sábado, 21 de novembro de 2015

MITOLOGIAS DO CÉU - JÚPITER (7)

             
         

Dá-se o nome de celtas a vários grupos humanos, organizados em tribos, de família linguística indo-europeia, que se espalharam pela Europa mais ou menos a partir de 2000 aC. Grande parte da população da Europa ocidental pode ser considerada celta, já que as diversas tribos ocuparam territórios que se estendiam do norte da Grécia (próximo ao mar Negro) à península ibérica e às atuais Inglaterra e Irlanda. Dentre essas tribos, destacavam-se os bretões, os gauleses, os escotos, os batavos, os belgas, os gálatas e outros. 

A religião dos celtas, de um modo geral, tem como base as formulações dos druidas, os sacerdotes que detinham um saber considerado como absoluto, transmitido oralmente. Perseguidos pelos romanos, boa parte deles se refugiou na Irlanda, onde encontrando o seu fim, por volta do séc. VI dC, devido às pressões do cristianismo vitorioso. 

Apesar disso, a cultura celta manteve traços originais até o séc. XVII principalmente na Irlanda, no País de Gales, na Gália (França),  no  norte  da  Itália  e  no  norte  de Portugal e na Galícia,
TRISTÃO E ISOLDA  (WATERHOUSE)
noroeste da Espanha. Nestas regiões, ainda hoje, encontramos alguma inspiração celta na toponímia, na música, no folclore, nas artes e em alguns usos e costumes das populações. A presença da tradição religiosa céltica pode ser notada também num bom número de fábulas que, no decorrer dos séculos, foram sendo absorvidas pelo mundo cristão e nele se integrando. A legenda arturiana e a história de Tristão e de Isolda são bons exemplos nesse sentido.

Quando nos voltamos para a mitologia do mundo celta, em que pese a constatação de alguns casos isolados, as suas fontes só podem ser apreendidas de modo indireto. O que se dispõe quanto a essas fontes é de um conjunto de crônicas de comentaristas romanos e de alguns documentos vernaculares, de épocas posteriores, como textos em irlandês e gaulês. Destaque-se que os comentaristas romanos que se interessaram pelo mundo mítico celta demonstraram, de um modo geral, uma atitude muito compreensiva no que diz respeito a possíveis semelhanças entre as divindades celtas e as romanas. A religião dos celtas se apoiava sobretudo numa prática animista, cada tribo localizando-a no mundo geográfico. Cada região, cada tribo, em consequência desse fato, possuía uma divindade própria, local. Não havia, digamos, uma divindade “nacional”,  um deus ou deuses superiores, que constituíssem um panteão supra-tribal.

Para efeito do nosso trabalho, dividiremos os celtas em dois grandes grupos, os insulares e os continentais. Animistas
CRUZ CELTA
e politeístas, como praticamente aconteceu com todos os povos com as suas primeiras elaborações religiosas, inclusive com relação aos que caminharam para o monoteísmo, os celtas, tanto os continentais como os insulares, veneraram sobretudo divindades tópicas, regionais, ligadas a um lugar determinado, sempre associadas ao mundo natural. Os dois grandes grupos dos celtas insulares foram os irlandeses ou goidélicos e os bretões, termo que tanto designava os habitantes do país de Gales como os da Bretanha armoricana.





Outro ponto a destacar é que os gauleses nunca tiveram uma religião nacional. Cada tribo tinha as suas divindades, embora fosse possível encontrar certas divindades com características que se assemelhavam. É preciso também acrescentar outra dificuldade às já apontadas: a tradição religiosa dos celtas sempre se fez oralmente. Os inumeráveis versos que os druidas (os daru-vid, os muito sábios, os videntes), no dizer de Júlio Cesar, transmitiam aos seus discípulos, os cantos de vitória mencionados por Tito Lívio, se perderam para sempre. O que subsiste desse mundo são apenas algumas inscrições votivas sobre pedras, em estelas, em baixo-relevo. Já se disse que a mitologia dos celtas é uma mitologia sem mitos. Poucas informações existem desse mundo anteriormente aos registros de Júlio César (Commentarii de Bello Gallico)


