quarta-feira, 18 de junho de 2014

HÉRCULES - OITAVO TRABALHO


HIDRA  DE  LERNA  ( CERÂMICA GREGA )

Euristeu determina a Hércules que vá a uma região pantanosa perto de Argos e dê fim a um monstro, conhecido como a Hidra de Lerna, que tornava o local e tudo à sua volta impróprio à vida. Seu hálito pestilento e o veneno que exalava faziam dela uma verdadeira maldição da natureza. O monstro vivia nesse pântano impedindo que qualquer forma de vida se manifestasse na região. Seu hálito era tão venenoso que mesmo a uma boa distância só as pessoas muito fortes conseguiam sobreviver ao ar por ela contaminado. O monstro possuía nove cabeças, uma delas imortal. Uns poucos heróis que o enfrentaram tentaram cortá-las. Tudo em vão, outra cabeça crescia em substituição à cortada imediatamente. 

Ao chegar ao pântano de Lerna, nosso herói se espantou. O monstro era enorme, sua presença tudo degradava. O lugar era perigoso, um lamaçal profundo e escuro, traiçoeiro, tudo muito pior do que lhe haviam contado. A Hidra se refugiava numa caverna que havia numa elevação montanhosa que limitava o pântano. Hércules a atraiu, disparando flechas incendiárias (flocos de lã e breu). O monstro se agitou, saiu do seu antro, lançando seus tentáculos numa tentativa de enlaçar o corpo de nosso herói. Conseguindo atingi-lo, os tentáculos com as suas ventosas abriam nele chagas profundas e dolorosas. Nosso herói, com sua espada, decepou uma das cabeças. Outra a substituiu. Outras cabeças cortadas, outras cabeças no lugar. Ao invés de diminuir, as forças do monstro pareciam aumentar a cada cabeça nova que surgia.


PALAS  ATHENA, HÉRCULES, O CARANGUEJO, A HIDRA E IOLAU

Hércules resolveu então se atracar com a Hidra, procurando tirá-la do meio pantanoso em que vivia, lembrando-se da luta que travara
ESCULTURA - MUSEU  DO  LOUVRE
com Anteu no seu terceiro trabalho. Para dificultar a ação do nosso herói, diz o mito, a deusa Hera enviou um enorme caranguejo para atacá-lo na região dos pés. Hércules, entretanto, esmagou o animal, não lhe dando chance. Hera, apesar desse fracasso, resolveu homenagear o caranguejo, colocando-o nos céus como a constelação de Câncer.


Com inaudito esforço, a Hidra foi retirada do meio em que vivia, exposto seu  corpo ao ar e ao calor do Sol. Invencível no lamaçal, ela começou a dar sinais de enfraquecimento. As nove cabeças foram se inclinando, os olhos se fechando. Hércules logo percebeu qual era a cabeça imortal. Com um certeiro golpe, cortou-a, enterrando-a imediatamente, com o auxílio de Iolau, sob enorme rocha, em meio aos uivos do monstro agonizante. As demais cabeças foram sendo decepadas; com troncos de árvores em brasa, que seu ajudante preparava, foram cauterizados os cortes a fim de que nenhuma outra cabeça surgisse no lugar. Cansado, esgotado, Hércules conseguiu finalmente tornar-se vitorioso.

Hidra é nome que lembra água. As cabeças do monstro sugerem a
DELTA  DE  RIO
imagem do delta dos grandes rios, um lugar sempre pantanoso, de múltiplos braços. Nos seus aspectos positivos, como se sabe, a água é origem de vida, purificação e regeneração, renascimento. É por isso que em inúmeras tradições, vários ritos dependem da água. Negativamente, porém, ela lembra submersão, descida, naufrágio, vida subconsciente, tornando-se então perigosa, quando não mortal. O pântano é formado pela água e pela terra, elementos passivos, por oposição ao ar e ao fogo, elementos positivos. O que caracteriza um pântano é o imobilismo, a estagnação, a podridão; mas é também um lugar de germinações invisíveis, dotado de virtudes prolíficas, o que nos permite associá-lo analogicamente à vida subconsciente.


