segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O VIAJANTE

     
             

O filme é de 1991, dirigido por Volker Schlöndorff, também autor do roteiro juntamente com Rudy Wurlitzer; com base numa novela de Max Frisch, sendo a produção greco-franco-alemã. Nos principais papéis: Sam Shepard, Julie Delpy e Barbara Sukowa. A música é de Stanley Myers; os figurinos de Barbara Baum; a montagem de Dagmar Hirtz; direção de arte de Nicos Perakis; a fotografia de Yorgos Arvanitis e Pierre L'Homme. 

BARBARA   SUKOVA


SAM    SHEPARD
O Viajante tem como destaque, no cast de atores, a interpretação de Sam Shepard e a sempre fascinante presença de Barbara Sukowa. Ele faz o papel de um engenheiro, um homem absolutamente racional que nunca se entrega à imprevisibilidade das paixões. Etimologicamente, Faber é aquele que faz, em latim. Está sempre em trânsito, sempre trabalhando. Avião, trem, navio automóvel, tudo é a mesma coisa, um lugar para se viver por pouco tempo. Ele não gosta de nada que não seja científico. Evita relações, detesta intimidades, recusando-se a conhecer o valor das emoções, dos sentimentos e da imaginação. Um workaholic que, embora tenha ido a Paris e Atenas muitas vezes, nunca teve tempo para visitar os museus dessas cidades. É um homem dos números, das quantidades, das planilhas, muito objetivo, procurando sempre controlar o que lhe vem de fora.

O autor da história é Max Frisch (1911-1991), importante escritor
MAX    FRISCH
suíço. Novelista, teatrólogo, ensaísta, Frisch começou como arquiteto, abandonando a carreira devido ao sucesso de uma peça de sua autoria, When the War Was Over, em 1949. Nascido em Zurich, cursou inicialmente história e literatura, indo depois para a arquitetura, que abandonou pelo teatro, pelas letras, tendo inclusive mantido contactos com Bertolt Brecht.  


Sua novela Homo Faber, em língua alemã, apareceu em 1957. Faber, o personagem, é, como se disse, um homem absolutamente racional até que estranhos acontecimentos perturbam a sua segurança. O texto de Frisch é apresentado num estilo lacônico, direto, seco, nenhuma concessão, pouca adjetivação. Uma frase de Faber: A vida nada mais é que uma forma de passar o tempo. Muito premiado, Frisch viveu entre a Suíça, Itália e USA.

Volker Schlöndorff, nascido em 1939, em Berlin, é o diretor do
VOLKER   SCHLÖNDORFF
filme. É, incontestavelmente, o mais “literário” dos diretores de cinema e um dos mais importantes da cinematografia mundial. Grande mestre da transposição de obras literárias para o cinema (Günther Grass, Arthur Miller, Robert Musil, Tolstoi, Marcel Proust etc.), leciona também cinema e literatura em univeridades europeias, sendo famosos os seus seminários de verão na Suíça. Recebeu vários prêmios, inclusive a Palma de Ouro em Cannes, em 1979, com O Tambor de Lata, baseado num livro de Günther Grass. De 1971 a 1991, Schlöndorff viveu com Margarethe Von Trotta, diretora e atriz do cinema alemão. 


RUDY    WURLITZER   
Um ponto alto do filme de Schlöndorff é a equipe técnica. Seu roteirista, Rudy Wurlitzer, nascido em 1937, nos USA, descende do fundador da famosa Juke Box Company, um imigrante alemão, que se dedicou também à fabricação de pianos e órgãos eletrônicos. Wurlitzer passou por universidades,  viajou  bastante  e por um bom tempo foi secretário 
de Robert Graves, mitólogo muito conhecido, com quem, segundo declarou, aprendeu a escrever frases curtas. Ao voltar aos USA, frequentou os meios artísticos. Começou a escrever novelas, passou para o cinema, mantendo contactos com Sam Peckinpah, Hal Ashby e Jim Jamusch, para os quais escreveu roteiros. Para o primeiro, roteirizou Pat Garrett & Billy the Kid. 

