terça-feira, 9 de junho de 2015

MARTA, DE MADRUGADA, MUITOS ANOS DEPOIS (CONTO)



LA  JEUNE  FEMME  ENDORMIE   ( BASTIEN  LEPAGE )

Os olhos foram se abrindo devagar, custando para se acomodar à penumbra. No silêncio da casa, só o bater compassado do relógio do corredor. Aos poucos, porém, um rumor de vozes distantes veio se impondo, cresceu e parecia agora tomar conta da sala. Alguém cantando? Olhos que encantam, que fascinam e que eternamente prendem. Onde ouvira, quem, ou apenas imaginação?

Acima de tudo, porém, havia a penosa tarefa de contar os dias. Olhos dolentes que um pôr de sol me lembrais, olhos ardentes que do amor ao abandono me arrastais. Olhos de fada que na vida entre os escolhos me guiais. Sinto minh'alma devassada em seus refolhos que só vós me perturbais. Viver! Sonhar! Do eternamente seu, Carlos Alfredo, neste nosso primeiro aniversário. 

E vieram os pequenos acontecimentos, fatos que foram se acumulando, não os grandes, que esses todos têm, mas as pequeninas coisas, aquelas quase imperceptíveis, às quais ninguém dá importância, mas como pesam, como incomodam e fazem mal. Palavras delicadas, sim, mas, no fundo, coisas feitas de propósito, com a intenção de ferir ou magoar. Ou não seria tudo mais que a sua maneira de vê-las? Quantas vezes não se perguntara se tudo não seria mais que imaginação sua, mas não, não, o tempo só fizera confirmar o que sempre sentira. As coisas, concluía agora, tinham uma importância por elas mesmas e não pelo que achava delas, coisas que, no fundo, são as que contam e pesam, dando-nos a espessura dos dias, fazendo com que a vida vá se determinando, como o lugar dos móveis na casa, como as pedras do jardim são pedras, lá, quietas, anônimas, lá onde depois da chuva o perfume do rosmaninho se desprende, entre o muro e a erva-cidreira.

Porque há muito estava acordada, não se incomodou com a claridade. Era mesmo como se tivesse mantido os olhos sempre abertos, sempre voltados para fora, nunca para dentro. Mas isso agora pouco importava. De que adiantara mantê-los abertos? Tentou então fixá-los entre as duas bandas da cortina, duas grandes manchas esbranquiçadas a contrastar com a penumbra do quarto. Insistiu, na esperança de identificar o contorno daqueles pequenos riscos luminosos que sobressaíam entre as manchas, como teclas de piano. Por enquanto não mais que isso, o dia a se aproximar, o apelo antigo que o corpo fora aprendendo aos poucos a deixar de responder. A mesma penumbra, o dia e a noite se encontrando afinal, como nos fins de tarde, quando a mãe a chamava para a mesa. Fechava o piano. No início, um certo mal-estar, aquela sensação desagradável porque teria de conviver mais de perto com eles até que, cansada, fosse para a cama.

O jantar em silêncio, o pai mastigando, os olhos perdidos no prato, a mãe mergulhada no seu mundo. Terminavam quase sempre ao mesmo tempo, os pratos e talheres recolhidos, a toalha batida, tudo muito exato, nenhum desperdício nos gestos. Ia afinal com a mãe para a cozinha, sem uma palavra. As palavras foram sendo deixadas de lado, tão acostumadas já ao que faziam juntas. Aprendera tudo desde muito cedo, velhos hábitos que a mãe herdara e os transmitira. Não precisou fazer muito esforço para repeti-los, quem sabe até aperfeiçoá-los. Porque os repetia tão automaticamente, a vontade não intervindo nunca, sentia às vezes, em determinados dias, um certo peso no ar, como se algo ficasse pairando, se adensando. Tentou várias vezes encontrar a causa do que sentia nesses dias, uma lógica, jamais atinando com ela. Pensou em menstruação, lembrou-se de quando pela primeira vez menstruara, a indisposição, e das palavras da mãe, a olhá-la com um ar de desconsolo: você agora já é mulher, precisa se cuidar, conhecer um pouco mais as coisas da vida, vou falar com Soeur Églantine. Descobria alarmada a existência do seu corpo. Por mais que tentasse, não conseguiu encontrar os olhos da mãe. Lembrava-se agora que nessa noite não conseguira dormir. 

