sábado, 2 de julho de 2016

MITOLOGIAS DO CÉU – PLUTÃO (2)



LIVRO   DOS   MORTOS

Para os antigos egípcios, tudo começava quando um defunto,
ANÚBIS
graças aos amuletos e talismãs depositados na sua múmia e às fórmulas (Livro dos Mortos) que o protegiam na caminhada para o Duat (Outro Lado), chegava a um tribunal onde se realizaria a chamada
MAAT
psicostasia (pesagem da alma). A alma, depois da peregrinação a partir de sua tumba, chegava à sala do tribunal. Quem a recebia era o deus-chacal Anúbis. No centro da sala se encontrava a balança da Justiça; num de seus pratos era colocado o coração do defunto, noutro se depositava uma pena de avestruz, símbolo de Maat, a deusa da justiça. 




PESAGEM   DAS   ALMAS

O tribunal era presidido pelo deus Osíris, na condição de deus dos
ISIS ,   OSÍRIS ,   NEPHTYS
mortos e do renascimento. Ao seu lado estavam as deusas Ísis e Nephtys, ambas suas irmãs, a primeira sua esposa. Distribuídos lateralmente sentados, no recinto, ficavam os 42 assessores, divindades que representam os 42 nomos (comarcas) do país. Às vezes, Ra, a grande
RA
divindade solar tomava parte na cerimônia, sempre numa posição muito honrosa. O deus Toth, na função de escriba que tudo registra, se mantinha perto da balança, manipulada por Anúbis. Mais ao fundo, encontrava-se Ammit ou Amam, o monstro devorador, uma figura tétrica, híbrida, formada por um crocodilo
AMMIT
(cabeça), um leão (corpo) e hipopótamo (extremidade do corpo). Se o julgamento não fosse favorável, o coração do defunto seria devorado por Ammit e ele considerado definitivamente morto, desaparecendo no nada. Se o julgamento fosse favorável, Osíris abriria para ele o seu paraíso. 

No paraíso de Osíris, ele passaria a levar uma vida eternamente feliz, cabendo-lhe contudo algumas tarefas como a de cultivar os domínios do deus e de se ocupar com a manutenção de canais e diques, algo muito semelhante ao que acontecera na sua existência terrena. Ele poderia, contudo, transferir estas tarefas mais ou menos penosas para os “respondentes”, os chamados ushebits, estatuetas parecidas com múmias que acompanhavam o morto na sua ida para o Outro lado. Os ricos, quando morriam, levavam uma grande quantidade destas estatuetas, que funcionariam como escravos nos campos de Ialu, as terras de Osíris, muito parecidas com a rica região pantanosa do delta do rio Nilo. 




Osíris, transcrição helenizada do nome egípcio Usir, foi associado pelos gregos a duas divindades, Hades (Plutão) e Dioniso,
ARISTÓFANES
arquetipicamente as mesmas enquanto aparecem ligadas à vida infernal, à sexualidade e ao renascimento. Não é por acaso, por exemplo, que Aristófanes nos fala de um Dioniso infernal chamado Iakchos. Além do mais, é preciso lembrar que nos mistérios eleusinos Dioniso tem relação com o mundo ctônico como origem da produção agrícola terrestre. A história de Dioniso é fértil de exemplos da alternância que há entre a vida e a morte nos processos existenciais.

Primitivamente, Osíris era um deus da natureza que se encarnava como espírito da vegetação que morria com a colheita e que renascia com a germinação da semente. Foi adorado em todo o

Egito como o deus dos mortos e, nesta qualidade, se tornou a principal divindade do panteão egípcio. Os textos hieroglíficos fazem inúmeras referências a ele, inclusive à sua vida terrestre como um imperador mítico do país (um caso de evemerização?), mas é sobretudo graças a Plutarco que conhecemos melhor a sua história.

