domingo, 27 de março de 2016

SATURNO (3)

                                          
Antes da chegada de Cronos à península itálica, havia uma antiga divindade chamada Consus, que atuava, na região central da Itália, como deus da vegetação, do bom conselho e das sementeiras. Seu nome parecia ter relação com o verbo condo, que significa estabelecer alguma coisa (uma cidade, por exemplo), com a palavra absconsus, que tem o sentido de esconder longe de, retirar da vista, e com o verbo consulo, deliberar, refletir, ser prudente, saber aconselhar. 



CONSUALIA

Suas festas eram as Consualia, com duas cerimônias distintas: numa primeira, celebrada a 21 de agosto, depois das colheitas, Consus aparecia associado à deusa Ops (opiconsivia), festas nas quais havia corrida de carros e de cavalos, divertimentos diversos e danças. A segunda festa se realizava no dia 15 de dezembro, depois das sementeiras, também com jogos e divertimentos. Foi durante as Consualia que ocorreu o famoso episódio do rapto das sabinas pelos romanos.  


OPICONSIVIA

Saturno tem duas faces entre os romanos. Pode ser considerado como uma antiga divindade agrícola, originária do mundo latino, e pode ser visto também como um deus novensile, isto é, importado da Grécia, o Cronos grego, derrotado na Titanomaquia, que chegou à Itália e ali teve o seu destino unido ao do deus Janus. O nome Saturno, nesse sentido, encontra as suas raízes nas palavras latinas satur, saciado, farto, ou sator (semeador), sendo sinônimo de abundância em ambos os casos. 


TITANOMAQUIA

Na Itália, Saturno é o deus dos trabalhadores do campo e dos viticultores (vitisator). Sob o nome de Stercutius ele vela pela estrumação dos campos. Sempre aparece associado à deusa Ops, uma personificação das riquezas da terra. Esta deusa sempre foi considerada como a esposa do deus. Seu nome deriva da palavra opus, obra, trabalho, atividade que produz riquezas, que gera abundância. Suas festas se realizavam nos mesmos dias das Consualia (15 de agosto e 21 de dezembro). Seu culto, de origem sabina, foi introduzido na Itália pelo rei Tito Tácio.

Saturno sempre foi considerado entre os romanos como rei da Itália durante a Aetas Aurea. Expulso por Júpiter dos céus, teria se escondido na região romana, perto do Capitólio. Suas grandes festas eram celebradas a partir do dia 17 de dezembro, ligadas desde tempos muito remotos a três festividades campestres: sementivae feriae, consualia larentalia e puganalia. As primeiras, como o nome indica, eram celebrações relacionadas com as sementeiras; as seguintes tinham a ver as mencionadas Consualia e com as Larentalia.

ACCA   LAURENTIA
As Larentalia, também chamadas Accalia, eram festas que se celebravam em hora de Acca Larentia, que, na mitologia, era a mulher do pastor Fáustulo, que encontrou Rômulo e Remo às margens do rio Tibre. Morrendo um dos doze filhos de Acca Larentia, Rômulo assumiu o seu lugar e instituiu um colégio sacerdotal com os outros onze irmãos, chamado Arvais (de aruum, campo lavrado), que não só cultuaram depois
CARMENTA


a memória da mãe quando do seu falecimento como se encarregavam de realizar sacrifícios para favorecer a fertilidade dos campos. Os cânticos dos irmãos Arvais tinham o nome de carmina (nome proveniente de Carmenta, antiga deusa das profecias); eram fórmulas mágicas rituais que tinham a finalidade de aumentar as lavouras e de garantir a sua proteção. 




FAUSTUS   E   ACCA   LAURENTIA   ENCONTRAM   RÔMULO   E   REMO 



JANUS   BIFRONTE
( BRITISH   MUSEUM )
Ovídio nos conta que Cronos foi acolhido no Latium, nome que, segundo ele, viria do verbo Latere, estar escondido. Nessa região, perto do Capitólio, fundou ele uma cidade fortificada a que deu o nome de Saturnia. Quem o acolheu foi um dos mais antigos deuses indigetes (não importados), Janus, o deus bifronte. Ao lado da cidade de Saturno, Janus tinha a sua fortaleza, chamada de Janículo.

