segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

ARGO NAVIS





ARGO NAVIS é uma constelação que participa do simbolismo da barca e pode ser explicada por este nome, cuja origem está num radical egípcio (barc) que no grego deu baris, idos (embarcação) e passou ao latim vulgar como barica e, depois, ao latim tardio como barca. O nome é genérico e se aplica, em todas as culturas, aos mais variados meios de transporte marítimo ou fluvial. O campo
BARCA   DO   SOL
semântico é vasto. Falamos de barcas que, no lugar de carros, transportam corpos celestes (Barca do Sol) e também de barcas que podem levar as almas para o Outro Lado. Os deuses egípcios tinham barcas para navegar pelo Nilo. Encontramos em muitos túmulos megalíticos, já no período final da nossa pré-história, desenhos de barcas que descreviam a viagem à Ilha dos Bem-aventurados.

LIVRO   DOS   MORTOS
O Livro dos Mortos egípcios, por exemplo, descreve a travessia das regiões do mundo inferior que defuntos deviam fazer para chegar ao Duat (Outro Lado), enfrentando vários perigos, demônios, serpentes etc. Já os hindus adeptos do Yoga comparam o corpo humano a uma embarcação que serve de veículo ao homem para chegar à outra margem do do oceano da existência. É por esta e por outras razões que, em muitas tradições, a barca, simbolicamente, aparece associada à figura materna, representando a segurança na viagem cheia de perigos que é a vida humana.


SANTO   AGOSTINHO  ( SANDRO  BOTTICELLI )

No geral, a barca simboliza não só a viagem que o ser humano faz do nascimento à morte, a travessia da vida, mas a que ele pode fazer depois da morte. A vida neste mundo é como um mar
BARCA   EGÍPCIA
tumultuoso que é preciso atravessar para levar nossa barca a um bom porto. Se conseguirmos resistir às tentações, ela nos conduzirá à vida eterna, diz Santo Agostinho. Para os povos do hemisfério norte, as terras do sul eram misteriosas, cheias de encantamentos, de magia. Para chegar a elas, só com boas embarcações. A geografia mítica, em todas as tradições, está repleta de nomes sugestivos Atlântida (Grécia-Platão), Dilmun (mito de Gilgamés); a Insulae Fortunatae (latinos); a Ilha dos Imortais (China); Aztlan, ilha-montanha primordial dos astecas; Eldorado (América do Sul); Shangrilá (Tibet) etc.

CARONTE  ( G. DORÉ )
O meio privilegiado de transporte de que se valiam às almas para chegar ao Hades, por imposição divina, era a embarcação de Caronte, o famoso barqueiro. De olhar tenebroso, mal humorado, as almas quando entravam  na sua embarcação deviam lhe entregar um óbolo,  pois, se não o fizessem, nunca chegariam ao Outro Lado. Isto significaria para elas, evidentemente, a impossibilidade de reencarnar, desde que, é, claro, o julgamento infernal a que seriam submetidas lhes fosse favorável. 

O sonho coletivo das grandes distâncias, das grandes viagens, dos maravilhosos reinos, ilhas e montanhas, sempre foi, por outro lado, uma constante na história da imaginação do ser humano. A
TRANSPORTE   DE   MÚMIAS
literatura que existe sobre o tema é vastíssima. Os egípcios viram na constelação Argo a barca que os deuses Osíris e Isis usaram depois de um grande dilúvio que cobriu a Terra. Filho de Geb, considerado “o pai dos deuses”, o equivalente egípcio do Cronos grego, e de Nut, a deusa celeste da noite, identificada pelos gregos como uma espécie de Reia, Osíris, quando recebeu o poder do pai, teve que enfrentar com a sua irmã, Ísis, um dilúvio, apesar de ter sido aclamado como “mestre universal.”