Na sua ficha, encontramos roteiros como o de Two-Lane Blacktop (A Estrada Que Não Tem Fim), dirigido por Monte Hellman. O filme, um road movie, se tornou cult, um clássico da contracultura, dele participando dois músicos muito importantes na época (anos 70), James Taylor e Denis Wilson. O primeiro, com sua música, lembro, conseguiu fazer de modo muito satisfatório uma fusão das musicas country-gospel e rock. Wurlitzer escreveu, dentre outras coisas, o libreto para a ópera (libreto baseado em novela homônima de Franz Kafka) In the Penal Colony , de Philip Glass, e o script para uma série de TV, dirigida pelo grande Sidney Lumet.

Wurlitzer foi uma escolha pessoal de Scholöndorf. Os dois, de comum acordo, fizeram muitas modificações no texto de Max Frische, por ele aprovadas, ao passá-lo para o cinema. Atenuaram o lado político da história, acentuando bem mais os traços que fizeram do filme a crônica de uma destruição.

Três outros importantes colaboradores de Schlöndorff foram Nikos
NIKOS    PERAKIS
Perakis, direção de arte, e Yorgos Arvanitis e Pierre l´Homme na fotografia. O primeiro é grego, nascido no Egito, e tem a seu crédito muitos filmes realizados na Alemanha. Arvanitis sempre participou bastante da vida cinematográfica grega, tendo trabalhado com Theo Angelopoulos, Michel Cacoyanis, Jules Dassin, Marco

YORGOS    ARVANITIS 
Bellochio, Marco Ferreri e Amos Gitai. Participou de quase todos os filmes de Angelopoulos, inclusive do conhecido A Eternidade e um Dia (Palma de Ouro, Cannes, 1988). Quanto a Pierre l´Homme, embora muito pouco mencionado pela crítica oficial, é um dos grandes quando falamos de fotógrafos do cinema. Como figura exemplar de sua arte é sempre citado por diretores muito importantes, com os quais trabalhou: Jean-Pierre Melville, Robert Bresson, Chris Marker, Jean-Paul Rappeneau, Bruno Nuyttens e outros. 


O título da novela, Homo Faber, que está no nome do
BARBARA   SUKOVA
personagem 
transformando-se no homo faber, aquele que trabalha a natureza e que nela intervém para sobreviver e procriar. A História do homem, sob este ponto de vista, não é senão a da sua capacidade de fazer e de construir ao longo do tempo e das gerações. Desde o início, das hordas, dos clãs, das tribos dos primeiros agrupamentos tem sido assim. Sem esse “ter” não haveria o “ser”, não podendo este “ser”, contudo, se subordinar àquele, como a mesma História vem repetidamente demonstrando. A razão humana tem que dominar a produção de riquezas e fixar as relações entre os seres humanos. O ser humano não pode ser apenas um produtor de bens ou um “caçador” de riquezas. Temas como este jamais fizeram parte das cogitações de nosso herói; ele era um homem que fazia, que resolvia. Por isso, Walter Faber, como tudo indicava, jamais procurou “ouvir” o seu eu interior, ignorava-o. Um dia, porém...


JEREMY    BENTHAN

Filosoficamente, Walter Faber poderia ser classificado como um utilitarista, um adepto da doutrina ou da atitude moral que considera que o útil ou o que pode proporcionar a maior segurança e tranquilidade (felicidade?) deve ser o princípio supremo da ação. Lembro que um grande teórico dessa corrente filosófica foi o inglês Jeremy Benthan (1748-1832), que falava num conhecimento baseado só nos fatos. Junto dessa corrente caminha o pragmatismo, doutrina que considera como verdadeiro só o que dá certo, que é eficaz. Kant (1724-1824), filósofo alemão, caminhava no sentido contrário, pois para ele o valor moral de uma ação não se mede pelas suas consequências (sucesso), mas pela intenção que a anima e pelo princípio que a sustenta.

O trabalho humano pode certamente tornar o mundo mais útil e belo. O homo faber, inventor de ferramentas e utensílios, é um produtor, um construtor. A durabilidade do que ele produz opõe-se de certo modo à fugacidade da própria vida e dos bens de consumo. Não basta, porém, ao homo faber apenas produzir racionalmente para tornar a vida mais fácil ou mais longa. O homo faber, assentado no seu racional, o lado masculino de qualquer personalidade, esqueceu-se do seu “outro lado”, do lado feminino, ignorando que na vida tudo é duplo, que tudo tem dois lados, que tudo oscila entre dois polos. 