Durante anos pensou no assunto, o peso dos dias. Acabou por aceitá-lo. No começo, com alguma ansiedade, depois com indiferença e, por fim, com cansaço, algo físico, que se impunha como uma sensação de alheamento, de ausência, como se uma outra Marta estivesse vivendo tudo aquilo. Às vezes, durante as aulas, tinha que fazer um grande esforço para ficar ali, ouvindo os sons que lhe chegavam. Numa aula de pintura, um dia, tão envolvida por isso a que se acostumara a chamar de “o peso dos meus dias”, ficou com o pincel suspenso no ar;  não ouvindo que a irmã a chamava insistentemente, tentando tirá-la daquele torpor, as colegas de classe rindo. Todas a olharam, Marta, Marta, você está sentindo alguma coisa? Não, não, não é nada, só uma indisposição, foi o que conseguiu dizer, muito envergonhada. Alguém lhe disse que essas coisas eram coisas da Lua, que devia ler o Almanaque do Pensamento.


LE   JOURNAL   ( VUILLARD , 1898 )

Quando o peso dos dias se tornava insuportável em casa, quando estava só com a mãe ou, mais raramente, com o pai, fazia uma observação qualquer, como há pouca água hoje, como late alto esse cachorro da dona Mimi, qual a previsão do tempo?, observações que fazia apenas para desviar um pouco a pressão, como se uma outra falasse, nada além disso, não importando muito o que a mãe ou o pai lhe respondessem, quando respondiam. Numa aula, a irmã lhe dissera que a esse falar por falar sobre os insignificantes acontecimentos do quotidiano os franceses davam o nome de parler de la pluie et du beau temps. Orgulhou-se quando se viu repetindo a frase em francês. No mais das vezes, a mãe concordava, emitindo sons que pareciam mais grunhidos, entre um hum, ou um ham. Espantava-se quando as respostas iam um pouco além. Quanto ao pai, limitava-se ele a lhe estender o jornal, neutro e evasivo como sempre, monossilábico. Ou, o que era mais comum, para escapar da desagradável sensação, ia se fixando no ruído que a água fazia ao bater na louça ou nas panelas empilhadas dentro da pia, absorta, desligada, como que hipnotizada, sem condições de raciocinar ou agir. Engraçado, pensou, depois de algum tempo quando a mãe a chamava, como sempre lhe era muito mais fácil prestar atenção aos ruídos do que tentar se fixar nas coisas pela vista. Reconheceu, sorrindo, que se irritava menos ao ouvir. Quando lhe pediam para ver alguma coisa, que olhasse nesta ou naquela direção, ficava mais irritada.

Enquanto enxugava a louça, tentava entender aquela mulher que estava ali ao seu lado. Tentou, aliás, muitas vezes. Olhava-a. Cinquenta anos e um ar de desolação mal disfarçado. A cabeça começava a embranquecer, as sobrancelhas arqueadas, um rosto que poderia ser até bonito, se não fosse aquele ar de desolação e os dois vincos ao lado da boca, que os anos vinham acentuando cada vez mais. Quase não trocavam palavras. Há vinte e cinco anos vivia ela com aquele homem que agora lia o jornal na sala, vinte e cinco anos a cuidar da casa, da roupa, a varrer, a limpar, a cozinhar, ou a mandar fazer tudo isso quando teve empregadas. Hoje, nem isso. Eram três apenas na casa, concordara a mãe, não havia mesmo necessidade de empregadas, nenhuma criança, o Bolinha morrera no dia em que fizera dez anos, quanto tempo, puxa! A mãe entremeava suas conversas com o pai com observações que detestava, falando de como ela, Marta, ajudava bastante, de como aprendia, sempre obediente e atenciosa, ao que lhe era ensinado, pois para mandar é preciso aprender a obedecer. Das frases feitas que a mãe costumava usar ao conversar com o pai, esta a de que para mandar era preciso obedecer, foi a que sempre lhe incomodou mais. Sim, havia outra, talvez pior, a de que o homem que levasse a Marta tiraria a sorte grande, um verdadeiro tesouro Quantas vezes não sentiu uma tremenda vontade de lhe dizer que se calasse, que não falasse mais nada, quantas e quantas vezes...