Se numa mistura de água e terra a primeira prevalece temos a involução, a impossibilidade da conquista de uma da forma; se a segunda se impõe, temos a conquista da forma, sempre perigosa também na medida em que, levada a extremos, pode apontar para cristalizações, ao que os alquimistas chamam de coagulatio. Charcos, lamaçais, pântanos, carregados de matéria em decomposição, sempre foram usados simbolicamente, numa primeira leitura, para sugerir aviltamento, baixeza, vícios, devassidão, vergonha, sentimentos sórdidos, lembrando o caos e as imagens da nigredo alquímica, isto é, imagens de caos, de indeterminação. Num outro nível, contudo, pântanos serão lugares de onde a vida pode emergir, pois é neles que se prepara, segundo a dinâmica universal, invisivelmente, o cíclico reaparecimento das formas. 

Os franceses deram o nome de bas-fond aos terrenos alagadiços, pantanosos, baixos e profundos, formando extensas depressões, na periferia das cidades. Balzac, por exemplo, usou esta palavra no plural (bas-fonds) para representar os lugares em que viviam as
camadas baixas da sociedade, lugares onde o homem, com facilidade, se degradava moral e fisicamente por razões óbvias, pobreza, miséria, doenças, crime etc. O escritor que melhor caracterizou este submundo foi, sem dúvida, o russo Máximo Gorki. O mestre Jean Renoir, em 1936, com Jean Gabin no papel principal, nos deu o filme Bas-Fonds, baseado em obra homônima de Gorki.




A putrefactio é a operação alquímica que melhor caracteriza por isso Escorpião, o oitavo signo zodiacal, o cenário astrológico deste trabalho, na medida em que o Sol quando o atravessa fica mais intensa a ação das forças outonais; é nesse período do ciclo anual que notamos mais nitidamente o desaparecimento da vida vegetal da face da terra e a hibernação dos animais. Chuvas e frio, galhos
LERNA
que se retorcem, que se quebram, folhas que rodopiam ao vento, tudo apodrecendo e se espalhando sobre a superfície da terra para produzir o húmus, o elemento que possibilitará o aparecimento de novas formas de vida mais adiante. As águas perdem a sua fluidez, fixam-se, empoçando-se, tornam-se escuras, oferecendo-nos aparentemente imagens de estagnação e silêncio. Quem souber ver, porém, poderá notar por trás desta imobilidade, em meio a toda a decomposição e aos odores fétidos, materializados como gás metano, o trabalho invisível de microrganismos preparando as condições para que a vida volte a se manifestar com toda a sua espontaneidade primaveril.



CONSTELAÇÃO   DE   ESCORPIÃO

Com Escorpião, os valores noturnos começam a se impor aos valores diurnos. Por sua posição zodiacal, Escorpião é um signo fixo e seu elemento é a água. A primeira qualificação tem relação com as três dinâmicas universais, impulso, estabilidade e mudança ou, se quisermos, aparecimento, permanência e desaparecimento. Escorpião é, como tal, um signo fixo (são fixos os signos dos segundos meses das estações: Touro na primavera, Leão no verão, Escorpião no outono e Aquário no inverno); aponta para ideias de concentração, acumulação, obstinação, determinação, características que levam os que nele nascem pelo Sol ou pela hora (ascendente) a procurar manter suas posições, atitudes ou desejos em todas as situações de sua vida.

Quanto à água, o traço mais característico que ela imprime aos seres humanos onde aparece como dominante em sua personalidade é o de torná-los profundamente impressionáveis com relação ao que acontece à sua volta; por ela são levados a atribuir a essa impressionabilidade grande importância, o que as torna geralmente prisioneiras do que sentem. A Escorpião, nesse sentido, só interessa o intenso, o profundo, o total. Daí a grande inclinação que demonstram os do signo para as relações afetivas dessa natureza, na base do tudo ou nada, nas quais a sexualidade ocupa sempre um lugar muito importante pelo seu caráter de absoluto. É por essa razão que os tipos superiores do signo, mais bem logrados, são dotados de uma inteligência à qual já se deu o nome de faustiana,
sempre curiosa, desejosa de investigar, de perscrutar, de desvendar, de ir ao fundo das coisas, de fuçar, mesmo que para isso tenham que descer aos níveis infernais da existência humana ou mergulhar no sobrenatural. Daí os seus temas de eleição: o ocultismo, a morte, a vida subconsciente, a psicanálise, o renascimento e outros mais no gênero. Para uma boa ilustração do que estamos a descrever neste parágrafo, aponto o filme Fausto, de Alexander Sokurov, que encerra a sua tetralogia sobre “os que venderam a sua alma ao Diabo”.