COMMENTARII   DE   BELLO   GALLICO

Em 390 aC, os celtas invadiram o norte da Itália (Gália Cisalpina) e saquearam Roma. Por volta de 272 aC, fizeram o mesmo em Delfos, na Grécia. Chegaram até a Ásia Menor, passando pelos Balcãs. A partir do séc. II aC, os celtas começaram a perder seus

territórios para os povos de língua germânica. Aos poucos, com muita dificuldade, os romanos conseguiram dominá-los. Em 182 aC, os romanos anexaram a Gália Cisalpina ao seu império. O golpe final veio com Julio Cesar, que conquistou toda a Gália, e com Cláudio, que dominou a Bretanha. Somente a Irlanda e o norte da Escócia, onde viviam os escotos, ficaram fora da influência direta do império romano.

Não há como se estabelecer, com o que sobrou do mundo celta, traços de uma cosmogonia, uma história sobre as origens do mundo, como a que os gregos, por exemplo, elaboraram. A rigor, só na Irlanda é possível encontrar alguma coisa e mesmo assim textos de uma tradição bem mais tardia, do séc. XVI, onde encontramos referências cosmogônicas misturadas a elementos retirados da Bíblia. 

Menciona-se nessa tradição um dilúvio depois do qual levas sucessivas invadiram a Irlanda. Ainda no terreno da mitologia, os primeiros invasores da Irlanda, chamada pelos gregos de Ierne e, depois, pelos romanos de Hibernia, foi a tribo dos Tuatha De Dannann (os Filhos de Danu), originária da união entre a deusa Danu, a grande benfeitora, e Bile, deus da Morte. Essa tribo e seus descendentes desempenharão posteriormente um papel importante na constituição dos reinos irlandeses. Foram os membros dessa tribo que venceram os monstruosos e disformes gigantes que lá viviam em terríveis batalhas.


PARTHOLONOS

A ocupação da Irlanda está relatada no chamado Livro das Invasões, sendo difícil separar o que é mítico e o que é histórico. Tal ocupação teria começado sob as ordens de um certo Partholon, de origem grega, que viera com a sua família e um  séquito do qual faziam parte sacerdotes (futuros druidas?). O ciclo das invasões só terminaria com a chegada dos gaélicos. Há registros de que Partholon e seu grupo foram vitimados por uma peste. A história deste primeiro invasor sobrevive, contudo, até hoje, no folclore irlandês, no qual ele aparece como um demônio da fertilidade. Os últimos invasores, os gaélicos ou goedélicos, que falavam uma língua de mesmo nome, eram descendentes de dos Filhos de Mil, originários, ao que parece, da Espanha.

Quando os gaélicos chegaram à Irlanda, impondo-se aos descendentes da tribo de Tuatha De Danann, foi-lhes prometido sucesso, pelas divindades locais, se eles escolhessem o nome de uma delas para a terra que estavam conquistando. Um vidente (fili), em nome dos gaélicos, assegurou que a terra conquistada passaria a se chamar Eriu. A deusa, por seu turno, através do vidente, garantiu que a terra conquistada jamais deixaria de pertencer aos gaélicos. 


DAGDA

De um modo geral, quando falamos de religião na Irlanda, menciona-se o nome da deusa Danu, uma espécie de Grande Mãe, cujo culto revelava a presença de antigas tradições matriarcais. Mas, posteriormente, quem aparece no centro de panteão dos gaélicos é Dagda, onipotente e sábio, o Pai Supremo, lembrando ele, em muitos aspectos, Zeus e Júpiter. Seu nome traduz uma ideia de bondade. Seus principais atributos são uma grande clava, arma que, na sua mão, o torna sempre no mais temível dos contendores, e um caldeirão, inexaurível, que representa a abundância e a hospitalidade. Glutão, com uma sexualidade incontida, ele tem como esposa Morrigane, deusa da guerra. Protetor dos Filhos de Danu, assumiu um papel importante na luta entre estes e os gigantes. 