Outra versão egípcia, entretanto, nos revela que a constelação representava a barca solar que Osíris usara para descer ao mundo infernal depois que sua irmã e esposa, Ísis, reconstituíra o seu
OSÍRIS , HÓRUS , ÍSIS
corpo, despedaçado por seu irmão Seth. Graças aos seus sortilégios, e ajudada por Thot, por Anúbis e por Hórus, Ísis conseguiu ressuscitar Osíris que, assim, adquiriu a imortalidade eterna. Ao invés de retomar o seu trono, preferiu se retirar da Terra e assumir a condição de deus do mundo subterrâneo, deus dos mortos e da psicostasia (pesagem das almas). Deus solar em sua viagem noturna,   Osíris descia ao mundo subterrâneo por meio da barca do Sol. Os faraós, quando morriam, faziam a mesma viagem que Osíris. Há que se mencionar ainda que no Egito as múmias eram colocadas numa barca funerária puxada por um pequeno carro em direção do túmulo.Aliás, a própria Terra era considerada pelos egípcios como uma barca que navegava nas águas primordiais. Havia duas barcas para Osíris: a do entardecer, crepuscular, para a sua viagem noturna, e a matinal, para a sua ressurreição.


MATSYA
Entre os hindus, esta constelação que chamamos de Argo Navis está relacionada com Matsya, o Peixe, o primeiro avatar do deus Vishnu. O objetivo desta encarnação do deus foi o de salvar Manu, progenitor da raça humana, homem mítico, ameaçado de morte pelo dilúvio. Adquirindo a forma humana, o avatar o salvou, fazendo-o subir numa barca (Argo, a constelação), juntamente com os Rishis (profetas), levando as sementes de todas as coisas que existiam sobre a Terra. 

O dilúvio ocorreu numa das noites de Brahma, durante o período em que ele, como a primeira pessoa da trindade hinduísta, estava
VEDAS
repousando no intervalo de duas criações sucessivas. Tudo submergiu então. Quando as águas baixaram, o Peixe passou instruções aos Rishis para que a verdade dos Vedas (escrituras sagradas) não se perdesse. O avatar ordenou a Manu que descesse da embarcação. Sentindo-se só, diante de tanta desolação, Manu fez sacrifícios aos deuses. Apareceu-lhe então uma mulher, que declarou ser sua filha. Unindo-se a ela, como dizem os textos, celebraram e praticaram árduos ritos religiosos, dando-se início assim ao repovoamento da Terra.  

Astrólogos cristãos, na Idade Média, viram nesta constelação a arca de Noé, embarcação por ele construída por ordem de Deus para salvar do dilúvio a si próprio, sua família e um par de cada espécie
ARCA DE NOÉ NO MONTE ARARAT
 ( SIMON  DE  MYLE )
animal. A arca tinha três andares; o de cima para os humanos, o do meio para os animais e o último para o lixo. Na cobertura da arca havia uma claraboia feita de uma pedra luminosa, já que os céus estavam obscurecidos por pesadas nuvens de chuva. Além da mulher, de seus três filhos e noras, dos animais, a arca conduziu também o gigante Og, rei de Bashan, que se manteve durante todo o dilúvio na parte externa da arca. Após a catástrofe, a arca pousou no monte Ararat. 

A versão sobre a origem desta constelação, incorporada pela
   ARGO
Astrologia, foi a que os gregos nos passaram através de sua Mitologia. A história tem como figuras centrais os argonautas, heroicos parceiros de Jasão que foram à Cólquida (Ásia Menor) em busca do Velocino de Ouro (mito a ser estudado no capítulo das constelações zodiacais – Áries). A nau Argo (branco cintilante, em grego) foi construída por Argos, filho de Frixo, num porto da Tessália, com a orientação de Palas Athena, a guia dos heróis.  


CARVALHO
Uma curiosidade quanto a Argo é que a madeira necessária à sua construção foi tirada de um bosque do monte Pelion, onde vivia o centauro Kiron. A madeira da proa, um carvalho, entretanto, foi trazida por Palas Athena de um bosque  sagrado de Dodona. Essa madeira era falante, tinha o dom da palavra, inclusive o da mântica, o que, com as informações que transmitia, auxiliava o piloto (kubernetes) a manter o curso da nau perfeito e seguro. 

ARGO   NAVIS
Devido ao seu tamanho (nos céus, vai de 10º de Câncer a 20º de Libra – l5º a 65º Sul),  Argo Navis foi dividida em quatro partes, mais asterismos que constelações: Carina, Puppis, Vela e Pyxis, ou seja, respectivamente, A Quilha, A Popa, A Vela e o Mastro, esta última parte também chamada de A Bússola ou O Compasso. Situada inteiramente no sul, a direção das estrelas desta constelação, como um todo, apontava para o hemisfério norte, para uma viagem na direção das terras do desconhecido.