Alquimicamente, lembre-se, o signo de Escorpião tem relação com a solutio alquímica, operação não só ligada à água, mas a todos os líquidos que dissolvem, destacando-se, dentre eles, o vinho, que é de Dioniso, o deus das metamorfoses. É neste sentido da solutio que atuava nos Mistérios de Eleusis, quando, através do kykeon, uma bebida enteógena à base de vinho, na fase da orgia, o deus possibilitava o acesso dos mystai (iniciados) a um outro tipo de vida, rompidas as suas limitações terrestres, as suas inibições, os seus recalques.    


ORGIA  DIONISÍACA

É mais importante para um escorpiano fazer uma entidade (ele, no caso, geralmente) progredir para atingir níveis cada vez mais elevados de sensibilidade do que propriamente dar à luz alguma coisa. Nos tipos malogrados do signo, muitos procuram fazer isto através de outras pessoas, vampirizando-as psiquicamente em nome de tais níveis superiores, que se resumem invariavelmente em atitudes egoístas, verdadeiros exercícios de poder, diante da vida. O escorpiano inferior pratica comumente uma espécie de expropriação das energias das pessoas que estão à sua volta para se tornar mais poderoso, dominador e forte. Presas a uma relação deste tipo, fascinadas até, muitas pessoas agradecem inclusive a posição de vítimas que lhes é imposta. Já um escorpiano que chamamos de superior usará o seu enorme potencial para ajudar as pessoas a evoluir e/ou melhorar o ambiente em que vive.


CONSTELAÇÃO DE ORION

Uma das histórias da mitologia grega que mantém estreitas relações com o signo de Escorpião e que nos permite entender melhor este oitavo trabalho de Hércules é a do gigante Orion. Sempre descrito como um ser de extrema sensualidade, esplêndido fisicamente, cuja personalidade, orientada pela vida instintiva, se viu dominada por paixões imperativas, Orion pontilhou toda a sua vida com cenas de sexo, de vinho, de violência, de vingança, de matança de animais. Entregue a uma de suas grandes paixões, a caça, diz o mito que ele chegou mesmo a ameaçar de extermínio os animais da terra, pondo em risco de destruição os ciclos da vida animal. Foi-lhe oferecida pela deusa Ártemis uma oportunidade de se redimir. Deusa sagitária, Ártemis é a deusa das passagens, a que leva tudo o que entra na vida, crias, ervas, riachos, a ir do conhecido (a gruta protetora) ao grande todo, ou, num outro nível, quanto aos seres humanos, da vida instintiva, não reflexiva, ao convívio social, que pede vida racional e reciprocidade.


ORION  CARREGANDO ÁRTEMIS

Assim que se aproximou da deusa, Orion, descontrolado como sempre, avançou sobre ela, tentando violenta-la sexualmente. A indignação de Ártemis, diante de tão grande petulância  foi  imensa.
Revidando de imediato, a deusa fez com que surgisse   das profundezas da terra um aracnídeo gigantesco, um medonho escorpião (um ser até então inexistente na natureza) que feriu o gigante mortalmente, picando-o no calcanhar. Por essa razão, Orion e o escorpião foram colocados nos céus como constelações para que a humanidade jamais se esquecesse do que acontece com aqueles que julgam poder se entregar impunemente às suas paixões. É por isso que no céu, à medida que a noite avança, a constelação de Orion vai perdendo progressivamente a sua maravilhosa luminosidade enquanto a constelação de Escorpião, com as suas pinças, vai se impondo, até fazê-la desaparecer totalmente.   