TARANIS
Dagda, como o Júpiter dos gaélicos, foi chamado pelos romanos de Taranis ou Taran, nome equivalente a trovejante, ao latino tonans e ao grego brontaios, sob o qual eram conhecidos, respectivamente, Júpiter e Zeus. Taranis personifica também o Sol. Seu caldeirão (gundestrup) aparece sempre ao lado de uma roda que tanto simboliza a irradiação do astro como a força das tempestades, como Lucano (poeta latino, séc. I dC, sobrinho de Sêneca, e companheiro do imperador Nero) o descreveu, tudo com a finalidade de que o seu duplo aspecto, o temível e o benevolente, fosse devidamente representado.



GUNDESTRUP

No continente, fixemo-nos nos gauleses, as tribos mais importantes da Europa continental, que ocupavam o que é hoje, mais ou menos, o território francês. Antes, porém, é preciso salientar que o estudo da religião dessas tribos gaulesas sempre ofereceu muitas dificuldades porque eles, como todo os demais povos celtas, professavam, como dissemos, uma espécie de animismo que não se preocupava com as representações figuradas, imagens, estátuas etc.

As melhores informações sobre a religião dos celtas gauleses são encontradas nos registros de Júlio César, embora ele nunca tivesse se preocupado com informações mais exatas sobre essa tribo. Escreveu Júlio Cesar: Os gauleses reconhecem a Mercúrio, Apolo, Júpiter, Marte e Minerva, mas professam a Mercúrio uma veneração particular. Sua crença a respeito das divindades é quase a mesma que a crença dos outros povos. Consideram a Mercúrio como o inventor de todas as artes; pensam que ele preside aos caminhos e que exerce uma grande influência no comércio e sobre as riquezas; que Apolo evita as enfermidades, que se devem a Minerva os elementos da indústria e das artes mecânicas, que Júpiter governa com poder soberano o céu e que Marte é o deus da guerra.

Adoravam os celtas gauleses sobretudo as montanhas, os bosques,
BORMOS

as fontes e os rios. O rio Reno, divinizado, era considerado como o nume da fidelidade conjugal. As crianças, mergulhadas no rio, se filhos legítimos, eram salvas, devolvidas pelas águas aos seus pais. Se adulterinas, o rio as levava. Nas águas termais pontificava Bormos, gênio da saúde, auxiliar do deus médico Apolo. 




AGÁRICO
Era nos bosques sagrados, que exerciam também a função de templos, que os celtas se reuniam, junto de determinadas árvores, respeitadas mais que todas. Entre os vegetais, a verbena e o agárico eram os mais sagrados. A primeira era recolhida pelos sacerdotes, os druidas, no primeiro dia da canícula, antes da saída do Sol. Para se recolher o agárico ou visco se esperava a Lua de dezembro. 

O catálogo dos deuses dos celtas gauleses não era muito extenso. Dentre os mencionados com maior frequência pelos poetas latinos,
BELENO
destacamos: Bel ou Beleno: senhor do céu, personificação do Sol. Divindade benéfica que fomentava a germinação dos vegetais e que atuava através de plantas curativas. Belisana: deusa considerada como inventora das artes e identificada pelos romanos como a sua Minerva. Era representada com uma espécie de capacete adornado com um penacho; vestia uma túnica sem mangas, usando por cima dela um peplo. Aparecia com os pés cruzados e com a cabeça apoiada em sua mão direita, em atitude de meditação. 


Taut ou Tautates tinha poder sobre as obras ditadas pela inteligência, o comércio e as medidas. Era também o deus da guerra e adorado sob a forma de um dardo, aparecendo então como protetor nas batalhas. Sob a forma de um carvalho, era invocado para proporcionar a iluminação da inteligência. Taran ou Taranis, associado ao Júpiter romano, era o deus do fogo e das tempestades, manifestando-se através do trovão, do relâmpago e do raio. Ogmios: deus da eloquência, de cujos lábios pendiam correntes de ouro que sujeitavam seus adoradores pelas orelhas. Kirk:
TARVOS-TRIGARANOS
personificação do furacão. Tarvos-Trigaranos: deus conciliador invocado por litigantes. Sua imagem era a de um touro de bronze. Onuava: deusa que representava a terra. Esterela: deusa que proporcionava fecundidade às mulheres. Kermo: deus da caça. Dis e Pikolo: divindades infernais. Irmim ou Irminsul: terrível deus da guerra, semelhante a Marte. Goibiniu: deus da cerveja. Lug, deus cultuado pelos descendentes da tribo de Tuatha De Danann como pelos fomorianos, era uma divindade da luz. Os gauleses faziam seu nome derivar de lugos (corvo), ave solar entre os gregos, consagrada a Apolo. O antigo nome dado à cidade de Lyon, na França, Lugdunun, tem relação com os nomes do deus e da ave, sagrada entre os gauleses. Lembremos que o corvo,  entre escandinavos e germânicos, aparece sempre associado Odin-Wottan.


