Maria daí a pouco viria com o café. O barulho da xícara estava a anunciar. E ela tiraria os sapatos para entrar. Na ponta dos pés. Sentiu-se mal só em pensar que iria rever aquele rosto envelhecido, boçal. Como se não bastasse, os objetos voltavam a incomodar. Não mais conseguia fixar a vista em nenhum deles. O sono, sim. Era preciso dormir. Assustou-se, reprimindo o grito e o ódio. Maria estava à sua frente com a bandeja. Mais silenciosa que nos outros dias.
— Pode deixar, ordenou ríspida.
A empregada obedeceu em silêncio. Já se retirava quando Marta a chamou.
— Estou adoentada, Maria. Gripe, não sei. Telefone para o Sr. Carlos Alfredo e diga-lhe para almoçar na cidade. Hoje ficarei na cama.