Dividindo fraternalmente o poder, as duas divindades governaram o país, sendo conhecido, em Roma, o período em que ambos atuaram juntos pelo nome de aetas aurea, um período no qual os poetas sempre viram progresso, honestidade, liberdade, paz e abundância.

Como grande promotor da civilização que ali então se instalou, Saturno transmitiu ao povo do lugar, ampliando bastante a obra de Janus, o conhecimento do cultivo dos campos, da construção de casas e deu aos homens leis justas e sábias. Virgílio nos fala desse tempo no qual não se ouvia a trombeta bélica nem o som metálico das espadas sendo forjadas nas duras bigornas. 

Saturno era representado normalmente como um homem maduro, de barbas, empunhando uma foice. Embora com este instrumento nas mãos, sempre associado à castração, à mutilação e à ceifa de tudo o que existia, Saturno nunca apareceu, entre os romanos, com o aspecto soturno e sinistro do Cronos grego.

Historicamente, sempre permaneceu viva entre os romanos ao longo de sua história a propensão para venerar uma energia misteriosa, chamada de força vital, que comandava a vida universal, movimentando tudo, os ciclos da natureza e os seus reinos. De outro lado, havia a vontade do ser humano, uma vontade que ele deveria procurar conciliar com tal energia se ela lhe fosse propícia ou procurar desviá-la ou paralisá-la se ela lhe fosse negativa. 

Estas ideias explicam também a tendência dos romanos de venerar , como deuses ou gênios, as expressões particulares dessa energia misteriosa, nos mínimos aspectos da vida em que ela intervinha. A esses aspectos era dado o nome de numina (vontade divina, assentimento); a eles era concedido sempre um gesto de respeito, uma oferenda, alguma oração. Era o numen que fazia com que a criança pegasse o seio da mãe, o outro que a fazia beber; um numen intervinha quando a semente era enterrada ou quando se amarrava o feixe do trigo. Esta disposição mental nunca desapareceu da vida romana e acabou por levar à divinização muitas abstrações e atributos alegóricos. Sempre, pois, uma tendência dupla entre os romanos: generalização e fragmentação infinita do divino.

O homem romano dos primeiros tempos (sécs. VII e VI aC) era um camponês, sendo sua vida muito afetada por valores saturninos. Esses valores eram acrescentados ao culto doméstico; falam sempre
CATÃO , O   VELHO
de aumento do domínio territorial, do anseio de preservar e fazer prosperar os rebanhos e as plantações. Há um tratado de agronomia desse tempo, atribuído a Catão, o Velho, que nos fornece pormenores numerosos e precisos sobre as festas a celebrar, os sacrifícios a realizar, as orações a recitar etc. Cada ato da vida agrícola devia ser acompanhado sempre de um ato religioso que solicitava o seu êxito ou procurava apaziguar o descontentamento da divindade do lugar.


As preocupações agrárias penetraram profundamente a religião oficial. Os maiores deuses do panteão romano sempre se associaram à vida dos campos. Existia, por exemplo, um Júpiter Liber como deus do vinho novo. Marte era o deus protetor do trabalho agrícola e de seus produtos. O nome Saturno, para muitos, derivava-se de sata, palavra que significa “terras semeadas”. 

Saturno sempre deu sustentação, através de dois de seus principais valores, o pai de família e a vida agrícola, à vida religiosa romana dos primeiros séculos da cidade. A aetas aurea do mito explica-se: uma existência assegurada pela continuidade da família agrupada em torno do seu chefe. Isto explica também porque a religião desses primeiros tempos incorporou o pensamento jurídico (Saturno se exalta em Libra), a preocupação pelos interesses materiais, o sentido realista dos proprietários de terras e de chefes de família. 

Desde 500 aC já temos registros de um templo dedicado a Saturno em Roma e de festas celebradas em seu nome, as Saturnalia, que lembram muito as festas de ano novo no oriente em  várias culturas. Com estas festas se procurava fazer com que uma idade de ouro fosse periodicamente revivida, dela participando toda a população da cidade. Nas Saturnalia, como elementos importantes, tínhamos as “presenças” divinas entre os mortais, o chamado convivium publicum, a abundância coletiva e a eliminação da barreira entre as classes. O festim público, patrocinado pelo Estado, tinha um objetivo principal, provocar o deslumbramento das classes inferiores (escravos e trabalhadores). Por uns dias, vivia-se o otium da idade de ouro sob a tutela do saturnalicius princeps, que pontificava em desfiles de características carnavalescas. 