ODIN  -  WOTTAN

  O corpo sacerdotal dos gauleses era formado pelos druidas, divididos em três classes: os ovatos, aspirantes à dignidade sacerdotal; os bardos, cantores das louvações aos deuses; os darvidins, ministros do culto, que ademais exerciam as funções judiciais, médicas e pedagógicas (instrutores da juventude); vestiam-se de branco, adornavam-se com braceletes e amuletos de pedras na forma de serpentes. Ao que parece, eram os darvidins celibatários, viviam nos bosques, reunidos em comunidades.

DRUIDAS
É de se lembrar que os druidas, como poder religioso, implantaram no mundo celta gaulês uma verdadeira teocracia. Legisladores e juízes, exerciam uma autoridade incontestável, faziam a paz e a guerra, interferiam no poder real, estabeleciam penas e castigos. Estavam isentos do serviço militar, tinham o monopólio da realização dos sacrifícios, tanto públicos como privados, podiam excomungar os que desacatavam suas sentenças, excluindo-os das cerimônias religiosas.

Escritores gregos nos deixaram relatos de que as mulheres também atuavam no druidismo, dele participando através de três classes: na primeira ficavam as que deveriam, num santuário, guardar a virgindade por toda a vida;  na segunda, ficavam as mulheres que poderiam se casar, mas somente podendo sair do santuário uma vez por ano, quando então visitavam a família; na terceira classe ficavam mulheres como servidoras das duas primeiras classes. As druidesas das duas primeiras classes praticavam a astrologia e trabalhavam como adivinhas através da hepatoscopia em vítimas humanas.  Em Estrabão, o grande geógrafo grego, encontram-se registros de sacrifícios humanos conduzidos pelas druidesas. Os vaticínios de algumas dessas mulheres se tornaram muito conhecidos no período galo-romano, chegando mesmo alguns imperadores romanos a consultá-las. Era na ilha de Saina que se encontravam as druidesas de maior prestígio na arte do vaticínio.

Com o avanço crescente da religião cristã a partir do início da era cristã, o druidismo feminino foi perdendo o seu prestígio até desaparecer, o que deu lugar ao aparecimento de muitas lendas pelas quais tomamos conhecimento que as druidesas, perseguidas, transformaram-se em fadas, passando a viver escondidas, propagando-se desde então muitas histórias sobre elas, sempre consideradas como um inapagável vestígio do druidismo.

Como criaturas maravilhosas, senhoras da magia, as fadas e suas histórias fazem parte hoje de uma literatura, a dos contos de fadas,
REINO  DAS  FADAS  DE  BROCELIANDE , BRETANHA 
na qual elas aparecem, de um modo geral, como protetoras, embora algumas possam se dedicar ao Mal. Nesse sentido, são consideradas como feiticeiras, bruxas, agentes das forças negativas que operam no universo. No leste da França, em lugares da Bretanha, e da Normandia, bem como na Irlanda e na Escócia, o mundo das fadas sobrevive não só através de grandes festas celebradas todos os anos em datas especiais e da literatura que sobre elas continua a ser editada, mas, sobretudo, da toponímia de vários lugares.


Quanto à mitologia dos povos do norte da Europa esclareça-se desde logo que ela compreende principalmente os mitos
EDDA  DE  STURLUSON 
propagados a partir da península escandinava e Islândia. Um ramo deste tronco é a mitologia germânica, que difere da outra só em detalhes. Ambas têm um fundo comum e praticamente os mesmos deuses. O texto clássico da mitologia escandinava chama-se Edda, nome de duas obras do séc. XIII, provenientes da Islândia. A primeira, descoberta em 1643, é chamada de Edda Poética ou Edda Antiga, e teria sido composta por Semudo Gigfusson; a segunda tem o nome de Edda em Prosa ou Edda de Snorri Sturluson (seu autor).