Quando  seu  pai,  Geb,  se  retirou  para  os  céus,  Osíris assumiu a
AGRICULTURA

 condição de rei do Egito, unindo-se à sua irmã Isis. O reinado de Osíris foi marcado por grandes feitos político-sociais: aboliu a antropofagia, ensinou aos habitantes do país a arte de cultivar a terra, para a produção de alimentos (pão) e do vinho, de fabricar instrumentos; instituiu os primeiros cultos, orientou a construção de templos, organizou a vida cerimonial, ensinou a fabricação de instrumentos musicais, criou a dança.     Ao
MÚSICA   E   DANÇA
mesmo tempo em que fazia isto, dividiu as terras, estabeleceu os limites dos nomos, fixou regras de convivência. Por tudo o que fez, Osíris passou a ser chamado de Onophris (O Ser Bom). Não contente com a sua obra civilizadora no Egito, resolveu levar às outras nações do mundo a sua proposta política e a sua doutrina, deixando na regência do país a sua esposa Ísis. Acompanharam-no nessa peregrinação dois ministros, Anúbis e Toth. Inimigo da violência, levou longo tempo a propagar a sua obra civilizadora. 

Ao voltar ao Egito, Osíris encontrou o país em ordem. Logo, porém, tornou-se vítima de seu irmão Seth, invejoso de suas conquistas. Consta que no 28º ano do seu reinado foi assassinado
OSÍRIS
por Seth, seu irmão, e seus asseclas, que esconderam o seu corpo. Partindo para buscá-lo em companhia de Toth, de Anúbis e de Hórus, Isis encontrou o corpo do marido destroçado, mas graças aos seus sortilégios conseguiu trazê-lo de volta à vida. Ressuscitado e desde então livre da morte, Osíris não mais reassumiu o seu trono, deixando de reinar sobre os vivos. Preferiu retirar-se para o Outro Lado onde assumiu a condição de rei dos mortos, pontificando num tribunal que julgaria as almas que para lá fossem. 
Ao mesmo tempo em que isto ocorria, nos céus um acontecimento astronômico parecia tudo ratificar. 


CONSTELAÇÃO   DE   ORION

A constelação de Orion, por volta de 6000 aC, começou a ser identificada como heliacal, isto é, suas estrelas começaram a ser vistas antes do nascimento do Sol, consideradas como tal uma espécie de arautos do grande astro solar. Constelação e deus


tornavam-se uma só coisa, um só corpo. A constelação não era nesse sentido um símbolo do deus, mas era a própria divindade. Algo semelhante ocorria com a estrela Sirius (Sothis para os gregos), cujo aparecimento marcava o início das inundações do rio Nilo. Quando Orion deixou de ser vista como constelação heliacal Osíris “morreu”, descendo aos infernos para se tornar a grande divindade dos mortos.

Sabemos que Escorpião é a constelação que, por latitude, mais se aproxima do sul. Sabemos mais que em certo período da história celeste ela conteve as estrelas de Libra, então conhecidas como as Pinças de Escorpião. Entre 5000 e 1000 aC, aproximadamente, no hemisfério norte, o Sol transitou pela chamada constelação do Grande Escorpião (Libra mais Escorpião) durante o equinócio de outono. Era então essa constelação conhecida como uma das quatro grandes portas que davam acesso ao Outro Mundo, tudo representado nos céus pelo crescente domínio das trevas, isto é pela caminhada do Sol em direção do hemisfério sul. Era o começo da parte escura do ano. 



ESCORPIÃO   -   LIBRA

Esta caminhada do Sol em direção do Sul pode ser vista também como uma ilustração da história mesopotâmica que nos descreve a luta de Marduk, deus da luz, contra Tiamat, monstro feminino, divindade oceânica da escuridão. Na mitologia egípcia, sabemos que o Sol era Osíris/Hórus, cujo mito descreve a jornada solar anual através desta constelação. 

A partir de 4000 aC, a constelação de Escorpião, melhor definida no Zodíaco, passou a ser ligada à ideia de escuridão e morte. Foi destas fontes que os gregos desenvolveram o mito do gigante Orion e o de sua morte. Para os egípcios, a constelação de Escorpião com o seu “coração vermelho” tornou-se um dos grandes símbolos da vida e da morte e de que não pode haver vida sem morte. Foi essa constelação que mostrou para os egípcios o caminho para o Outro Lado. Definia ela um dos quatro grandes pontos do calendário, ao lado de Aquário (solstício de inverno), Touro (equinócio da primavera), Leão (solstício de verão) e Escorpião (equinócio de outono). Estes eram os quatro pontos cardinais e seus símbolos eram geralmente colocados nos quatro pontos cardinais das tumbas como norte, sul, leste e oeste. 