Ao aproximar estas duas características, água e fixidez, é que se torna possível falar de ameaças perigosas que continuamente se apresentam aos nativos do signo: cristalizações emocionais, paixões ideias fixas, obsessões, recalques, reserva rancorosa, ameaças de fixações absurdas que, tomando corpo e o dominando, o mobilizam invariavelmente na direção da satisfação dos seus desejos e na manutenção de suas posses, principalmente, como se disse, através da vampirização dos que lhe são mais próximos.


O SONHO DA RAZÃO PRODUZ MONSTROS ( GOYA, 1746 - 1828 )


HADES E CÉRBERO (MUSEU DE HERAKLION)
É por razões como as acima expostas que o signo de Escorpião sempre apareceu relacionado, na mitologia grega, com o Hades, o mundo subterrâneo, infernal, e, na psicologia, como o signo da vida subconsciente, associado ao princípio feminino, por oposição ao segundo, o princípio masculino (consciente). Falamos dos aspectos fixos da personalidade humana que, embora reconhecidamente nocivos, não sabe o homem muda-los, eliminá-los, seja por medo, ignorância ou comodismo. São tais cristalizações que alquimicamente constituem a matéria prima deste trabalho, personificada pela Hidra, com as suas múltiplas cabeças. É neste sentido que tudo o que a Hidra toca se corrompe, se degrada, tornando impossível a renovação, o renascimento. 


OS  SETE  PECADOS  CAPITAIS ( HIERONYMUS  BOSCH -  C.1450-1516 )

Dos níveis mais inferiores da vida humana, dentre os comportamentos e atitudes mencionados, alinham-se os vícios, conhecidos mais comumente como defeitos ou imperfeições graves que funcionalmente levam o ser humano tanto a cometer ações contra si mesmo e contra a vida moral. Por isso, quando falamos de vícios empregamos verbos como enlamear, aviltar, chafurdar, degradar, envergonhar, enxovalhar, macular. Criando dependências irresistíveis, os vícios (etimologicamente, defeitos, estragos, taras), sob o ponto de vista filosófico, se opõem à virtude, isto é, àquilo que se conforma com o que é considerado correto e desejável. A palavra virtude, lembre-se, vem do latim, virtus, virtutis, força corporal, de onde saem palavras como viril, virilidade, de fortes conotações masculinas.

Todos sabemos que a eliminação dos nossos vícios, como sentimentos diante dos quais nos sentimos geralmente impotentes, só pode ser conseguida se pudermos eliminar as condições que permitem à nossa Hidra interior de continuar a viver no ambiente de onde retirar a sua força. A este processo saneador damos o nome de drenagem psíquica, ou seja, fazer escoar os nossos excessos
VALA  DE  DRENAGEM
afetivo-emocionais aos quais estamos presos (os tentáculos da Hidra que nos enlaçam e com os quais ela obtém o seu alimento). Esta drenagem obviamente não poderá chegar a extremos, a imagens de aridez, de desertificação. Esta drenagem tem a finalidade de controlar o nível da desejável umidade (vida afetiva), sem a qual não poderemos viver.  
Todos nós temos monstros como a Hidra no nosso subconsciente, representando esse monstro, com as suas várias cabeças, os nossos múltiplos vícios, vícios que alimentamos muitas vezes sem o saber. A mensagem que podemos retirar deste trabalho é que procuremos trazer tudo isso ao consciente (ar) e que o iluminemos com a luz (supraconsciente). A Hidra representa tudo o que acumulamos: erros, fracassos, frustrações, memórias, atavismos, hábitos, mágoas, culpas, ódio, remorsos, tudo que atua em nós do modo inconsciente, causando sempre muito sofrimento, provocando muitos males. Descobrir e enfrentar a Hidra em nós não é fácil. Ela vive nas cavernas do nosso inconsciente, onde a luz da consciência não chega. Às vezes, vive ali uma vida inteira sem ser notada, mas tornando-nos infelizes, deprimidos, angustiados, doentes.