Estas obras são uma compilação de poemas mitológicos, cosmogônicos e históricos, produto de uma longa e antiquíssima tradição oral, recitados na Idade Média, de castelo em castelo, pelos escaldos, bardos ou trovadores dos países setentrionais. Os poemas que tratam da matéria histórica chamam-se sagas. O segundo grupo de poemas, de Snorri Sturluson, é uma espécie de comentário dos primeiros poemas.

Os mais importantes poemas da Edda celebram a vitória de Odin ou Wottan. Um deles, a Voluspa (profecia da adivinha), é posto na voz de uma profetisa e oferece uma exposição bastante completa da mitologia escandinava. Em termos muito resumidos, a visão cosmogônica começa pela descrição de duas regiões, uma do fogo e da luz, Muspilheim, onde reinava um ser absoluto e eterno, Alfadir; outra, das trevas, era dominada por Sotur, o Negro, chamada Nifflheim. Entre ambas existia o caos. As chispas que saltavam da primeira região acabaram por fecundar a outra, dando origem aos rios e vapores fumegantes da outra, nascendo desta fecundação Imir, o pai da raça dos gigantes. Tão logo nascido, o gigante sentiu fome. Um raio da região luminosa fundiu o gelo de Nifflheim, aparecendo a vaca Audumbla, de cujos quatro úberes nasceram quatro rios, quatro fontes de leite que saciaram a fome do gigante, que, logo depois, pôs-se a dormir. Da transpiração de suas mãos nasceu um par de gigantes, um macho e uma fêmea. De um dos pés de Imir nasceu um monstro com seis cabeças.

A vaca sustentadora dos gigantes, para se alimentar, lambia a neve na fenda das rochas. Um dia, sob a neve, surgiu uma cabeleira; no dia seguinte, um crânio; no terceiro, um corpo. Era o deus Bure, forte e de formosas proporções. Sozinho ele gerou Bor, que, unindo-se a uma giganta, deu existência a Odin, Vili e Ve, deuses destinados a criar o mundo e a dele se assenhorear.

Estas três divindades e seus trinta e dois descendentes, chamados Ases, tiveram que sustentar um grande combate contra os gigantes, que foram vencidos. Morto Imir, o sangue que saiu de suas feridas afogou, com exceção de um, chamado Bergelmer, todos os demais gigantes de sua raça. Com o corpo de Imir os deuses vitoriosos formaram o cosmos; de sua carne foi feita a terra; de seu sangue, o mar; de seus ossos, as montanhas; de seus cabelos, as árvores. Suspenso sobre a terra, o crânio de Imir se converteu na abóbada celeste. Para iluminá-la, os poderosos Ases nela fixaram as faíscas que se desprendiam da região luminosa. Os restos não aproveitados do enorme corpo de Imir foram roídos por inumeráveis vermes (gusanos), deles nascendo a raça dos anões que passaram a se ocultar nas cavernas, pelas quais tinham acesso ao interior da terra, assumindo a condição de guardiões dos tesouros nela escondidos.

O tema dos anões na mitologia germânica é um dos mais importantes, ao lado daqueles referentes ao elfos, aos trolls  e aos gigantes, sobrevivendo mesmo depois da cristianização dos povos do norte da Europa. Snorri, por exemplo, nos revela que os anões sempre apareceram associados à arte da metalurgia, como os nomes que muitos deles ostentam sugere. Vivendo em baixo da terra, no mundo subterrâneo, foram os anões que produziram muitos tesouros, armas e joias dos deuses, como Durandal, a espada maravilhosa, ou como o martelo de Thor etc. 
  
Para completar a obra iniciada, os deuses resolveram criar um primeiro casal. De um freixo formaram o homem, Askur; de um amieiro formaram a mulher, Embla. Odin lhes deu uma alma, Vili o entendimento e Ve a beleza e os sentidos. Satisfeitos com o que haviam feito, os deuses retiraram-se para a sua mansão, Asgard, no centro do universo, rodeada de várias cidades e refulgentes palácios, moradas dos demais deuses.

