sábado, 4 de março de 2017

GÊMEOS (1)





Os gêmeos, em todas as culturas, simbolizam a dualidade ou as contradições internas do ser humano. Todos os heróis gêmeos na mitologia indo-europeia são, no geral, protetores, curadores e salvadores. Representam oposições que, ao final, podem também se complementar em sínteses, vida-morte, aurora-poente, vertical-horizontal, montanha-vale etc. Os mais famosos gêmeos são os nascidos de uma divindade, um pai imortal, e de uma mãe mortal, virgem, uniões que constituem assim os que os antigos gregos chamavam de hierogamia. Os gêmeos, nos mitos, costumam também ter poderes especiais que lhes dão uma numinosa personalidade sempre inspiradora de temor.


CATEDRAL  DE  AMIENS
Podem os gêmeos atuar no sentido do bem ou do mal, conforme o caso. Em muitas culturas, o nascimento de gêmeos é um mau sinal, sendo, por isso, um deles sacrificado. Em muitas regiões da África negra ou do Nilo, por exemplo, a mãe que tem filhos gêmeos pode ser repudiada por seu marido. Por outro lado, entre os índios norte-americanos, os gêmeos eram encaminhados para a feitiçaria.

De um modo geral, independentemente do modo pelo qual apareçam, perfeitamente simétricos ou assimétricos (um obscuro, outro luminoso; um espiritualizado, outro materialista; um voltado para o céu, outro para a terra), os gêmeos representam não só aspectos da dualidade das forças que atuam no cosmos, forças que raramente se unificam, mas, sobretudo, a ambivalência dessas forças, o seu jogo, sempre em constante movimento, ora se equilibrando, ora se dispersando, uma contradição que não se resolve nunca.  Daí os gêmeos aparecerem associados às encruzilhadas.

HÉRCULES  E  ÍFICLES
Os mitos que nos falam de gêmeos, especialmente os gregos, costumam acentuar bastante o que os distingue, a começar pelo pai. Como no caso de Hércules e Íficles, nascidos da mesma mãe, Alcmena, ao mesmo tempo, mas o primeiro
GILGAMÉS E ENKIDU
sendo filho de Zeus e outro filho de Anfitrion, pai mortal, marido de Alcmena. Os mitos também podem tornar gêmeos os que nasceram separados, de mães e pais diferentes. É o caso de Gilgamés e de Enkidu que se tornaram gêmeos quando, em combate singular, descobriram, um no outro, o que faltava a cada um. 

Os gêmeos simbolizam também um grande desejo de unidade. Por isso, o número dois, que os descreve, é o mais ambivalente dos números, representando o princípio binário. Pode sugerir tanto a síntese como a divisão, a atração como a repulsão, o equilíbrio como o conflito. No simbolismo chinês, por exemplo, o dois é um número aziago (yin), fraco, desprovido de um centro. Divindades duplas representam amiúde princípios opostos ou aspectos contrários de uma só realidade. Como número associado à divisão da unidade primordial (Geia-Urano, Terra-Céu, por exemplo), o dois está ligado ao princípio feminino, à união, ao amor, à fertilidade, ao crescimento, à dinâmica da criação e  à sua destruição (já a passagem do dois ao três significa a multiplicidade).

Entre os mesopotâmicos, foram os assírios que nos deixaram, em

tempos muito remotos, uma bem elaborada ilustração celeste e portanto astrológica do mundo geminiano. A atividade intelectual entre os assírios e babilônicos estava colocada sob a égide do deus Nabu, filho de Marduk, o campeão dos deuses, vencedor de Tiamat, o Caos. O prestígio do pai sempre bafejou Nabu favoravelmente. Marduk era uma divindade de características agrárias, tendo por atributo a enxada. Era a maior das divindades, pois foi o único a enfrentar e vencer Tiamat. Nabu chegou mesmo a assumir algumas prerrogativas paternas. Uma de suas funções era a de gravar sobre as tabuinhas divinas os decretos divinos. Sua função, entretanto não era a de um simples escriba. Ele podia, a seu critério, aumentar ou diminuir o número de dias que cabia a cada um dos mortais viver. 


A irmã gêmea de Nabu, sua esposa também, chamava-se Tasmit. Era ela quem “iluminava os ouvidos” de modo a fazer com que as palavras pudessem ser mais facilmente ouvidas e compreendidas. Nabu havia inventado a escrita cuneiforme e a arte literária, principalmente o maior dos gêneros, o poético, sendo considerado como aquele que “iluminava os olhos”.