No período das Saturnalia, os mortais, mesmo os de nível social mais baixo, afastavam-se das fadigas e das preocupações do seu penoso dia-a-dia, para viver alegremente por duas semanas. Por volta de 220 aC as Saturnalia foram transformadas nas maiores festas de Roma, vivendo a cidade esse período dourado com grande fartura. 

Se procurarmos nos aproximar de tudo isso mais objetivamente não poderemos deixar de concluir que as Saturnalia representaram sempre uma grande jogada política que tinha o objetivo de reafirmar a unidade nacional e a glorificação do país diante de ameaças externas como o poder cartaginês e a segunda guerra púnica. O Senado romano manobrou magistralmente, apelando para o culto religioso com a finalidade de garantir a unanimidade nacional. Desde então, as Saturnalia, por uns poucos séculos mais, a Saturnia Regna, ainda se mantiveram como símbolo da esperança e do renascimento. Estas ideias foram certamente as inspiradoras dos primeiros cristãos, que se valeram das Saturnalia, que se estendiam de meados de dezembro aos primeiros dias de janeiro, para nelas fixar o Natal, o nascimento de Cristo, no dia 25 de dezembro. 


MITHRA   CRIANÇA
Outra “colaboração” para o Natal cristão foi a festa celebrada em Roma em homenagem ao deus solar persa Mithra. Esta festa foi implantada em Roma no primeiro século da era cristã e se tornou tão popular que, durante o reinado de Aureliano, em 274, o culto a Mithra foi declarado como religião oficial do Estado, fixando-se a data 25 de dezembro para as devidas celebrações, festa do Sol Invictus.

Lembre-se que para impor o Natal cristão os Padres da Igreja fizeram uma opção entre cinco datas, 25 de dezembro, 1º de janeiro, 6 de janeiro, 25 de março e 20 de maio. Nestes primeiros tempos, a festa do Natal se resumia à celebração de uma missa no dia 25 de dezembro, que “honraria não o Sol dos pagãos, mas o Criador do Sol.” Só no ano de 337 a festa de Natal cristã tomaria a sua forma definitiva, ano em que o imperador Constantino foi batizado, unindo-se desde então a Igreja e o Estado. 



O maior responsável pela consolidação de Saturno como divindade nacional foi o poeta Virgílio; na sua quarta Bucólica, em latim também chamada Eclogae, a sua primeira grande obra, o poeta põe em cena a vida pastoril e fala do futuro glorioso de Roma. Saturnus Rex não é evidentemente o fundador de Roma (Janus o antecedeu), mas na voz do poeta Saturno se transforma no grande construtor do mundo romano e ancestral de uma genealogia que, atravessando séculos, chegará até Augusto.  

Lembre-se que o solstício de inverno sempre teve uma grande importância para os povos europeus, pois era ele que abria a fase ascendente do ciclo anual, enquanto o solstício de verão abria a fase descendente. Daí o mito de Janus e das portas solsticiais, representadas pelas duas faces do deus. O solstício de inverno era o momento do ano em que o mundo dos vivos e o mundo dos mortos se comunicavam entre si. Na tradição cristã, passou a ser usada nesse período de encontro entre os dois mundos a fogueira de Natal, cujo objetivo era o de lembrar que Jesus nascera num estábulo glacial (cenário tipicamente canceriano, embora Câncer marque o início do verão) e que não tinha para aquecê-lo senão, além da fogueira, o bafo de um boi e de um asno. Acreditava-se também que do nascimento de Cristo teriam participado os anjos, que se aqueciam perto da fogueira. Dessa concepção natalina saiu a ideia muito espalhada em algumas nações cristãs de que os pais poderiam deixar as suas crianças sozinhas na noite de Natal, para irem à missa da meia-noite, pois os anjos cuidariam delas.

A fogueira de Natal que ardesse sem problemas tinha as bênçãos do céu. Quando dela escapavam muitas faíscas, os presságios de boas colheitas eram favoráveis. Além do mais, o carvão proveniente das achas que haviam queimado nessa fogueira poderia ser usado para curar várias doenças durante o ano, principalmente as de estômago; as cinzas protegiam também contra acidentes e tempestades e, depositadas nos telhados, afastavam feiticeiras.  