MOSAICO  GREGO

O combate à Hidra pede três atitudes: a) a percepção de sua existência; b) a sua busca com tenacidade e paciência; c) a sua destruição. A cabeça imortal da Hidra é a nossa pulsão fundamental de ser (o Eros dos gregos), uma energia não especificada, que tanto pode ser instinto de sobrevivência, energia psíquica, sexual, aspiração, desejo, vontade etc. Esta energia, que todos os seres humanos possuem em maior ou menor grau, precisa ser compreendida, controlada e orientada. Dominar a nascente, que alimenta todas as cabeças da Hidra, é dominar a cabeça central, imortal, de modo a não se permitir que as águas fluam sem controle, inundando tudo.

Nove é o número da saída do pântano, o número de uma gestação completa, início de uma vida transcendente, representada astrologicamente por Sagitário, o nono signo zodiacal. Cada cabeça da Hidra, a seguir descrita, é uma ameaça ao nosso processo de individuação. A segunda cabeça é a da possessividade, a das recompensas materiais a qualquer custo, do lucro, que podem tomar a forma de consumismo, de apetites sensuais, de obstinação imotivada, de avareza, de mesquinharia; a terceira é a da dispersão, que leva à falta de propósitos, à indiferença, à indiscriminação, à futilidade, à verbalização exagerada, à duplicidade; a quarta é a do apego exagerado à tradição, ao temor infundado diante da vida, ao conservadorismo, ao racismo, hipersensibilidade, infantilismo psíquico; a quinta é a da orgulho, da vaidade, da ostentação, da prepotência, da tirania; a sexta é da tendência à rotina, da indecisão, do servilismo, do detalhismo exagerado, das pequenas manias, da aridez emocional; a sétima cabeça é da tolerância decorrente da indecisão, da preguiça, da superficialidade, da busca exagerada de prazeres, da falta de iniciativa, da dependência da opinião alheia; a oitava é a do egoísmo, da sensualidade, do rancor, da crueldade, da inveja, da destrutividade; a nona é a do dogmatismo, da hipocrisia, do fanatismo, da presunção, dos entusiasmos cegos, da falta de realismo.    

Nosso herói venceu o monstro, mas não soube lidar com sua a cabeça imortal; enterrou-a sob um rochedo. Isto é, sob um ponto de vista psicanalítico, recalcou-a. O recalque, como se sabe, é um mecanismo de defesa que teoricamente tem por função fazer com que exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a ele ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias. Foi o que aconteceu: uma vitória e, ao mesmo tempo, um fracasso. Hércules pensou que recalcando as pulsões humanas o monstro estaria vencido. Ele não entendeu que as pulsões humanas não podem ser recalcadas ou suprimidas, mas, ao contrário, devem ser transmutadas, orientadas pela razão, canalizadas na direção de uma espiritualidade progressiva. Só no décimo primeiro trabalho Hércules se aproximará, ainda que muito vagamente, deste entendimento.    

O signo de Escorpião, auge do outono, oposto ao de Touro, o pico da primavera, nos descreve uma  luta  entre  as  forças  da  luz  e  os
valores demoníacos da matéria. A partir de Escorpião, como dissemos acima, na natureza, as forças da destruição começam a prevalecer. Os dias se tornam mais curtos, as noites mais longas. A natureza entra em processo de decomposição e de destruição. As folhas caem, os galhos ficam secos; na matéria que apodrece, na semente que no interior da terra tem o seu hímen rompido, prepara-se uma nova vida, que só aparecerá no início da primavera.

Os naturais menos desenvolvidos do signo costumam, por isso, demonstrar um grande interesse por processos terapêuticos que se fixam só nos aspectos destrutivos das fixações inconscientes, sempre com ideias de fragmentação, de análise. O grande problema é que grande quantidade das partes ou pedaços resultante dessa fragmentação é jogada fora e não reunido num plano mais elevado, isto é, numa nova ordem psíquica e espiritual, já que a ideia de transcendência sob o segundo ponto de vista, principalmente, inexiste para a maior parte das terapias tradicionais. O que há comumente é a rearticulação das partes ou pedaços (as sobras) numa nova totalidade apenas físico-social, pois o que se busca, invariavelmente, são os aspectos quantitativos da transformação, isto é, novos índices de eficiência para o ser que se acredita ser novo, mas que, na realidade, não o é. Há que se desintegrar, sim, mas para transcender, para que a vida seja vivida num nível superior, diferente.