Os cristãos adotaram posteriormente estes quatro pontos como os
ARCANJO   GABRIEL  ( GIOTTO )
quatro ângulos do Apocalipse e os quatro arcanjos principais. O guardião do oeste tornou-se o arcanjo Gabriel, cujo elemento é a água. Lembremos que os celtas celebravam a entrada do Sol na constelação de Escorpião com a festa do Samhain, uma grande reunião em Tara para celebrar o fim do verão. A véspera da festa era considerada como uma noite de escuridão na qual as almas dos mortos se agitavam e perambulavam pela terra, pois era a noite em que se abriam as portas do Outro Lado e elas teriam que se dirigir para lá.


PTOLOMEU
A famosa história do diálogo entre o escorpião e a rã, e da morte desta última, é da morte desta última é, como se sabe, de origem celta. Os persas, sírios e gregos sempre consideraram o signo de Escorpião com muito temor. Escorpião perdeu definitivamente as suas Pinças ao tempo de Ptolomeu, que continuou a usar (Tetrabiblos) a expressão de “As Pinças de Escorpião” para se referir ao signo. 

ESCORPIÃO
ABBAZIA  DI  NOVALESA  -  PIEMONTE
ARQUITETURA   CAROLÍNGEA - 726 DC
O aracnídeo escorpião, sempre perigoso por causa de sua ferroada, sempre foi considerado um animal do Diabo, uma criatura sua, mais porque, talvez, uma de suas principais características seja a de se afastar da luz e também porque goste de tocaiar as suas vítimas, evitando confrontos diretos. É demoníaco o escorpião por que ele procura, via de regra, agir sempre em contraste com a aparência que revela. Uma vez escorpião, era o ditado, sempre falso, hipócrita e traidor, ditado certamente de inspiração religiosa, cristã, baseado na figura de Judas Escariotes. Se quisermos ir além nas histórias que demonizam o escorpião, não podemos deixar de mencionar, dentre outras, uma em especial, a que nos conta que as pequenas crias, inexplicavelmente, muitas vezes, atacam a mãe, matando-a... 

Entretanto, em que pesem todos estes exemplos negativos, os
SELKIS
egípcios, embora execrassem o animal, honravam-no através de Selkis, deusa protetora dos mortos, representada por uma mulher com a cabeça do animal. Os gregos, por outro lado, procuraram atenuar um pouco a malignidade do escorpião, conforme veremos no mito do gigante Orion.

Em alguns tratados sobre superstições medicinais, em várias partes do mundo, encontramos relatos de que no caso da picada de um escorpião, recomenda-se aplicar sobre o ferimento o animal (válido para insetos e cobras) “culpado”, esmagado e transformado numa pasta. Essa recomendação, aliás, pode ser encontrada inclusive no Brasil, entre os nossos praticantes da chamada “medicina rústica”. Da Idade Média nos vem a receita para a confecção de um “poderoso” talismã para curar as dolorosas febres provocadas pela picada do animal: quando o Sol se encontrar em seu domicílio e a Lua em Capricórnio, gravar num pequeno pedaço de ouro ou de prata a imagem de um escorpião, pedindo-se, enquanto a peça é confeccionada,  que Deus intervenha para reanimar o doente. Depois de aplicado o talismã sobre a ferida, recitar o salmo Miserere mei Deus, miserere mei, quoniam in te confidit anima mea.

A descoberta de ossadas pré-históricas em várias partes do mundo vem revelando que desde o mais recuado período paleolítico, em
COVA   FUNERÁRIA
que pesem as diferenças geográficas, os cadáveres eram objeto de práticas que testemunhavam um grande respeito que lhes era tributado, podendo-se falar mesmo de cultos aos mortos. Diante da descoberta de muitos esqueletos, a intenção funerária era incontestável, invariavelmente encontrados em covas construídas para tal, cercadas e cobertas de material duro, pedras, fragmentos de ossos, presas de animais etc. Muito comuns nessas covas, junto dos ossos, pequenos adereços, restos de colares e pulseiras, certamente pertencentes ao morto, além de outros objetos, que alguns estudiosos chegaram a identificar como uma espécie de “mobiliário funerário”. Tudo isto vai aparecer entre os egípcios, desde os tempos pré-dinásticos, já organizado cultualmente. 