Na tradição cristã europeia, o período entre 25 de dezembro e 5 de janeiro (véspera da festa dos Reis) era até o início da era moderna (séc. XVIII) particularmente rico de superstições. A reputação mágica deste ciclo de doze dias, atestada desde o séc. IV dC, provém da importância do Natal e da Epifania, dia da manifestação de Cristo aos três Reis Magos e de seu batismo, que, na tradição da Igreja do Oriente, corresponde à celebração da Natividade. Do Natal à Epifania, do nascimento secreto à manifestação pública e universal simbolizada pelo testemunho dos Reis Magos, temos um tempo de maturação, de crescimento, de transformação. Epifania, epiphaneia, em grego (epi, sobre, por cima; phaneros, visível), é a primeira manifestação de Cristo como filho de Deus e também a festa religiosa em que se comemora este acontecimento. 


REIS   MAGOS

Além do caráter religioso destas datas e do período entre elas, considerados dias santificados, desde o séc. VI (Concílio de Tours), celebrava-se também a passagem do velho ao novo ano, marcada esta passagem por numerosos ritos de expulsão de influências negativas e exorcismos. Este período, como aqui se expõe, correspondia ao das Saturnalia em Roma, um período crítico e perigoso. Era o momento em que o céu e a terra se abriam para dar passagem a seres maléficos do Outro Mundo. As almas dos mortos voltavam à Terra, as feiticeiras, os demônios, os seres infernais e os lobisomens erravam a solta pelo mundo. 


SATURNALIA   ( HOWARD  DAVID  JOHNSON )

As proibições e interdições relacionadas com o Natal vêm deste período: evitar tarefas domésticas, não tecer, não costurar, não atrelar os cavalos às charruas. Uma falta cometida num destes doze dias produziria um efeito negativo a ser “colhido” num dos meses do ano. Assim, uma falta cometida no dia 25 seria “colhida” em janeiro; cometida no dia 26, seria “colhida” em fevereiro e assim sucessivamente. Esta mesmas ideias, aliás, são também encontradas na Índia védica; segundo elas, os doze dias que se sucedem ao solstício de inverno seriam a imagem do ano vindouro. Quem nos conta todas estas histórias é Pierre Saintyves, pseudônimo de Émile Nourry (1870-1935), grande antropólogo, escritor, editor e folclorista francês num de seus livros sobre Astrologia popular. 
  


PIERRE   SAINTYVES   ( ÉMILE  NOURRY )

Saturno e o Sol na Astrologia ocidental, como sabemos, sempre apareceram associados à figura paterna. Com relação ao primeiro, porém, esta associação toma sempre um caráter difícil, problemático, tirânico até, mesmo nos aspectos harmônicos que ele estabeleça com outros planetas ou com determinados ângulos de uma carta astral. Dignificado ou não numa tema astrológico, por posição ou aspectos, Saturno levará sempre, favoravelmente ou não, para uma carta astral,  sua maneira de atuar no mito. 

Não há necessidade de conhecimentos especializados da psicologia para se perceber que uma família disfuncional é uma instituição

autorreprodutora. Um Saturno “forte” num mapa tanto pode indicar um pai dominador, controlador, como uma criança que talvez venha a se tornar um pai tirânico. Este tema está, por exemplo, magistralmente desenvolvido no filme Pai Patrão, obra-prima do cinema italiano. A libertação dos padrões saturninos fixados num mapa, para transformação de Saturno em mestre interior, é sempre extremamente difícil e dolorosa. 

Do mito grego, como já se mencionou, nos vem também a passagem da prisão de Cronos no Tártaro. Saturno, num mapa, pode significar a nossa prisão, a nossa imobilidade, num lugar escuro e desolado onde ficaremos acorrentados (parece-se muito com Plutão, neste particular). Queda, banimento, humilhação e isolamento, provocados por forças externas, são conceitos relacionados com Saturno, constatáveis em muitos temas dos que atingiram, sob o ponto de vista material, as alturas, os picos, e caíram.

Na Alquimia, Saturno é estudado no capitulo da coagulatio, operação ligada ao elemento terra e, como tal, lembra forma e posição fixas, dificuldade de adaptação, concentração, condensação, quando não imobilidade. Neste sentido, Saturno tem a ver com os processos de criação de formas de um modo geral (a arte do capricorniano Cézanne é um bom exemplo). Dentre os agentes da coagulação, a Alquimia faz especial referência ao chumbo, sempre associado ao planeta Saturno e ligado, quando pensamos na prática analítica, a temas como depressão, melancolia, frieza, limitação. 



