sexta-feira, 8 de abril de 2016

URANO (2)

        
                      
A antiga religião mesopotâmica é a mais antiga dentre as que nos oferecem documentos escritos. A sua base é formada por crenças dos povos que entre 4000 e 3000 aC, ou mesmo antes, chegaram à região, crenças, observe-se, que já àquele tempo proporcionavam orientação espiritual e ética para os negócios humanos. Agricultores do norte emigraram e se estabeleceram na região, que se estenderia da futura Babilônia ao golfo pérsico. Por volta de 3500 a, nômades semitas da Síria e da península arábica invadiram o território mesopotâmico meridional e se mesclaram com as populações que ali viviam. Pela mesma época, os sumérios, provenientes da Ásia central, através do Irã, também ali se estabeleceram.

GILGAMÉS
A cidade de Erech, no território sumério, tornou-se o centro do poder político. Em 2500 aC, Gilgamés, herói  de lendas sumerianas, era o rei que governava a cidade. A esse tempo, as concepções cosmogônicas defendiam a ideia de que o universo era constituído por um todo único, formado pelo céu e pela terra, ao qual se dava o nome de Na-Ki, isto é, céu e terra. Ao redor desse todo, agitava-se o mar, infinito e sem repouso, sustentando miraculosamente toda a criação. As águas desse mar imenso sempre foram consideradas como a origem de tudo, tanto do arco celeste  como do disco terreno. Entre o céu e a terra distribuíam-se os astros, o Sol e a Lua.  

Para as crenças sumérias, o universo era governado por entes
MANIFESTAÇÕES   CELESTES
divinos, antropomorfizados, semelhantes aos humanos, mas não percebidos por eles. Invisíveis, onipotentes e imortais, estes seres eram chamado de dingir. Eles atuavam através das manifestações luminosas do céu, inclusive as pluviosas. Tudo o que viesse do céu para eles, como para os gregos, era uma hierofania, palavra grega que literalmente significa  manifestação do sagrado.


NINHURSAG
Por volta de 2500 aC, a lista dos deuses sumérios alcança algumas centenas. Apesar desse número e da grande complexidade quanto às funções, o panteão agia harmoniosamente, organizado de modo hierárquico. As principais divindades desse panteão, que controlavam os reinos mais importantes do universo era An (Anu), deus do céu; Enlil, deus do ar; Enki, deus das águas; e Ninhursag, a grande Mãe-Terra.






Essas quatro divindades supremas planejavam e organizavam tudo, distribuindo o poder entre diversas outras divindades menores. É de se ressaltar que a  criação e a organização do universo não foi trabalhosa. Segundo o entendimento dos sumérios, bastava apenas à divindade, para criar alguma coisa, falar, enunciar o seu plano de ação, e logo as coisas se concretizavam. Este entendimento foi adotado por todas as manifestações religiosas dos povos do Oriente Próximo. A palavra divina tinha o poder de criar do nada todas as coisas. A noção de palavra fecundante, do verbo que carrega consigo os germes da criação, é considerado aqui como a primeira manifestação divina, antes de as coisas terem tomado forma.   


Esta ideia da palavra fecundante é encontrada no judaísmo, na doutrina da creatio ex nihilo e aceita como interpretação tradicional da história do Gênesis, pela qual o céu e a terra foram trazidos à existência através da palavra divina. Esta ideia se choca com duas outras, encontradas na tradição judaica. Uma delas, a interpretação midráshica, diz que o mundo foi feito de restos de mundos anteriores, que Deus havia destruído por não estar contente com eles. 

Midrash quer dizer busca, procura; é um método de interpretação
TORÁ
bíblica pelo qual o texto é explicado de modo diferente do seu significado literal. Midrash é também o nome de várias coleções de comentários bíblicos extraídos da tradição oral. O símbolo da midrash é um martelo que esfacela em muitos pedaços a Torá, vista como uma rocha. A terceira opinião sobre a criação vem da Cabala, que propõe a ideia da emanação, através da qual os níveis superiores da criação deram origem aos níveis inferiores, descendo do divino ao inferior, material, por gradação. 