Em muitas culturas, as peças encontradas no interior das covas estavam recobertas por uma camada de tinta vermelha, o chamado
OCRE   VERMELHO
“ocre vermelho”, em cuja composição entrava a argila colorida por peróxido de ferro. Este produto deixou muitos traços coloridos nas ossadas encontradas, sendo interpretado, por causa de sua cor, como uma representação do sangue. Aliás, a esse produto os antigos deram o nome de hematita (haimatitês, em grego), palavra que quer dizer rocha que tem a cor de sangue. 

Ao adicionar a cor vermelha aos objetos funerários, os homens do paleolítico tinham em mente ideias relacionadas com vida, força, energia, que a cor vermelha sempre representou. Associado ao fogo e ao sangue, a cor vermelha é universalmente considerada como um símbolo fundamental do princípio vital, do seu poder e esplendor. É perfeitamente admissível que os homens do paleolítico, ao usarem o ocre vermelho para pintar os esqueletos e revestir os objetos funerários, inclusive depósitos de comida, tenham tido o objetivo de tornar o morto mais forte na sua caminhada para o Outro Lado, para a sua nova residência.

Dentre os vários objetos funerários revestidos de ocre vermelho,
COQUILLE
DE   SAINT   JACQUES
destacamos os chamados “bastões de comando” (muito semelhantes aos encontrados nas mãos de faraós mortos, no Egito) em osso de rangífer; caninos de ursos e de leões, imagens de focas e de peixes; colares e cinturões feitos com conchas; pedras de sílex talhadas em ponta; inúmeras vieiras, as coquilles de Saint Jacques, símbolo que será usado mais tarde pelos peregrinos que se dirigiriam a Santiago de Compostela em busca de um renascimento. 

Em inúmeros museus do mundo todo, com base nessas evidências arqueológicas, encontramos estabelecida firmemente a ideia de que, acabada a vida terrestre, era possível se admitir a existência de uma vida póstuma, muito baseada naquela, submetida às mesmas necessidades, objetos, alimentos etc. Esses costumes funerários parecem demonstrar que os vivos, ao despachar os seus mortos dessa maneira, talvez demonstrassem mais um certo temor com relação à sua permanência entre os vivos (almas, fantasmas, espectros) como, ao lhes oferecer esses “cuidados”, os estivessem preparando para que eles lhes dessem um favorável acolhimento quando tivessem de ir para o Outro lado. 

Para o homem do paleolítico, a doença era resultante de uma operação mágica e a morte, que nós atribuímos a causas naturais,
PRÁTICA   FUNERÁRIA
era para ele produzida por malefícios cuja autoria ele procuravam sempre determinar. Para os que ficavam, os mortos tinham tanto direito à inveja deles como à vingança com relação àqueles que os haviam assassinado. Qualquer que fosse o entendimento, tudo indicava que as práticas funerárias se constituíam sobretudo em medidas de proteção que os vivos adotavam com relação aos mortos, estes sempre invejosos dos vivos.

Já se disse muitas vezes que os egípcios talvez tenham feito mais por seus mortos que pelos seus deuses. Se as suas ideias referentes ao destino dos mortos se mostrassem ainda algo incertas nos recuados tempos do período pré-dinástico, quatro, cinco, ou seis mil anos aC, já alguns séculos antes das primeiras dinastias (fim do quarto milênio aC) que definem historicamente o início do chamado período dinástico, encontramos algo muito concreto com relação ao cuidado dos vivos com relação aos mortos, as mastabas. 

Estas edificações fúnebres, mais bem acabadas, constituíam um avanço significativo com relação às antigas covas. Construídas com tijolos e depois com pedras, as mastabas nos põem em contacto com ideias de permanência, de eternidade, pois em todas foi encontrado, pelas pesquisas arqueológicas que há muito se fazem no Egito, um farto material fúnebre, objetos, víveres, mobiliário, tudo muito rico e variado.

Nesse período, a personalidade humana aparecia composta de quatro elementos fundamentais: khet, o corpo, particularmente o corpo morto; chut, a sombra, e dois outros que não podiam ser apreendidos pelos sentidos, o ba e o ka. O primeiro sempre foi representado, na linguagem hieroglífica, por um pássaro, uma cegonha, provavelmente em razão do princípio da homologia, ou seja, comparar-se um elemento imaterial (alma) a um pássaro. 