  FRANCISCO  DE  GOYA  Y  LUCIENTES

Em Escorpião, encontramos conceitos de vitalidade, resistência, paixão. Nos do signo, a vontade costuma poder muito pouco diante das emoções, dos sentimentos, das pressões internas, das ideias fixas, das obsessões. Daí, os combates intensos, os extremismos, a tendência à irredutibilidade e, também, as grandes realizações. A intensidade do querer em Escorpião é quase uma anormalidade, quase uma enfermidade. Fixos, os do signo são de acumular ressentimentos, mágoas; de manter feridas emocionais que não cicatrizam; são tenazes, de uma obstinação muitas vezes cega, prevalecendo invariavelmente o desejo de dominar, de se impor, sempre uma ideia de superação dos obstáculos e a irritação contra tudo que a tanto se opuser. Trabalhadores excepcionais, os escorpianos costumam não se deter diante das dificuldades. Presentes muitas vezes demonstrações explícitas ou veladas de vingança, que andam muitas vezes juntas com a dissimulação, o espírito crítico e o reformismo radical. 



O número do Escorpião é o oito, número das transformações, da morte, da via óctupla de várias tradições orientais. As cores são o vermelho, a da entrada na vida, e o negro, a cor da morte. No Candomblé, por exemplo, são as cores de Exu, o "homem das encruzilhadas". No geral, o escorpiano é atormentado, inquieto, sua alquimia interior destila estados mórbidos. Quase sempre nele presente o dissabor do existir, um dissabor que se revela como absurdo, através de ideias de morte (Albert Camus). Traços de sado-masoquismo são comuns, ao lado do abandono ao desespero. Sempre um grande desejo de sondar, escavar, desvendar enigmas, segredos, mistérios, seguir pistas (Edgar Allan Poe). Escorpião é conhecido como o signo das angústias e dos estados mórbidos. Intensidade, exacerbação, passionalidade, extremismos como o encontramos, exemplificando, na vida e na obra de Lupicínio Rodrigues. 


SANTO  ANTÃO  ( HIERONYMUS  BOSCH )

A galeria do signo é muito representativa. Lembremos, além dos mencionados, alguns outros tipos: Judas Escariotes (o agente da transformação de Cristo; sem ele não teria havido a ressurreição), Hieronymus Bosch (Santo Antão, sempre cercado pelo fervilhar infernal), Bruegel e a sua grande atração pelo trágico; Jean Racine que, mais do que ninguém, soube analisar no teatro clássico francês o drama do ser humano entregue às paixões; Vivien Leigh, a que tinha uma beleza diabólica; Paganini, Michelangelo, Dostoiviski, Franz Liszt, Richard Wagner, Pablo Picasso, Jean-Paul Sartre, Napoleão Bonaparte, De Gaulle, Martinho Lutero, Rodin, André Malraux, Albert Camus, Goethe, Maria Casarès, H.G. Clouzot, Cézanne, Schiller, Bizet, Lombroso, Voltaire etc.


PABLO  PICASSO - A  REBELIÃO  CRIATIVA  RADICAL

Em Escorpião encontramos mais males psíquicos que físicos. Alguns, embora muito resistentes, são eternos doentes, custando muito a morrer. É o tipo que carregado de males a todos enterra. Grandes desgastes por excessos (mesa, excitação nervosa, sexo). Problemas nos órgãos da sexualidade, região anal-retal, nariz. Grande sensibilidade a todas as toxinas, dermatoses úmidas, lupo eritematoso, erupções, inchaços alérgicos, edemas, hidropisias, reumatismos de natureza infecciosa... Em muitos escorpianos, tendências autodestrutivas, que aparecem muitas vezes sob a forma de imprudências, podem coexistir com um grande poder de regeneração. No geral, os hábitos são inusitados (exaltação uraniana), tudo em meio a um clima, nos mais evoluídos intelectualmente ou artisticamente, de impulsos de rebelião criativa que redimensionam repertórios.