MAHABHARATA
Entre os hindus, a presença dos gêmeos é marcante. No Mahabharata, um antigo poema épico, fala-se da existência de dois celebrados irmãos gêmeos chamados Sunda e Upusunda. Segundo a história, viviam juntos e não podiam ser mortos por ninguém, a não que se matassem mutuamente. Regiam os mesmos domínios, viviam na mesma casa, dormiam no mesmo leito, sentavam-se juntos, comiam no mesmo prato. Por terem exatamente a mesma aparência e a mesma disposição e hábitos, pareciam um único ser dividido em duas partes. 

ASHVINS
Desde a antiga astrologia hindu (Jyotish), o signo de Gêmeos tem o nome de Mithuna. “Vivem” neste signo os Ashvins, divindades cujo nome vem de uma raiz sânscrita que significa “encher”, “ocupar o espaço.”, pois têm a ver com a multiplicação. A razão desta denominação se prende ao fato de que os Ashvins se estendem por todas as partes, estão em todos os lados, um dos gêmeos representando a luz e outro  a umidade. Alquimicamente, lembremos, o elemento ar, relacionado com o pensamento, a vida intelectual, é formado por duas  qualidades primitivas, o quente e o úmido. Como a astrologia nos explica, o signo de Gêmeos é do elemento ar, formado pelo quente e pelo úmido, com uma participação maior do primeiro, uma pequena contribuição do seco. Isto nos permite entender a natureza expansiva do signo, sobre a qual o seco pode exercer algum tipo de controle. 

Alguns comentaristas, entretanto, nos dizem que os Ashvins têm este nome porque vêm montados em cavalos. Outros, ainda, nos falam de uma dualidade sempre presente neles, o dia e a noite, o
BODHADRUMA
céu e a terra, o alto e o baixo e assim por diante. Não é por acaso, aliás, que, no budismo, essa árvore iluminação chama-se, em sânscrito, ashvatta ou pippala, árvore sob a qual os cavalos se aquietam. Outro nome sânscrito da árvore é bodhadruma, que significa a árvore da perfeita sabedoria. Os ocidentais dão a ela o nome de ficus religiosa, a mesma que aparece no mito de Prometeu e, segundo muitos, na Bíblia.   

Os cavalos em quase todas as tradições são símbolos do psiquismo inconsciente, da impetuosidade dos desejos, de um lado irracional no homem, animais associados ao mundo subconsciente, infernal, ctônico, que lembra as trevas, a escuridão. As palavras pesadelo, em francês e inglês, cauchemar e nightmare, respectivamente, guardam esta relação, significando a primeira "opressão do cavalo" e a segunda "besta noturna". 

SIDARTA   GAUTAMA
Na flora indiana, a mais antiga referência que temos sobre a pippala nos diz que a sua madeira é excelente para a produção do fogo, símbolo da consciência iluminada. No budisno, a árvore tem grande destaque. Sentado em baixo dela, foi numa noite de Lua cheia, no mês de maio, em Bodhi Gaya,
HUEN  TSANG
ao norte da Índia, que o príncipe Sidarta Gautama, se iluminou, ou seja, aprendeu a controlar o seu turbilhão mental e emocional. Histórias sobre essa árvore, chamada popularmente de bo tree no inglês dos indianos, chegaram até nós por causa de um historiador e viajante chinês daqueles tempos, chamado Huen Tsang.   

USHAS
Dentre todas as divindades védicas, os gêmeos hindus, os Ashvins, ocupam uma posição muito diferenciada. São eles que trazem a primeira claridade para o céu ainda escuro, a alva, que antecede a aurora. Preparam o caminho para que Ushas, a deusa da aurora, traga, por sua vez, a claridade para que o Sol possa surgir. Representam, pois, a transição entre a noite e a manhã, isto é, fazem com que a noite que passe a ser dia. Com eles, numa outra leitura, a mente humana se ilumina, saindo, como diz a alquimia, da nigredo, das trevas, da indeterminação, do negro, da vida subconsciente, para iniciar (ou não) a sua caminhada em direção da consciência plenamente iluminada, rubedo, representada pelo vermelho. Antes de chegar a esta última etapa, temos mais duas, a albedo, representada pelo branco, e a citrinitas, representada pelo amarelo. Estas quatro etapas, como se pode ver, simbolizam o caminho do Sol desde que sai da noite e chega ao meio-dia, consciência plena, como se disse, Sol vertical, ausentes as sombras. 


ASHVINS
Eram os Ashvins também médicos, informando-nos a sua história que podiam devolver a visão ao cego, a saúde ao coxo e ao caquético. Eram os protetores especiais do lento e do torpe e leais amigos das solteiras em idade avançada. Tinham a ver com o amor e o matrimônio enquanto providenciavam a união ou o reencontro dos se amavam. Por numerosos registros ficamos conhecendo que estas divindades eram capazes de curar os enfermos, de restituir a juventude e o vigor ao ancião e ao decrépito. Podiam salvar um homem de morrer afogado, levando-o são e salvo para a sua casa. 