YGGDRASIL
O freixo, na tradição escandinava, era um símbolo da imortalidade e de uma ligação entre os três níveis dos cosmos. Como primeira árvore criada, aparece como o Yggdrasil, que sustentava o teto do mundo e sob o qual os deuses realizavam as suas assembleias. Os freixos afastam os maus espíritos e suas folhas distribuídas pelos cômodos de uma casa são extremamente protetoras contra o mal. Consta que o freixo curava, dentre outros males a hidropisia e lepra (as suas cinzas). 

Já o amieiro é o outro vegetal e dele a humanidade também procede. Era muito usado na magia para a fabricação de varas mágicas e em sessões espíritas, já que sua fumaça era muito propícia a contactos com o “Outro Lado”. Sua essência sempre foi muito usada expulsar insetos daninhos de quaisquer espécies. 

A primeira divindade no panteão escandinavo é Odin, de nome Wottan entre os germânicos, assemelhando-se muito ao Zeus dos gregos e ao Júpiter dos romanos. Ele é o recriador e o conservador do universo, além de poderoso deus da guerra. Dispõe de três palácios em Asgard: um para receber os demais deuses, para a sua vida social: outro de onde domina todo o universo, para as suas funções executivas; e um terceiro, o Valhala, no qual instala os heróis mortos nas batalhas, para que lá passem a viver eternamente
uma vida de prazeres, cobertos de glória. Seu cavalo chama-se Sleipnir, maravilhoso, que alcança uma grande velocidade devido às suas oito patas. Ao seu lado, sempre, dois lobos, Geri e Ferki, que o seguem por todo o lado. Dois corvos, Hugin (Espírito) e Munin (Memória), vivem nos seus ombros e têm a missão de recolher todas as informações que circulam no universo, inclusive os pensamentos dos mortais. 

É preciso esclarecer que Odin-Wottan, antes de se tornar uma divindade todo-poderosa, tinha sido uma espécie de demônio das tempestades. Nos países germânicos, principalmente, era crença unânime que em noites de tormenta os espaços celestes eram atravessados pelos fantasmas de guerreiros mortos, em galope tumultuoso com os seus cavalos. Esta tropa furiosa era chefiada por um guerreiro cujo nome na antiga língua alemã era retirado de uma palavra que significava frenesi, furor. Seu nome era Wode, depois Wodan, Wottan, que muitos alemães consideram seu ancestral, Odin para os escandinavos. 

Esta divindade das tempestades noturnas foi aos poucos perdendo o seu aspecto negro para se tornar uma divindade inspiradora de coragem, dispensadora de heroísmo e de vitória e que das alturas decidia os destinos humanos. Sabe-se mais que Odin-Wottan exercia funções médicas, tendo sido encontradas pela arqueologia fórmulas para os mortais invocá-lo no caso de problemas de articulação dos membros (luxações e entorses).  

Odin entre os escandinavos é tanto divindade da guerra como da inteligência superior. Ele é belo e fala tão bem que tudo o que vem dos seus lábios se torna verdade indiscutível. Quando fala, Odin se expressa em língua poética, como os escaldos, Por outro lado, pode tomar todas formas que desejar, touro, serpente, pássaro ou monstro. Quando ele chega ao campo de batalha. Os seus inimigos se tornam subitamente surdos, cegos, impotentes. 


SLEIPNIR
Foi Odin quem fixou as leis que regem as sociedades humanas. Aparece sempre com uma brilhante couraça revestindo o seu peito, tendo na cabeça uma capacete de ouro. Leva sempre nas mãos a lança Gungnir, forjada pelos anões, e que nada pode desviar do objetivo colimado. Nenhum cavalo pode se igualar a Sleipnir, sua montaria. Não há obstáculo que ele não possa superar. 

Odin tem o seu trono numa vasta e resplandecente sala de ouro no Valhala. É lá que ele chama para que fiquem próximos a ele os que mais se distinguiram nos campos de batalha. O telhado de seu palácio, no lugar de telhas, tem escudos brilhantes. Ao invés de bancos, os convivas se sentam em couraças. À noite, o palácio de Odin-Wottan parece um imenso navio iluminado; quando os heróis sacam de suas espadas para celebrar, seu brilho faiscante, enche mais os salões de luz. O palácio tem ao todo 540 portões, podendo passar por eles, ao mesmo tempo, sem atropelo, 800 guerreiros.