Olhou mais uma vez a cozinha antes de apagar a luz. Tudo irrepreensível, cada coisa no seu lugar. Lembrou-se do orgulho da mãe quando contou como as irmãs haviam elogiado seu uniforme, muito limpo, impecável, uma leve goma na blusa, as pregas da saia bem passadas, os cabelos presos, a fita, tudo combinando.  A cozinha se aquietava, as toalhas estendidas, o fogão fechado e em cima dele o mesmo pano que um dia bordara, um pano tão bonito que a mãe nunca o usara para o fim indicado por seu nome, enxugar pratos, um pecado, disse-lhe ela, estragar um pano tão bonito. Ao lado, no aparador, o vaso com as hortênsias, a mesa para o café do dia seguinte preparada. Com a satisfação do dever cumprido, como uma rainha, justificada, imponente, a mãe aparecia para dar o último olhar antes da luz ser apagada, para ver se estava tudo em ordem. Depois, então, um pouco de televisão.




Da sua infância guardara a lembrança do rádio, quando, terminada a Voz do Brasil, ouvia umas músicas, um programa de valsas, às quintas-feiras, noutra noite, ou era na terça, um programa de auditório, de calouros que cantavam. Noutras vezes, chegavam até a rir com as histórias de Nhô Totico.  Mas o que mais a encantava no rádio era o programa dos sábados à tarde quando Manoel Durães, sua mulher, Edith de Moraes, e numeroso elenco apresentavam grandes peças. Jamais esqueceu de A Ceia dos Cardeais e de As Pupilas do Senhor Reitor. Um dia, perguntou ao pai se o Manoel Durães era português, pois parecia um português falando. Pontificando, tomando ares de grande conhecedor, o pai revelou que o conhecia, que a ele fora apresentado certa vez, por um amigo, ocasião em que o próprio Manoel Durães, revelou que,
E O VENTO LEVOU
embora parecesse, não era português, mas, sim, brasileiro, sim, senhor!, brasileiro, do Recife. Quando o pai, um dia disse-lhe que sofria de radiomania, deixou de ouvir os programas radiofônicos.  Depois disso, como diversão, só o cinema, o Broadway, lá na Rua São Bento, que raramente frequentava com a mãe. Raramente, sim, mas um dos filmes que viu, E o Vento Levou, maravilhoso, fez com que nem ligasse para o que pai disse ao não entender como alguém podia ficar mais de duas horas vendo um filme. 


Já não tocava mais piano à noite, sentia que incomodava. Vez ou outra, um pulo à casa da prima, duas quadras adiante, uma conversa rápida com a vizinha, que também estudava nas freiras, um pouco no portão. Apesar de tudo, continuou com um cinema no domingo, às vezes com a tia, na quarta-feira, na “soirée das moças”, que preferia, menos gente, um outro público, menos mistura.    

Ia cedo para a cama. Ficava ouvindo os sons que lhe chegavam, muitos se repetindo há anos. Ao longe, alguém tossia, o relógio da sala ia batendo os quartos de hora, até que, finalmente o pai colocava as trancas nas duas portas dos fundos que davam para o quintal. Punha-se à espera para ouvir algum outro som, um carro agora, ao longe uma locomotiva apitava, ruídos distantes que lhe chegavam muito indistintos. Iriam repetir-se? Passavam-se minutos, o relógio avançava, o silêncio parecia tomar conta de tudo. Subitamente, uma porta na casa ao lado batia com estrondo, assustava-se, passos na calçada, quem anda assim tão tarde? e ainda por cima assobiando, cachorros latiam, aos poucos o silêncio voltava a dominar. Só então dormia.

Não que visse tudo com nitidez, mas aqueles sinais luminosos não podia deixar de vê-los. Talvez indícios de alguma luz da rua ainda
O  MINUETO  (MAURICE  DENIS - 1891)
acesa. Ou sinais de um novo dia, a claridade vencendo as trevas, logo a aurora, a renovada aurora. Experimentou o corpo com uma reprimida tentativa de se espreguiçar. Não sentia os músculos, há muito não os sentia. Virou-se, com um sorriso de tolerância e cansaço, pois até que se infiltrasse o dia definitivamente haveria calma. Instantes ou horas, não importa, momentos que poderiam ser inteiramente seus, como quando tocava. Podia agora, tantos e tantos anos passados, num entendimento mudo e simples, aceitar finalmente a culpa que sentia toda vez que a mãe falava do sacrifício que fizeram para educá-la bem, de como o pai, embora meio carrancudo, era bom, o melhor colégio de freiras da cidade, aulas de pintura, piano, francês, os trabalhos manuais, bordados... 