MONT   SAINTE - VICTOIRE  ( CÉZANNE ) 

O chumbo é um metal ao qual já os caldeus atribuíam uma
PARACELSO  -  OPERA   OMNIA
influência funesta, símbolo da inércia. Paracelso, o grande alquimista suíço, falecido em 1541, proclamava que o chumbo era a água de todos os metais e que se os alquimistas conhecessem o que Saturno continha eles abandonariam tudo para se fixar só nele. Não é por acaso que os antigos, desde tempos muito remotos, praticavam a adivinhação através do chumbo fundido, a chamada molibdomancia, que consistia em deixar cair algumas gotas de chumbo aquecido na água e, pelos ruídos que se produzissem ou figuras que se formassem, fazer previsões. O molibdênio é um elemento químico altamente resistente à corrosão e, por isso, usado em aviões, foguetes, mísseis etc. Em grego antigo, molibdaina era qualquer massa de chumbo. 

Segundo registros disponíveis, as primeiras notícias sobre o chumbo datam de 3000 aC, pois, por essa época, alguns povos da bacia mediterrânea já obtinham prata retirando-a dele. A natureza saturnina do chumbo é facilmente constatável quando conhecemos o seu uso como isolante acústico. É muito conhecida a eficácia do chumbo como protetor em recintos hospitalares onde se usa o Raio X e a radioterapia e em salas onde é gerada a energia nuclear. Explica-se: a extrema densidade do chumbo o torna impermeável à irradiação.

Neste sentido, o chumbo, simbolicamente, é o estágio final a que a matéria pode chegar, a matéria que não pode mais passar por
A   GRANDE   OBRA
transformações. Assim, ele tem relação com algo conclusivo, com o fim de um ciclo vital, e, consequentemente, com a velhice e com a morte. Daí o simbolismo alquímico usar a caminhada do inferior (chumbo) ao superior (ouro), a chamada Grande Obra, a Opus, para representar as experiências de transformação pelas quais o ser humano pode passar evolutivamente.


O nosso processo de individuação, a definição de um ego, a nossa autossuficiência e o nosso autocontrole têm a ver com Saturno e o chumbo. No corpo humano, o elemento chumbo, na proporção certa, está ligado a uma ossatura resistente, a cabelos, dentes e unhas fortes. Se Saturno e o chumbo aparecem em excesso os índices da “coagulatio” aumentam; temos endurecimentos, enrijecimentos, formação de cálculos, em órgãos, artérias etc. Saturno (frio e seco) trabalha por contração, endurecimentos, como câimbras, artroses. Se o endurecimento é anímico, temos as chamadas contrações saturninas da alma, medo, temores, apreensões, depressões, esquizofrenia.





O chumbo, como se sabe, é muito venenoso. Não é por acaso que a intoxicação aguda ou crônica pelo chumbo se chama saturnismo ou plumbismo. Na Homeopatia, como remédio, o chumbo entra no Plumbum metallicum, muito usado no caso de distrofia muscular, esclerose múltipla, tabes, ataxia locomotora, depressão, delírio etc. 

A velhice caracteriza o chamado “período chumbo” na vida humana, período no qual o corpo e a alma “endurecem”. Em consequência, afora as naturais limitações de ordem física, as rabugices corporais e as patologias, temos os vários casos de perda de flexibilidade, da nossa capacidade de adaptação, do que popularmente chamamos de jogo de cintura; no lugar, então, o complexo saturnino, a recusa a abandonar ou a perder  aquilo a que nos apegamos ao longo de nossa vida. Permitimos que Saturno nos canibalize como devorava os seus filhos, entregando-nos a estados de frustração, de insensibilidade, de renúncia ou de avidez. Daí os casos de conservadorismo, dogmatismo, opiniões obstinadas, tradicionalismo, teimosia e frieza. O chumbo e Saturno pertencem no ser humano à esfera da realização do eu interior. Seu valor é altamente educativo, pois não se liga àquilo que vem de fora; liga-se, sim, ao que temos de descobrir e trabalhar, no geral penosamente, dentro de nós mesmos.  