CONSTELAÇÃO  DE  HIDRA

Nos céus, duas constelações, fora do círculo zodiacal, têm relação
TIAMAT  E  MARDUK
direta com este trabalho, Hidra e Ophiucus. A primeira é a maior constelação dos céus, com cerca de 95º, cobrindo o zodíaco de Câncer a Escorpião. Já conhecida pelos mesopotâmicos, era a personificação do grande monstro Tiamat, vencido pelo deus Marduk. A estrela mais importante de Hidra é Alphard, hoje a 26º35´Leão. Como se pode depreender, a Hidra tem relação com a energia feminina (inconsciente), à alma do mundo, sempre temível e ameaçadora para o mundo masculino, razão pela qual suas imagens em todas as tradições dominadas pelo mundo masculino sempre foram apresentadas como símbolos das forças irracionais destituídas de limites, de forma, evocando sempre o tenebroso, períodos caracterizados pelo caótico, pelo indiferenciado.

ASCLÉPIO
Já a segunda constelação, Ophiucus, era conhecida pelos antigos gregos como Serpentarius, o Curador, tendo relação direta com o culto de Asclépio, deus médico de Epidauro, filho de Apolo. O nome Asclépio vem de uma etimologia que designa em grego a toupeira, animal considerado cego, embora não o seja, porque “gosta” de viver em lugares escuros, em buracos no interior da terra, uma imagem da vida subconsciente. Toda a medicina de Asclépio fala de transformações através de processos como a enkoimesis (deitar e dormir), a metanoia (transformação de sentimentos,  e nooterapia (transmutação da mente), que propunham uma reforma psíquica através da mudança de sentimentos e de ações incubados nos doentes. As teses da medicina psicossomática, como se pode ver, já estavam claramente definidas no centro médico de Epidauro. Acrescente-se ainda que os sacerdotes-médicos desse centro eram especialistas em oniromancia, a arte de interpretação dos sonhos, considerada como via privilegiada para se chegar à vida psíquica dos doentes. Um dos grandes símbolos de Epidauro era a Grande Serpente, ser ctônico, que representava a vida que se renova continuamente.


AS  NEBULOSAS  DE  SAGITÁRIO  

A constelação de Escorpião estende-se hoje de 23º Scorpio a 26º Sagitário no círculo zodiacal. Sua estrela alfa é Antares, a 9º04´Sagitário. As suas outras estrelas, sob o ponto de vista astrológico, são desprezíveis. O que há de mais notável nesta constelação são as nebulosas Acumen e Aculeus (nome de duas estrelas), situadas atualmente no final de Sagitário. Tradicionalmente ligadas à cegueira, literal ou metaforicamente, as nebulosas, como se sabe, sempre sugerem perturbações, obliterações físicas ou metais, dificuldades para se ver as coisas, para percebê-las, como as cegueiras da razão, que podem inclusive levar à morte.


SÃO  PAULO  E  A  VÍBORA  DE  MALTA

Finalmente, lembro que astrólogos cristãos, mais tarde, deram o nome de São Paulo com a Víbora de Malta e de São Bento, o fundador da ordem beneditina, à constelação de Ophiucus. De certo modo, seguiram os astrólogos judeus que a ela já lhe haviam dado o nome de Moisés, inspirados pelo episódio da transformação da vara desse patriarca em serpente. Merece referência especial a associação do nome de São Paulo à constelação: consta que ele, quando andou pela ilha, foi picado por uma serpente e que nada lhe aconteceu. Por ter sido bem recebido, prometeu ao seu hospedeiro que ele e os seus descendentes nada sofreriam se atacados por animais peçonhentos. É por essa razão, conta-se, segundo o folclore da ilha, que os descendentes desse hospedeiro, até hoje, quando nasce uma criança na família põem no seu berço uma serpente para terem a confirmação de que se trata realmente de alguém de sua linhagem.