Nas concepções sumérias, os deuses banqueteavam-se, eram glutões e barulhentos, casavam-se e tinham filhos. Conforme o caso, podiam mostrar-se amáveis, risonhos, bem-humorados ou melancólicos, cruéis, raivosos, invejosos, violentos e mesquinhos. Sem a mínima explicação, podiam adotar um ou outro comportamento. Eram, em geral, a favor da honestidade e contra as mentiras e as maldades. Quando necessário, viajavam, tendo à sua disposição vários meios de locomoção, nuvens, barcos, carruagens etc.

Nos tempos mais recuados, no começo do quarto milênio aC, quando Erech dominava o poder político e religioso, a principal divindade era Anu, divindade uraniana. Sua elevada posição diante da Grande-Mãe Nammu, a mãe que deu à luz a terra e ao céu, se explica evidentemente pela reconhecida supremacia do mundo masculino já notável àquela época. 


Quando Anu assumiu a supremacia no panteão sumério, passando a controlar as manifestações celestes, as divindades masculinas e femininas já estavam separadas em dois campos distintos, com áreas de atuação bem definidas, formando uma sociedade muito parecida com a dos humanos. Ao nome das divindades femininas se agregava a palavra nin, que tinha o significado de “dona”, “senhora”. Tinham o privilégio da imortalidade, embora submetidos todos às mesmas necessidades e paixões que os humanos. Outra distinção também se estabeleceu com relação às divindades. Os que só atuavam nos céus eram os igigi. Os que só atuavam na terra e no mundo ctônico foram chamados de annunnaki. 


MARDUK   VENCE   TIAMAT

Com o passar do tempo, as principais divindades do panteão mesopotâmico foram organizadas em tríades, cujo  poder  foi estabelecido quando da vitória de Marduk sobre Tiamat. Marduk era filho de Ea, divindade das águas, que atuava no Apsu, um abismo circular líquido que envolvia a Terra. Esta entidade, Ea, apresenta muita semelhança com o deus Oceano dos gregos. Tiamat personificava o mar, representando o elemento feminino, indomável, símbolo das forças cegas do caos primitivo. 

Num acordo estabelecido entre os deuses, conforme O Poema da Criação, Marduk recebeu plenos poderes para lutar contra Tiamat, em nome de todos.  Vitorioso, ele organizou o universo e definiu as atribuições de cada divindade. Criou o homem de seu sangue, tornou-se “mestre da vida e da cura” e tomou o lugar de seu pai como grande divindade da magia e dos encantamentos. Ao restabelecer a paz entre os deuses, Marduk atribuiu aos Igigi três domínios: a Anu coube o céu, a Bel a Terra e a Ea o elemento líquido.  

ANSHAR
Anu era filho de Anshar e de Kishar, o princípio masculino e o princípio feminino, respectivamente, representantes do céu e da terra. A Anu coube os espaços celestes; ele vivia na região superior, região conhecida pelo nome de “céu de Anu”. Era o maior dos deuses ainda que fazendo parte da mencionada trindade. Todas as demais divindades o honravam como pai, como seu chefe. 



KISHER

É ao lado de Anu que todas divindades vinham se refugiar quando em perigo, quando algo as ameaçava, como no caso do dilúvio. Foi, por exemplo, o que aconteceu com a deusa Ishthar quando repelida pelo herói Gilgamés. Ela se queixou a Anu, dizendo que o herói a havia amaldiçoado e ela lhe pediu que criasse um touro celeste para que ela o lançasse contra ele. 


ANSHAR

ADAPA
Anu convocava ao tribunal que presidia todos os casos que julgava merecedores de sua atenção. Quando, por exemplo, Adapa quebrou as asas do Vento Sul, Anu o citou perante o tribunal que presidia. Por essa e outras atitudes pode se perceber que Anu reunia em sua personalidade real os atributos máximos da soberania, inclusive o de ministrar a justiça entre os deuses.