Num dos mais famosos episódios de sua crônica, conta-se que a perna de Vispala, que havia sido cortada numa batalha, foi substituída por eles por uma de ferro. Devolviam a vista e a capacidade de andar ligeiro a cegos e a estropiados fisicamente. Como resultado destas e de outras narrações, os Ashvins eram invocados por quem queria obter descendência, riqueza, vitória, destruição dos inimigos, proteção de sua casa e de seu rebanho.

Uma outra história nos revela que os Ashvins foram inicialmente considerados impuros (é por isso que nenhum brâmane podia ser médico, pois a profissão o desacreditava para a função sacerdotal). Como, porém, ninguém podia passar sem médicos, foram eles purificados, sendo-lhes então permitida a convivência com os outros deuses. Lembremos que eles são filhos de Surya, o Sol, a primeira das divindades médicas. O mito dos Ashvins, como se pode ver, pertence tanto à esfera do divino ou cósmico como do humano ou histórico. Estas duas vertentes acabaram se fundindo. O vínculo que os une está certamente num grande mistério da natureza: a associação entre os efeitos da luz e da arte curativa em tempos muitos remotos. 

Símbolo do conhecimento ou da revelação, a luz vem sempre depois das trevas, sucedendo-a, uma verdade cósmica, mítica,
DIVINOS  CAVALEIROS
astrológica e psicológica (post tenebras lux), que podemos encontrar quando pensamos na nossa iluminação interior. A luz como vida, saúde e felicidade é tema encontrado em todas as tradições esotéricas ou não. É por essa razão que dois dos cinco Pandavas (personagens do poema épico Mahabharata, que representam o Bem), os irmãos Nakula e Sahadeva, são símbolos dos irmãos divinos cavaleiros (arquétipos). 


Na hierarquia celeste do mundo védico, os Ashvins representam a terceira função, a terceira casta, a dos agricultores-comerciantes, a dos Vaishyas. São eles que trazem a saúde, a juventude e a fecundidade. Conhecendo o segredo das plantas, são, como disse, os médicos celestes. Foram eles que, com o auxílio do sábio-mágico Angirasa, que descobriram o Soma, a bebida da imortalidade. Sempre cercados por uma atmosfera maravilhosa, eles salvaram o Prazer (Bhujyu), que se afogava, e o Apetite (Atri), que um demônio havia jogado num caldeirão fervente.


CHYAVANA
Diz o mito que Indra insistia em não lhes reconhecer a divindade nem o direito ao consumo do Soma, pois eram divindades menos importantes (3ª classe) e impuros ritualmente, como está acima. Mas o sábio Chyavana (Atividade), que havia recebido deles novamente a juventude, conseguiu fazer com que Indra os aceitasse entre os deuses. Conta o Rig Veda, que Chyavana estava decrépito, velho, bastante alquebrado, e que os Ashvins cuidaram dele, revitalizando-o, rejuvenescendo-o, tornando-o, de novo, "aceitável" para a sua mulher. 

Chamados de Os Inseparáveis (Nasatyas), os Ashvins têm uma tez dourada, são jovens, ágeis e rápidos, podendo tomar as formas que desejarem. Têm uma só mulher em comum, chamada Surya, que tem o mesmo nome do pai deles. Raramente são chamados individualmente pelos seus nomes. Um se chama Nasatya (O Sem-mentira) e o outro Dasra (O Milagroso). Os adjetivos que são acrescentados ao seu nome indicam sempre juventude, beleza, esplendor, velocidade, vivacidade e sua arte de curar. Filhos de Surya, atravessam o espaço num carro dourado, no qual trazem Ushas, a Aurora, ou vêm algumas vezes a cavalo, trazendo-a na garupa. Como vanguarda da luz, são os gêmeos parentes de Pushan (O Progresso).

O nome de Pushan lembra providência, aquele que, no caso, alimenta, nutre, com a sua luz, trazendo também a cura. Pushan é o protetor e o multiplicador das posses humanas e dos rebanhos, atuando também como guia dos que vão para o Outro Lado. 