BA

Já o ba, a partir da 18ª dinastia (1580 aC), tomou a forma de um pássaro com cabeça humana que voava nos corredores do hipogeu e podia mesmo alcançar as regiões etéreas. O hipogeu (literalmente, abaixo da terra) era construção subterrânea ou escavada em escarpa, muito usada como sepultura ou templo funerário. 

KNUM
Quando Knum, deus-carneiro, que em muitos mitos cosmogônicos aparece demiurgicamente, criou o homem, seu ka foi modelado ao mesmo tempo. O ka costumava ser materializado por dois braços humanos, elevados em ângulo de 90º, estendidos em direção do céu. Era um gesto de prece, talvez um gesto de admiração diante dos alimentos acumulados. O Ka tanto personificava a energia criadora como correspondia à consciência superior no ser humano. 

Em textos egípcios de natureza moralizante encontramos frases como estas: A mentira é algo proibido ao ka ou Meu ka é  meu guia. Nesse sentido, durante a vida do homem, múltiplas serão as
KA
funções do ka. Depois da morte, ele se destacava do cadáver, mas gostava de ficar por perto, como encontramos em muitos textos. Uma peculiaridade: o ka não podia deixar de se alimentar e de beber. Muitos registros que nos revelam que o ka gostava de pães, de cerveja, da água dos cântaros, de carne (bois e penosas), de perfumes e de unguentos. Ele gostava, enfim, de tudo o que os deuses criaram, sobretudo daquilo que o Nilo oferecia com dádivas ao homem. Lembre-se que em todas as épocas da história do Egito, os túmulos sempre foram construídos de modo a facilitar ao ka e ao ba, a sua localização.

A morte não era igual para todos os egípcios, já que a de um deles, a do faraó, fazia parte de um drama especial, único. Ela comportava três fases distintas. Antes de mais nada, o faraó, ao morrer, identificava-se com Osíris, deus dos mortos, o equivalente dos gregos Hades ( Plutão) e Dioniso e do Shiva védico. Osíris, como se sabe, foi assassinado por seu irmão, Seth, que, apoderando-se de seu corpo, o desmembrou em catorze pedaços, distribuídos por várias regiões do país. 

ISIS   E   SEU
FILHO   HÓRUS
Isis, irmã e mulher de Osíris, acabou encontrando, com exceção do pênis, engolido por um peixe, todos os pedaços do corpo do marido, e conseguiu trazê-lo de volta à vida. É evidente que o corpo dos faraós, quando da ocorrência de sua morte, não era despedaçado. Aceitava-se que cada parte de seu corpo se separava e que depois se reintegrava, no seu sarcófago, um simulacro do palácio real, na obscuridade e no silêncio, ocorrendo então a sua ressurreição. Seus membros eram reajustados. A cabeça, unida novamente aos seus ossos (coluna). Seu espírito, sua alma e sua força voltavam a se unir. Os deuses à sua volta gritavam: Levanta-te, levanta-te!. Às vezes, Ra e Hórus lhe ofereciam uma escada para sair do túmulo. Havia casos, porém, em que o faraó podia achar muito prosaica essa forma de sair do túmulo, optando ele pela forma de um falcão, de um ganso do Nilo ou, ainda, agarrando as mãos de Nut, que na direção dela o atraía, transformando-o numa estrela indestrutível. As portas do céu lhe eram então abertas e ele acabava adentrando no palácio dos deuses sozinho, saudado por Ísis e por Nephtys, glorificando-as. Nada o impediria de residir na região nordeste do céu, entre as constelações circumpolares. Ele, o faraó, neste modelo de morte que estamos descrevendo, podia também ser convidado pelo próprio Ra para residir nos céus.

Os túmulos, até a terceira dinastia, eram retangulares, relativamente simples, tomando a forma de mastabas. As oferendas e a mobília funerária ficavam abrigadas numa cova não muito profunda. Já a essa altura eram postos à disposição do morto alimentos sólidos e líquidos, além de objetos diversos, de toalete, potes, jogos (dama e xadrez) etc. As “necessidades” do morto eram, porém, por essa época, mínimas.