   ERIDU  ( RUÍNAS )
Adapa foi um herói criado por Ea na cidade santa de Eridu para reinar sobre a humanidade. Recebeu para isso grandes orelhas, muita sabedoria e extrema prudência, menos a imortalidade, reservada aos deuses. Adapa gostava de pescar, usando para tanto uma embarcação que possuía. Um dia, uma grande ventania, o Vento Sul, fez com que sua embarcação virasse, descendo Adapa ao fundo do mar, à casa dos peixes.   Furioso, Adapa quebrou as asas do Vento Sul. Durante sete dias, calmaria absoluta, nenhum vento soprou. Anu, que tudo via das suas alturas, convocou Adapa e afinal tudo se resolveu.

Anu usava como símbolos uma espécie de tiara com dois chifres, que representava a sua onipotência. Diante do trono onde normalmente se sentava se alinhavam as várias insígnias de sua realeza: o cetro, o diadema, a coroa e o bastão do comando. Anu dispunha também de um exército formado pelos astros do céu, chamados de “soldados de Anu”, a seu serviço para destruir os maus.

O cetro, associado ao prolongamento do braço e da mão, sempre se ligou simbolicamente às divindades criadoras, doadoras da vida. Na emblemática popular, sua representação tomou uma figuração fálica. É sempre um signo de dignidade real e pertence ao grupo dos símbolos masculinos. Os cetros, por isso, guardam uma dupla possibilidade significativa: ao mesmo tempo em que princípio de fecundidade podem significar sinal de impiedosa cólera que abate os inimigos com o poder destrutivo do raio.

O simbolismo da coroa se associa ao do círculo, da cabeça,

representando sempre a perfeição. A princípio, feitos com a folhagem e ramos de árvores trançados, foram depois confeccionadas com metal. Além representar uma recompensa, a coroa é sempre manifestação de um sucesso decorrente da dignidade e da soberania de quem a usa. 

Anu jamais deixou as regiões celestes. Quando ele se dignava sair de sua imobilidade majestosa, era para passear numa região celeste exclusivamente sua, que tomava o nome de “o caminho de Anu”. Apesar de sua onipotência e de sua incontestável soberania, Anu tinha as suas fraquezas. Isto aconteceu, por exemplo, quando os deuses tiveram que enfrentar Tiamat. Anu teve que recorrer a Marduk para que este, em seu nome e no de outros deuses, enfrentasse o grande monstro feminino, símbolo da indiferenciação primordial, que ameaçava sempre a ordem cósmica implantada pelos deuses.

Anu residia naturalmente no mais elevado das alturas celestes. Seu palácio, no topo da abóbada, jamais poderia ser atingido por qualquer dilúvio. Ele possuía um templo em Uruk, chamado Eanna, que quer dizer “Casa do Céu”. Sendo o soberano por excelência; só os soberanos na terra podiam invocá-lo.



   EANNA , URUK

Mais tarde, muitos de seus poderes, conforme as reviravoltas políticas na terra, serão transferidos para o deus-ar Enlil, deidade guardiã de Nippur, que se transformara no centro político mais importante do país, na Mesopotâmia meridional. Durante um milênio, mais ou menos, Enlil chefiará o panteão sumeriano, o babilônico e o assírio.  



NIPPUR

Ao assumir a condição da maior divindade do país, Enlil, o Senhor
NAMMU
do Ar, provocou a separação do Pai do Céu (Anu) e de Nammu, a Mãe Terra. Esta separação, lembre-se, é muito semelhante àquela que ocorrerá na mitologia grega, quando da castração de Urano por Cronos. Ao destronar o pai, que com Geia formava um todo primordial, Cronos permitiu que o ar e o éter se interpusessem entre os dois, assumindo a Lua a função de marco divisor: acima dela, o éter, região luminosa divina; abaixo dela, o ar, região dos seres humanos e de tudo o que ficava submetido às leis do vir-a-ser.   

No código de Hamurabi (fundador do império babilônico; reinou
   CÓDIGO   DE   HAMURABI
43 anos, a partir de 1730 aC), Anu era chamado de “Rei dos Annunaki”, tendo como epítetos mais comuns “Pai dos Céus” e “Deus dos Céus”. Os astros compunham o seu exército, sendo ele, como acontece com todas divindades uranianas, um deus guerreiro, um chefe de exércitos. Sua principal festa coincidia com a chegada do ano novo, sempre uma criação do mundo a cada ciclo. 