Argo Navis, como símbolo, deve ser associada ao tema das viagens, ao rompimento de limites e à ampliação de horizontes. No fundo, tanto um grande desejo de mudança interior, de experiências novas, como insatisfação interior, recusa do que se é e/ou do lugar em que se está. Esta constelação sempre apareceu, em muitas
SONDA   ESPACIAL
tradições e culturas, associada à história de grandes de viajantes, nas mais variadas épocas, mítica ou historicamente: Hércules, Ulisses, os Vikings, Vasco da Gama, Colombo,  Richard Burton etc. Por causa do seu brilho e da sua posição, a principal estrela de Argo Navis, Canopus, foi utilizada pelas sondas espaciais americanas para fins de navegação. Essas sondas usam câmeras especiais conhecidas pelo nome de Canopus Star Treker. É de se lembrar ainda que Canopus está na bandeira brasileira como símbolo do estado de Goiás.  


PTOLOMEU  ( JOOS  VAN  GENT )
Para Ptolomeu, Argo Navis, através de sua principal estrela, alfa, de 1ª magnitude, Canopus, situada na Quilha,  a 14º 16´ de Câncer, e das demais, bem menos importantes astrologicamente, Miaplacidus, também na proa, Muhnithain, e Al Suhail, ambas na Vela, tinham características de Saturno e de Júpiter, sugerindo viagens longas, prosperidade, conhecimento. Os gregos deram o nome de Canopus à estrela que está na proa de Argo Navis para prestar homenagem ao piloto da nau capitânea da armada grega que, sob o comando de Menelau, partiu para atacar Troia. Canopus morreu quando retornava à Grécia, depois de terminada a guerra. 

RUÍNAS  TEMPLO  DE  CANOPUS
A morte de Canopus ou Canopo se deu quando o barco por ele pilotado fez uma parada na embocadura do rio Nilo, perto de Alexandria. Era ele quem trazia de volta à Grécia os reis de Esparta, Menelau e sua mulher, Helena, que fora raptada por Páris, príncipe troiano. Belíssimo, Canopus foi amado pela filha de Proteu, rei egípcio à época. Não tendo correspondido ao amor da jovem princesa foi amaldiçoado. Certo dia, quando se preparava
ÍNULA
para retomar a viagem de volta, foi picado por uma serpente, morrendo no ato. Menelau mandou levantar um suntuoso túmulo numa ilha da foz do Nilo, que tomou o nome de Canopus. O mito nos conta que Helena chorou tanto a morte do jovem piloto que de suas lágrimas nasceu uma planta até então desconhecida, a que deram o nome de helenion, depois chamada de ínula (inuma helenion), usada tanto na culinária (condimento) e na medicina (tônico aromático).



A estrela Canopus foi registrada por várias tradições. Os egípcios, bem antes dos gregos, já a haviam associado ao piloto do barco que fazia o transporte das almas para o Outro Mundo. A estrela de Canopus entre os egípcios e persas foi chamada por nomes que destacavam o seu brilho, a sua luminosidade, sempre no sentido da sabedoria. Canopus tinha para eles, ao lado de Sothis (Sirius), grande importância, alinhando-se a construção de muitos templos egípcios na sua direção quando do seu nascimento heliacal.  

Muitas culturas viram Canopus como a Estrela Polar do sul, o ponto onde terminava a linha que unia os polos, um ponto que se movia também conforme a precessão dos equinócios. Assim como o polo norte celestial completa um círculo a cada 26.000 anos aproximadamente, o mesmo acontecia com Canopus, no polo sul celestial. Os gregos associavam a estrela Canopus a Cronos, o maior dos titãs, (segunda dinastia), derrotado pelos olímpicos chefiados por Zeus (terceira dinastia). Lançado no espaço, Cronos caiu exatamente onde estava Canopus, decorrendo desse fato a identificação de Cronos como o Senhor do Tempo, o limite da duração, o Cronocrator, aquele que fixa os ritmos do universo. A direção sul, o lado que está à esquerda do Sol, é o caminho por onde vão as almas, conduzidas por Canopus, o piloto. É neste sentido que a estrela Canopus simboliza também os limites das possibilidades humanas, definindo o momento de transição entre a matéria, forma (Cronos-Saturno), e a alma que, como energia, faz o seu caminho de volta ao grande Todo.