O pai começava então a falar, um modo esquisito, mais um discurso talvez, como se assim falando suas palavras tivessem maior autoridade.  A palavra dote embora possa parecer ridícula hoje, arrematava solenemente o seu discurso. Era nesse momento que o pai, retirando o guardanapo do colarinho onde costumava prendê-lo, dava por terminado o jantar. O pai, enquanto ao fazer a sua arenga, mencionando a palavra dote, escandia-a de maneira tal que ela ficava ecoando nos seus ouvidos, sim, a palavra dote, palavra que pode hoje estar desacreditada porque muita gente metida a moderna a deprecia, uns cínicos, e você, Marta, queira ou não, é, como se dizia antigamente, uma moça prendada, bem dotada, tanto por razões de família como pela sua educação, e vai levar tudo isso que estamos lhe proporcionando para o seu casamento. Um dia você nos agradecerá. Não vou permitir que minha filha queira fazer esses cursos que estão inventando agora, moças de cabelo curto, dirigindo automóvel, maiôs na virilha, nada da imoralidade dessas novas modas. No fundo, odiava essa maneira do pai falar, sempre sério, meio pomposo. Pior quando ele se punha a falar assim diante das visitas, queria sumir. Quanto ao seu futuro, não ligava para o que ele dizia, pois, embora gostasse muito do piano, tanto se lhe dava fazer um curso técnico, como os que já se anunciavam, ser professora, casar, ter filhos, isso não, nunca, ou não fazer nada até. Odiava-o também por que ninguém ria ao lado dele, todos baixando a voz ou deixando de conversar quando ele entrava. Era o homem das explicações das causas e dos fins, incapaz de admitir outra ordem que não a sua. Procurava o olhar da mãe. Nada, nem um gesto, apenas um leve franzir de testa, e sempre, sempre, aquele ar desconsolado, aquela enorme sensação de impotência. Já sabia que depois dessas conversas os dias iam pesar como chumbo, ficava muito tempo sem conseguir dirigir uma palavra à mãe, um rancor surdo tomando-a.

Os melhores momentos que havia nisso tudo, e os havia, sim, poucos, mas os havia, ficavam por conta das viagens anuais que os pais faziam às “águas do sul de Minas” ou visitas, por razões de família, aos tios, irmãos dele, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Marta sentia-se de férias, não os pais. Tia Angélica vinha então, pelo tempo necessário. Com ela, era o mesmo que ninguém na casa, a mãe, longe, com o seu destino de se calar e obedecer e o pai com o dele, o de mandar e bastar-se. Ficava então na sala da frente a folhear revistas, revistas proibidas, com fotografias de mulheres que tinham a ousadia de mostrar as pernas, o colo e usar muita maquiagem, revistas que publicavam cartas de esposas aflitas que pediam conselhos, perguntando como deveriam agir com relação aos seus maridos. Muito piano, tantas e tantas tardes; passeava, ia para as ruas, flanava, como se dizia.




Soluços de um Coração, Último Beijo, Lágrimas, Lacrime, como gostava de cantarolar em italiano, voi siete nate del dolore, ditemi, se guarirà la mia follia o se la triste vita mia più non avrà felicità. Até que um dia Isaura lhe entregou o tango-milonga Alfredo e foi assim que Alfredo entrou na sua vida, esse, sim, um rapaz de futuro, disse-lhe o pai. E vieram as tardes de domingo, os sorvetes no verão, o namoro na sala, a mãe cochilando. Para que o vazio não se abrisse à sua volta, foi se deixando ficar. Aceitava Alfredo, não precisaria mais reinventar os seus dias. Toda a vasta complicação da vida se resolveria, deixar-se ficar, sim, como um animal de estimação se aninha no colo de alguém. O espaço fechado da casa para onde foram depois do casamento lhe bastou, a vida fluindo devagar, revestida de silêncios e de alguns cerimoniais. Olhava a vida, nenhum sentimento de posse.