Uma das mais interessantes genealogias dos Ashvins nós a encontramos no Mahabharata. Lá se conta que Samjña (O
SURYA
Conhecimento intuitivo), filha de Tvashiri (A Indústria), desposou Dharma (A Lei da Perfeição), que é Vivasvat (A Lei Ancestral), cujo símbolo visível é Surya, o Sol. Incapaz de suportar o brilho de seu esposo, Samjña deixou ao lado de Surya sua sombra e, tomando a forma de uma jumenta (Ashvini), entregou-se a uma vida ascética. Dharma, por sua vez, tomando a forma de um cavalo, foi à sua procura. Quando a encontrou e a ela se uniu, dois filhos gêmeos nasceram. Pela razão de sua mãe ter a forma de uma jumenta, os gêmeos receberam o nome de Ashvini-Kumaras (Os Filhos de Jumenta). A jumenta, ou asna, é, como se sabe, em muitas tradições, símbolo da paz, da humildade, da pobreza, da paciência e da coragem. 


ASHVAMEDHA
Um dos mais famosos rituais védicos ligava os Ashvins ao sacrifício dos cavalos (Ashvamedha). Este sacrifício tinha relação óbvia com o cavalo como símbolo da impetuosidade dos desejos, da juventude sobretudo no que ela tinha de ardor, de fecundidade e de disponibilidade. Era um sacrifício ligado socialmente à segunda casta, a dos Kshatryas, a dos guerreiros. Nestes rituais, a imagem do cavalo era associada também a ideias de água corrente e de fogo, isto é, de força, de poder, de emoções que levam à ação. 

Conforme antigos textos védicos nos revelam, um hindu poderia procurar deus através de qualquer uma das formas pelas quais ele
ISHVARA
se manifesta. Para os hindus, o divino se apresenta continuamente sob uma infinita multiplicidade de aspectos diferentes e renováveis. Assim, cada hindu pode ter a sua visão pessoal do divino, a que chamam de Ishvara, um conceito de deus estritamente pessoal, de acordo com a sua possibilidade de apreendê-lo, segundo seu nível de consciência, a sua informação, a sua cultura etc. Esta visão, ao longo de sua vida, pode mudar, se o seu nível de consciência muda. Não é preciso dizer que tal concepção, para as religiões monoteístas, judaísmo, cristianismo e islamismo, é absurda, escandalosa.

NAKULA   E   SAHADEVA
Muitos desses deuses pessoais podem descer à Terra e se misturar com os humanos, aparecendo sob inúmeras formas e com os seus mais variados atributos. Assim, por exemplo, Indra, Agni e outros tomaram uma forma real (rei Nala) para se unir a uma princesa. Qualquer que seja a forma que tomem os deuses, muitos a tomam a forma humana para, dentre outras coisas, gerar filhos com mortais. Madri, uma das irmãs do rei de Madras, casada com Pandu, gerou dois filhos, gêmeos, Nakula e Sahadeva, quando" visitada" pelos Ashvins.


BATALHA   ENTRE  PANDAVAS   E   KURUS

Nakula é o quarto dos príncipes Pandavas. Seu pai mortal era Pandu, o divino, os Ashvins. Este príncipe foi especialmente treinado para se tornar um grande mestre da arte hípica. Sahadeva especializou-se na leitura dos astros, que estudou com Drona, brâmane, mestre dos Pandavas e também dos Kurus, personagens centrais do Mahabharata. 

Na astrologia, desde os tempos védicos, o signo de Gêmeos tem o nome de Mithuna, nome que em sânscrito que dizer a formação de um par. Esse nome também é dado tanto a pequenas estátuas que se encontram na entrada de qualquer templo como à manteiga (ghee) clarificada, muito usada na cozinha hindu e em muitos rituais védicos como ingrediente fundamental. 


PREPARANDO   O   GHEE

Clarificar é tornar mais claro, limpar de impurezas, purificar, resolver ambiguidades, ganhar concisão, tornar homogêneo, eliminar a escuridão, afastar o nebuloso. Assim, a visita a templos tinha (tem?)  por objetivo a clarificação (iluminação) da mente. Na cozinha, clarificar é operação através da qual algo turvo, escuro, um caldo, por exemplo, se estabiliza num aspecto mais claro. A manteiga clarificada é considerada na medicina tradicional hindu um rasayana (etimologicamente, veículo da essência), um alimento que tanto favorece a longevidade como o rejuvenescimento. Rasa é suco, nectar, essência, gosto. Na mitologia, é o fluxo divino personificado como uma deusa. 

A operação da clarificação (da mente) é obtida tanto através de uma visita a templos como encontrada na culinária indiana, na medicina
GANDHI
ayurvédica e em antigos métodos educativos (limpar a mente), tudo explicado pelo signo de Mithuna.  Lembre-se que este método aqui referido, equivalente à clarificação da manteira (ghee) foi desenvolvido, num passado já para nós muito distante, através de uma pedagogia chamada Segaon, nome de uma pequena cidade do Maharashtra, depois chamada Sevagram, onde viveu Gandhi.