Saturno, ao mesmo tempo que nos oferece os arquétipos do parricídio e do filicídio, ele afirma os direitos absolutos do indivíduo, fixado no seu próprio  egocentrismo. A sua dolorosa experiência interior nos põe também diante dos mais variados processos de autopunição, da retirada da libido como procura instintiva do prazer e, consequentemente, de todo dionisíaco orgiástico.

Não será preciso muito esforço para se perceber, quando Saturno atua de modo negativo numa carta astrológica (por signo, casa ou aspecto), como podemos ser canibalizados, devorados. É por isso que quem tem Saturno no ascendente sempre teve muita dificuldade para se sentir jovem. Nunca, na infância, foi certamente uma criança como as demais, jamais conseguindo participar das brincadeiras como elas. Um Saturno numa quarta casa sempre fará com que a criança necessite de uma relação mais calorosa com os pais, que receba deles mais apoio, mais suporte emocional, que eles, objetiva ou subjetivamente para a criança, não sejam tão conservadores e reservados.

Quando Saturno, por exemplo, se relaciona desarmonicamente com a Lua e Júpiter, ele pode produzir um grande desequilíbrio com relação à chamada fase oral de uma criança. Esta fase, como se sabe, é a primeira da evolução libidinal, caracterizada pelo fato da criança (lactente) encontrar seu prazer na alimentação, na atividade da boca e dos lábios. O prazer de sugar (boca), ligado de início a uma necessidade fisiológica, acaba se tornando o lugar de uma atividade autoerótica, que se constitui no primeiro modo de qualquer satisfação sexual. A fase oral é “cabalística”. Esta fase se decompõe na sucção propriamente dita e no seu aspecto sádico, que corresponde ao aparecimento dos dentes e das fantasias da mordida e da devoração. A fase oral está ligada à relação entre a criança e o seio materno, constituindo-se ela simultaneamente em satisfação e frustração. 

Geralmente, os distúrbios entre Saturno e os astros que têm domicílio e exaltação em Câncer assumem, dentre outros, dois aspectos: bulimia (em grego, fome sôfrega) e anorexia (em grego, an, privativo, mais oreksis, apetite, desejo de comer). A primeira, como se sabe, é causada por episódios incontroláveis, acessos de hiperfagia, que independente da anorexia nervosa costumam ocorrer ao menos duas vezes por semana durante alguns meses ou mais. Já a anorexia é muito mais mental ou nervosa, constituindo um quadro mórbido em que alguém diminui a quantidade de alimentos ingeridos, frequentemente eliminando os ricos em calorias, por meio de uma dieta rígida, autoimposta, alternada com crises de bulimia, vômitos ou uso de purgativos.  
  
 Na bulimia, temos invariavelmente a necessidade passiva de amor materno, entrando Saturno no aspecto para produzir uma exagerada necessidade de tomar alimento, de viver sem freios, gerando egocentrismo, preguiça, ciúme, fanatismo. Na anorexia, há sempre uma necessidade concreta da figura materna; normalmente, não há ingestão de comida, a não ser que a mãe se ofereça “espontaneamente” para dar o alimento vital. Neste segundo caso, temos o quadro mais grave, sendo Saturno a fonte do desespero, da insensibilidade, do ascetismo, da separação e da indiferença. 

SATURNO   SENEX
Se nos voltarmos para os casos (aspectos harmônicos) em que Saturno aparece como Senex positivo, temos então os exemplos da sua lenta e segura ajuda no aumento da nossa força interior, da nossa disciplina e responsabilidade. Podem surgir as grandes ambições, sempre de médio para longo prazo, eis que Saturno nunca é imediatista. É nestes casos que ele se torna símbolo das grandes ascensões intelectuais ou espirituais, representado pelo Lycorne.