SENHOR   DO   TEMPO

ANANKE
Canopus encontra-se atualmente a 14º 16´ de Câncer. Depois de Sirius, é a estrela mais  brilhante do céu. Sua influência, de natureza saturnina e jupiteriana, aponta para  ideias  de forma, limites (Saturno) e de expansão (Júpiter). Nos mapas, Canopus fala de novos caminhos, habilidade para conduzir, atitude cibernética (arte de pilotar, de conduzir bem uma ação), mas pede cuidado e controle para evitar a ação da Ananke. 




Ao lado das quatro grandes estrelas reais, conforme os persas as definiram (Aldebaran, Antares, Fomalhaut e Regulus), Canopus, juntamente com Sirius e Spica, ocupa uma posição muito importante nos céus, na medida em que todas elas apontam, com as devidas reservas, para benefícios e expansão. Canopus se situa no leme de Carina, trazendo augúrios de boa caminhada. O conceito grego que está por trás desta caminhada é o de patos, do verbo patein, andar. Patos é o caminho a ser seguido por cada ser humano, não o mais importante, idealizado, mas o pessoal, acabando por significar o próprio curso da vida de cada um de nós, um caminho que tanto pode ser seguido na terra, nas água ou no ar. Canopus nos leva à figura do que a língua inglesa denomina de pathfinder (path, caminho, mais finder, aquele que encontra; ou seja, aquele que sabe se conduzir, que encontra o seu caminho na selva, na imensidão dos mares, nas longas distâncias, ou através da arte, da ciência, da religião, da filosofia (9ª casa astrológica). 


SANTA   CATARINA
( CARAVAGGIO )
Os astrólogos da Índia identificaram Canopus como Agastya, um de seus Rishis (profetas). Etimologicamente, Agastya quer dizer o removedor de montanhas ou do imutável, representando como figura histórica o poder do ensinamento. Sua atividade era jupiteriana: foi mestre da gramática, da medicina e de outras ciências. 


Já os cristãos, desde os primeiros tempos deram o nome de estrela de Santa Catarina de Alexandria a Canopus. Esta estrela aparecia para os peregrinos gregos e russos que se dirigiam ao Sinai, naqueles antigos tempos, a um convento e a um santuário ortodoxo, erigidos para honrá-la. Catarina foi decapitada, tendo sido seu corpo, segundo a lenda, transportado por anjos até o alto do referido monte. 

Relacionada com sucesso, Canopus pede cuidado com relação a Ananke, conceito grego que significa coação, fatalidade. Na filosofia grega, ananke aponta para uma ação providencial que a própria vida cósmica deflagra (lei de causa e efeito) para 
ERÍNIAS  ( G. DORÉ )
restabelecer limites, o equilíbrio rompido, a desproporção. É um conceito feminino, atuando através dele várias divindades que combatem os excessos, as desmedidas, a hybris, o orgulho, a desmedida, a arrogância, a vaidade, a insolência. A figura maior da Ananke é Nêmesis, filha de Nyx, a deusa da Noite,  e que simboliza a revolta contra qualquer a injustiça cometida. Seus atributos são, por isso, a régua graduada, o esquadro, o compasso, o chicote e a espada. Ela cuida no sentido de fazer com que os que desejam fazer a experiência da felicidade a façam meritoriamente, sem perder o senso da realidade, sem invadir o espaço dos outros, sem prejudicá-los, respeitando limites.
CLAUDE   MONET
Por isso, ela curva os orgulhosos, ela pune todos aqueles que teimam em ultrapassar o seu métron. Quando a justiça deixa de ser equânime, Nêmesis (como as Erínias, por exemplo), em nome da Ananke, intervém porque todo descomedimento põe em perigo a estabilidade do cosmos, a ordem do mundo. Canopus pode ser estudada, por exemplo, dentre outros,  em mapas como os de Mao Tse-Tung e de Claude Monet.