ODIN, COMO ÁGUIA, SORVE O HIDROMEL
Neste palácio, os heróis passam o seu tempo se divertindo. Em jogos guerreiros e festins, algo muito semelhante ao que os gregos tinham no seu País dos Bem-Aventurados. No palácio, vivem ao lado de Odin-Wottan as Valquírias, que exercem as funções de guardiãs e de servidoras. São elas que servem o hidromel e a cerveja e que mantêm os pratos permanentemente cheios. 

As Valquírias exercem também uma função militar (têm uma aparência de guerreiras) muito importante. Quando os guerreiros
VALQUÍRIAS
participam de alguma batalha, são elas que designam os que devem morrer e são elas ainda que fazem a vitória pender para este ou para aquele chefe, desde que merecedor da sua graça. Elas percorrem constantemente os céus montadas nos seus cavalos. São invisíveis para todos, salvo para os guerreiros que elas escolheram para subir ao Valhala a fim de se tornarem companheiros de Odin-Wottan. 


Odin-Wottan costuma participar dos negócios humanos. É raro que ele o faça na sua forma divina. Comumente, aparece sob o disfarce de um viajante. Ele é inconstante nos seus favores, muitos de seus desígnios são inexplicáveis, acontecendo às vezes que ele cause a morte de um herói que protegeu por longo tempo. 

Odin-Wottan tem uma vida amorosa muito intensa e diversificada. Sabe-se de muitos casos que teve com deusas, com mortais e mesmo com gigantas. O lado guerreiro de Odin-Wottan ou a sua
RUNAS
atividade erótica nunca abafaram outras características suas como a divindade da sabedoria e da poesia, da medicina, da magia e sobretudo como mestre das runas, que, como se sabe, têm poder mágico, constituindo-se num sistema simbólico de grande riqueza. Runa vem de run, palavra que em antigas línguas nórdicas significa segredo.


A ciência das runas Odin-Wottan a conquistou (não a tinha infusa) ao interrogar todos os seres que viviam no universo. Quem o ajudou nessa conquista foi Mimir, seu tio materno, um demônio das águas, reverenciado por todos os germânicos. Foi numa fonte, onde eram guardadas a sabedoria e a inteligência, perto do Yggdrasil, que Mimir, “o que pensa”, ajudou Odin-Wottan a obter a ciência das runas. 

Um dos episódios mais curiosos da crônica de Odin-Wottan é o do seu sacrifício voluntário e da sua ressurreição. Um velho poema conta que durante nove noites, ferindo-se com a sua própria lança, ele, na forma humana, permaneceu preso aos galhos do freixo divino, seu corpo balançado aos ventos. Esse acontecimento sempre foi considerado como um rito mágico que tinha o objetivo de provocar o seu rejuvenescimento, pois, segundo a mitologia escandinavo-germânica, os deuses, como os humanos, são destinados à degeneração.

Transcorridos os nove dias, os galhos da árvore se quebraram e Odin-Wottan caiu no chão, revigorado, como se tivesse passado por um segundo nascimento. Mimir o fez beber o hidromel divino e, desde então, suas palavras se tornaram cada vez mais sábias e suas obras cada vez mais úteis para os deuses e para a humanidade.  
  
 A história de Wottan-Odin não pode deixar de ser considerada juntamente com a de uma outra divindade chamada Tiuz ou Tyr, que era bem mais antiga que Odin-Wottan e que Thor-Donar. Era também chamado de Ziu por muitas tribos do norte da Alemanha. Os escandinavos o chamavam de Tyr e o anglo-saxões de Tiw. Admite-se que tais designações têm a ver com o Dyaus sânscrito, com o Zeus grego e com o Deus dos latinos. Este nome, como sabemos, passou a designar uma divindade tanto celeste quanto da guerra. Aos poucos, porém, esta divindade passou a representar somente o espírito militar das tribos, tomando o nome latinizado de Thincsus, adotado por exércitos romanos que atuavam no mundo germânico. O nome Thincsus foi inclusive agregado ao do Marte romano.