Saturno indica a direção que tomará na vida de alguém o princípio de autopreservação que, em sua expressão superior, deixa de ser puramente defensivo para se tornar ambicioso e aspirativo. A nossa capacidade de defesa ou de ataque diante do mundo é, mostrada, em grande parte, pela posição de Saturno no nosso mapa. Se Saturno está no mesmo signo em que nele se encontram o Sol e a Lua, a defesa predomina e há sempre o perigo de uma excessiva introversão. Quanto mais distante Saturno estiver do Sol, da Lua ou do Ascendente, melhor para a nossa objetivação e extroversão. Se Saturno se encontra no mesmo signo de Mercúrio, há sempre uma tendência de que nossas reações, diante do que nossos sentidos captam do mundo, sejam profundas, sérias, refletidas. Se Saturno acompanha Vênus, demonstraremos invariavelmente dificuldades, maiores ou menores, no plano de nossos relacionamentos; frieza nas relações afetivas, conservadorismo na nossa vida econômica; está relação costuma aparecer na vida dos que são “felizes nas cartas e infelizes no amor”. Se Saturno está relacionado com Marte, apresentamos geralmente confusão em nossa vida entre atitudes defensivas e agressivas, o que pode trazer alguma sempre indecisão.  Saturno, lembremos, não diz respeito ao que não podemos ter, mas tem relação com aquilo que merecemos ter. Ele governa os atrasos que retardam o que devemos receber ou as privações do que julgávamos que nos era devido. Saturno é tudo o que de negativo que alimentamos nesta vida: é o sentimento de falta, de carência, por mais que façamos; é a detestável tarefa que temos que cumprir. 

Onde quer que esteja Saturno num mapa, é nesse lugar em que aparecerão, cedo ou tarde, as provas, os deveres e as obrigações mais pesados; é nesse lugar (casa astrológica) em que teremos de provar algo a nós mesmos. É nesse lugar em que, com relação aos assuntos da casa, poderemos demonstrar medo, coragem e respeito próprio. Em todas as situações, a verdade de Saturno é a que nos levará a enfrentar os problemas, com determinação e constância. Saturno é tanto o que nos força a fazer uma coisa como aquilo que pode nos dar força para fazê-lo. É neste sentido que os hindus o consideram tanto como o Senhor do Karma como o do Dharma.

Ao agir no mundo deste ou daquele modo ou deixando de agir, omitindo-nos, estamos assumindo o resultado de nossas ações. Karma é a lei da causação; Sempre que há uma causa, um efeito é produzido. Sempre há uma conexão entre o que estamos fazendo hoje e o que nos acontecerá no futuro, mesmo que invoquemos a Thykhe grega ou a Fortuna, deusas dos gregos e dos romanos. 

Ao enfrentamento das consequências de nossas ações, os hindus dão o nome de Dharma, palavra que traduz uma ideia de segurar, manter, suportar. Dharma é aquilo que sustenta o universo, os seres humanos, a sociedade, a criação como um todo. De outro modo: temos que assumir o resultado de nossas ações, a responsabilidade é nossa. Nada mais saturnino, sob este ponto de vista. Só deste modo a vida poderá ser digna, dizem-nos os mestres hindus. Sem
SVADHARMA   YOGA
Dharma não há vida individual, social, coletiva, não há Estado, Nação. Particularizado, o Dharma tem o nome de Svadharma. Cada um de nós tem o seu, a ser vivido segundo o que trouxemos para esta vida e nela encontramos no nosso momento histórico. Dentro do nosso mundo de relações e de obrigações, de acordo com o nosso nível intelectual e social, temos que encontrar os preceitos dinâmicos a aplicar em cada situação. Por isso, cada um de nós tem  o seu Dharma particular, o seu Svadharma.

O símbolo de Saturno é formado por uma cruz e por um crescente. A primeira diz respeito à vida material, indicando-nos que o que
SÍMBOLO   DE   SATURNO
entrou na vida tem que morrer. Tudo que entra na existência terá que desaparecer, cedo ou tarde. Cada experiência que temos, cada coisa que conhecemos, tudo é finito, uma pedra, um vegetal, um animal, uma ideia, uma filosofia, uma civilização, um deus... A cruz se liga ao número quatro, número da simetria, símbolo da totalidade material, depreendendo-se  dele uma ideia de organização, de construção; não é por outra razão que o quaternário é a primeira das figuras sólidas. 

 O crescente, fase lunar,  entra na figura saturnina para nos falar de ritmos biológicos, do tempo que passa, de variação periódica, lembrando-nos ao mesmo tempo a semente que foi plantada. Sob a superfície da terra, um novo ciclo recomeça. A indicação é clara: por trás de todo final há sempre um recomeço. O crescente lunar diz respeito aos primeiros catorze dias do mês lunar, associado sempre ao desenvolvimento dos seres que entram na vida. Daí o antiquíssimo hábito de se ver um favorecimento para as ações humanas na fase crescente lunar e o contrário na fase decrescente.