Lacrime já não lhe fazia chorar. Sentiu que se estendesse a mão poderia alcançar aquelas tardes, Alfredo, Isaura, a mãe, o pai, como se estivessem todos no quarto. Um gesto, apenas. Abriu os olhos, tentando reagir contra aquele torpor. Finas partículas de poeira dançavam no raio luminoso que agora entrava pela janela. Algumas sombras começavam a se agitar no teto. Viu-se nua, na cama, o corpo de Alfredo sobre seu corpo. Disseram-lhe que era preciso ter um filho, que tudo se arranjaria.  Caberia um filho no seu corpo? Onde estariam todos? Moveu as mãos, os pés, era como se fossem e não fossem seus. A velhice, disse-lhe um dia a tia, não pensa, ela é, simplesmente.

Ficar então na cama, sem nenhuma preocupação, tomando decisões que nunca seria capaz de levar adiante. É verdade que em muitas ocasiões tentou, mas preferiu desistir, par que a vida fosse se encarregando ajeitar as coisas. Como naquela vez em que tinham ido à praia. Entrou no mar, caminhava lentamente, sentindo o impacto das ondas, o sangue fluindo mais rápido a cada pancada, afago, carícia, lambidas, a noite em que as mãos de Alfredo tentaram segurá-la, tocando-lhe os seios, envolvendo-a. Afastou-as sem saber a razão. Antes de se virar para o lado, percebeu que desconhecia o seu corpo, ou que o havia esquecido. Pouco se falaram desde então. Lembrava-se que voltara à praia depois de muito tempo. Passou a língua nos lábios, sentindo ainda o mesmo o gosto de sal. Abriu os olhos novamente, o mar, as manchas, os riscos de luz ao fundo, como as teclas do piano.

Recordava-se das decisões nunca tomadas, imaginar de quantas maneiras diferentes poderia ter reagido diante de alguma situação. Uma espécie de jogo, o que deveria ter dito ou feito. As suas respostas, a Alfredo, aos pais, aos desconhecidos com os quais cruzara um dia e a quem nada dissera ou fizera. Era nesses momentos que sentia a garganta se fechar e que um grande cansaço lhe subia pelo corpo. Uma vida nunca incluída naquilo que dizia, sempre fora de tudo, como um observador não comprometido com nada. O gesto recolhido, como recolhidas as suas razões, razões que sempre apareciam depois, nunca antes, sempre posteriores ao que fazia e no que se tornava. 

Desviou o olhar, reconhecendo já o contorno do quarto, os móveis, as roupas penduradas. Há quantos anos não tinha um sono reparador? Certamente desde que o doutor Luiz Carlos havia recomendado que deixasse de usar aquele sedativo de nome tão estrambótico, um benzodiazepínico, como gostava dizer, olhando-a, para ver o efeito que causava. Odiou-se por ter se lembrado de nome tão idiota. Agora, ali, sombras e vultos ainda, formas indecisas, mas evidências que não podia recusar. Nas ruas, com certeza, as luzes da noite já se haviam atenuado ou mesmo desaparecido. O dia se infiltrava lentamente pelas frestas da veneziana. E, ali, à sua frente, aquelas marcas luminosas como que a dizer que era preciso levantar. Fez um grande esforço para ver melhor os objetos do quarto, acentuando mais as rugas da testa. Uma leve pressão na nuca trazia a certeza da enxaqueca. Tentou fixar a vista novamente na cortina. Desistiu. A mão deslizou vagarosa pelo ar. Os dedos roçaram a parede fria. Sentiu a aspereza da superfície, maior onde a tinta desaparecera. Ao recolher a mão, percebeu que o silêncio se fechava cada vez mais. Estava completamente exausta, reconheceu. Fechou os olhos. Os rostos que via agora nas ruas em que caminhava estavam imóveis e indiferentes. Um deles, entretanto, dizia alguma coisa, que não conseguiu ouvir. Acenou para um homem que estava apoiado num muro. Como resposta, obteve apenas um gesto, de desconsolo ou de irritação? Olhou para trás. Percebeu então que algo mudara. O Sol já não parecia mais imóvel, punha-se rapidamente, precipitando-se nos confins do horizonte. As nuvens, em turbilhão, se atropelavam umas às outras. Olhou então à sua volta. Procurou um rosto, alguém que lhe apontasse um caminho, mesmo que sem nenhuma bondade ou alegria. 


NUQUE   DE   MISIA  ( VUILLARD )