Aos poucos, porém, tais festas do começo do ano começaram a ficar sob a tutela de Marduk, divindade mais jovem, que iniciou sua escalada religiosa, superadas as das tríades anteriores. Mais dinâmico, mais ativo no que diz respeito à sua relação com a humanidade, Marduk havia reorganizado o cosmos. Este renascimento trouxe para o primeiro plano do panteão mesopotâmico, a partir da Babilônia, Enlil-Bel, divindade do ar, do céu tempestuoso, chuvoso e fecundante. Substituía-se, assim, uma divindade inacessível e distante por outra, mais dinâmica, criadora também, porém muito mais próxima.

Enlil assuniu então a condição de “Pai dos Deuses”, fez nascer tudo
NANNA
o que era necessário, inventou instrumentos agrícolas, ajudou os humanos. Todos os deuses o procuraram para conquistar as suas graças, inclusive o poderoso Enki, deus dos mares. A própria Lua, o deus Nanna, titular religioso da importante cidade de Ur, desejoso de garantir tranquilidade para ela, reverenciou Enlil. Os poemas são esclarecedores. Quando Pai Enlil se instala solenemente sob/ o dossel sagrado, o sublime dossel,/ quando exerce o sumo comando e realeza,/ os deuses terrenos se curvam diante dele,/ os deuses celestiais o reverenciam com humildade...

Enlil passa por ter sido o instaurador do Me, um conjunto de leis
ME
universais, preceitos morais, aplicáveis, como um todo, à vida social. Tais leis, a amplitude dos conceitos neles contidos, revelam bem a grande originalidade dos mesopotâmicos, os primeiros a nos deixar pensamentos de ordem especulativa tão ricos. O Me fala de segurança num mundo em guerras constantes. A sua proposta era a de que as coisas continuariam a funcionar sempre adequadamente no universo se obedecidas as leis cósmicas instituídas pelos deuses. Cada aspecto do mundo, da civilização e da cultura tinha o seu Me. Por não ter obedecido as próprias regras que estabelecera (não saber controlar a violência do seu instinto sexual), Enlil perdeu o poder.

Agregados à sabedoria dos Me instituídos por Enlil, os pensadores mesopotâmicos redigiram para a vida prática do homem comum muitos conceitos sob a forma de ditados, alguns com muito humor. Dentre os que chegaram até nós, destacamos: 1)Numa cidade em que não há cães de guarda, a raposa é o vigia. 2) Quem tem muita prata pode ser feliz; quem possui muita cevada pode ser alegre; mas quem nada tem pode dormir. 3) Sê gentil para com teu inimigo como para um velho forno. 4) Quem constrói como um senhor, vive como um escravo; quem constrói como um escravo, vive como um senhor. 5) Para o prazer do homem há o casamento; para pensar melhor, há o divórcio.

Embora jamais tenha qualquer outra divindade contestado o seu universal poder ou a humanidade tenha deixado de venerá-lo, Anu, com tempo, acabou suplantado por outras divindades, que foram assumindo muitas de suas atribuições. O prestígio dessa grande divindade criadora só desapareceu quando as divindades usurpadoras, para se estabelecer solidamente no poder, incorporaram ao seu nome o de Anu.




ZIGURATE   TEMPLO   DA   LUA  ( UR )

A perda do prestígio das divindades celestes, criadoras, ou de qualquer divindade, é motivada normalmente por fenômenos celestes e/ou por revoluções e reviravoltas políticas (a elite que sustentava a divindade é substituída por outra). Essas mudanças ocasionam uma maior ou menor pobreza cultual que tem como característica principal a progressiva diminuição e desaparecimento do número de dias santificados desta ou daquela divindade nos calendários sagrados. Aos poucos, essas divindades vão se tornando cada vez mais inacessíveis, mais distantes, sendo incapazes de atender os inúmeros problemas do cotidiano do homem comum. Ninguém mais recorre a elas, nenhum sacrifício...