Durante a terceira dinastia, ocorreu uma revolução nos ritos funerários, principalmente com relação ao hipogeu. A pedra substituiu o tijolo, aumentando a consistência da construção. Túmulos reais, na sua parte subterrânea, chegavam a atingir quase trinta metros. A energia cósmica entrava no túmulo por um orifício no teto, fechado por uma enorme pedra (granito). Com o tempo, aumentou-se o número das salas e dos corredores subterrâneos e a partir dessa época ganhou impulso a construção das pirâmides, na realidade uma superposição de mastabas.


MASTABA

Chamada em egípcio de mer, a pirâmide, ao que parece, tem seu nome derivado da palavra grega pyros, grão (trigo, milho, gergelim) de onde vem pyramous, bolo de cereal que tem a forma parecida com a de uma mastaba ou pirâmide. A destinação funerária das pirâmides sempre foi indiscutível, embora alguns, erradamente, tenham tentado associá-las a lugares ocupados por seitas para fins iniciáticos. Parece estar hoje suficientemente provado que as únicas cerimônias que se realizaram ao longo de milênios, nas pirâmides, foram as relacionadas com o culto funerário real.


PIRÂMIDES   DO   EGITO

Como se disse, a pirâmide é uma evolução da mastaba. A partir da terceira dinastia, quando os túmulos reais não se distinguiam muito dos túmulos particulares, um arquiteto, Imhotep, também vizir do faraó Djeser, resolveu construir as pirâmides na sua forma clássica. As preocupações que orientaram tal construção são claras: num monumento como a pirâmide, o corpo do faraó ficaria mais bem protegido e, ao mesmo tempo, o monumento se distinguiria de todos os demais da arte mortuária. Além do mais, a pirâmide, como forma arquitetônica, se ligou, sobretudo a partir da quinta dinastia, às novas concepções heliopolitanas do destino humano, um destino de natureza solar, sobretudo o do faraó, que, ao morrer, se juntaria nos céus a Ra. A pirâmide, desde que adotada a sua forma, sempre foi considerada também como uma via de acesso ao céu, uma espécie de escada.

O que fica dos cultos funerários egípcios praticados ao longo de milênios, qualquer que seja a forma arquitetônica e artística adotada para despachar o morto para uma nova jurisdição, é que eles, esses cultos, sempre procuraram prolongar indefinidamente a vida humana. Se no início do Antigo Império só o faraó tinha direito a uma vida no além-túmulo, já no Novo Império, onze séculos depois, a vida depois da morte podia ser reivindicada e esperada por qualquer egípcio, mesmo o mais humilde camponês, democratizando-se, assim, os referidos cultos.



MÚMIA

Na breve transição entre a vida e o Outro Lado, o egípcio era preparado por uma complexa liturgia fúnebre. Tal liturgia se centralizava no embalsamamento que, para um rico, podia levar até
HERÓDOTO
setenta dias, conforme nos diz Heródoto. Para o pobre, um ou dois dias bastavam. Nesse processo, o importante era a preservação do corpo do morto. Para conseguir isto eram usados compostos de sais, especiarias e resinas, a fim de secar e transformar o corpo eviscerado numa múmia ressecada, enrolada com camadas de linho finamente tecido, na qual haviam sido introduzidos tecidos para mantê-la firme. Restituída à família, a múmia era depois submetida à simbólica cerimônia da abertura da boca. Preparado para “comer, beber e falar de novo”, o morto estava afinal pronto para ir para o seu túmulo. 

O ritual fúnebre dos egípcios exigia o sepultamento no ocidente,
BARCO   FUNERÁRIO
região na qual o Sol iniciava a sua caminhada através do mundo dos mortos. As necrópoles ficavam em territórios imensos, fora das áreas inundáveis do rio Nilo. Nessas necrópoles eram construídas as pirâmides, templos e túmulos, muitos
CARPIDEIRAS
abertos na rocha, mantidos pelos familiares, garantindo-se assim para o morto uma “vida” abastada e folgada no Outro Lado. Grandes procissões de carpideiras levavam as múmias dentro de caixões para os túmulos, primeiro em barcas através do Nilo e depois em terra por carros puxados por bois. Guiada por sacerdotes de cabeça raspada, que queimavam incenso e entoavam cantos rituais, a procissão terminava na porta do túmulo, onde se realizavam os últimos ritos, que podiam compreender uma solene dança cerimonial e um banquete fúnebre.