Na personalidade masculina, como se sabe, o feminino personifica um aspecto do inconsciente denominado anima, as tendências psicológicas femininas no psiquismo do homem, os sentimentos vagos, o que não conseguimos explicar com palavras, as impressões difusas, o irracional, as intuições inexplicáveis, tudo aquilo que a ciência, não conseguindo explicar, rotula como
TESEU
esoterismo, ocultismo etc. Na mulher, esse lado toma o nome de animus, o componente masculino de sua personalidade. A alma humana, no homem e na mulher, terá que ser uma combinação destes dois princípios, que vão naturalmente além do plano biológico. Se o macho é princípio fecundante, a fêmea é geradora de vida. O personagem do filme, saturado de energia masculina, não conseguiu estabelecer uma ligação entre estes dois aspectos, como o herói grego Teseu, fixado que estava apenas num deles, no racional, no masculino. 


Além do herói acima citado, há também outro na mitologia grega, um arquétipo que, entendo, nos permite conhecer Walter Faber como um dos melhores exemplos de sua atualização simbólica. Refiro-me a Édipo, famoso  personagem da tragédia grega (Sófocles) e figura principal da psicanálise  moderna. O pai de Édipo, Laio, foi advertido por um oráculo que lhe revelou que, se tivesse um filho, ele o mataria. Nascendo a criança, Laio manda expô-la, para que morresse, o que o livraria da sentença oracular. Todavia, pastores encontram a criança e a levam, acabando ela, segundo uma versão, sendo entregue aos reis de uma outra cidade,Corinto, lá sendo educada como filho, um príncipe. 

Jovem e formoso, com uma vida já rica de sucessos materiais, saindo de Corinto em busca de cavalos que haviam sido furtados da casa real, Édipo entra em disputa, num trívio, com um desconhecido que vinha com dois acompanhantes. Era Laio, em viagem, seu desconhecido pai. Lutam e Édipo o mata, cumprindo-se assim a sentença oracular. Ao se dirigir depois a Tebas, julgando com isso afastar-se da sua cidade de origem, mas na realidade indo na direção dela, encontra no caminho um monstro que causava muita destruição às cidades da região. Enfrentando-o, Édipo o mata e recebe, como prêmio, em casamento, a viúva de Laio, Jocasta, sua própria mãe. Mais tarde, toda a verdade vem à tona. Édipo descobre que havia assassinado seu pai e desposado sua mãe. Jocasta se suicida. Diante da tragédia, Édipo se mutila, perfurando os olhos, sendo levado, cheio de sofrimento e dor, pela filha Antígone para Atenas, onde morre.


ÉDIPO

O mito de Édipo, como se sabe, ocupa um lugar de máxima importância na psicanálise freudiana, por ela considerado, sobretudo, como uma espécie de descrição das relações entre as crianças e seus pais: a fixação amorosa no sentido da figura familiar oposta e agressividade hostil contra a figura familiar do mesmo sexo. Em ambos os casos, é necessário, conforme a tese freudiana exposta, destruir esta figura para que a criança se liberte da tutela familiar, o que lhe permitirá ter acesso a uma vida mais consciente e amadurecida.

Édipo é entretanto muito mais do que isso, se examinarmos a sua vida como um todo, inclusive a sua história familiar (veja neste blog artigo sobre Édipo). Ele era o homem das vitórias exteriores, todo voltado para conquistas racionais. Era um perito em decifrar enigmas, mas desconhecia totalmente a sua vida interior, conforme a sua crônica revela. As suas conquistas externas acabaram se tornando a causa da sua derrota interior. Alguns estudiosos explicam a fixação de Édipo no seu lado racional por causa de um defeito físico. Ele tinha um problema nos pés, mancava. Não podia ser um atleta, um campeão olímpico, não podia correr. Édipo sabia responder e fazer, o que lhe permitia esconder assim a sua incapacidade física (expressão simbólica de sua lesão de alma). Os pés, lembremos, enquanto começo do corpo físico, se opõem à cabeça, que é o final. Ambos têm que funcionar juntos.

Walter Faber é um tecnocrata, um engenheiro, nenhum interesse demonstrando por questionamentos interiores, por sentimentos, pela arte, sempre a expressão de um modo de sentir, que ele procurava evitar. Seria esse personagem uma maneira pela qual
FREUD
Frisch não só homenageou a tragédia grega como procurou de algum modo “resolver” seus problemas pessoais (abandono da arquitetura pelo teatro, pela literatura)? Ao estruturar a psicanálise moderna, certamente em cima do que os gregos haviam nos deixado, Freud golpeou duramente a vida moderna, toda voltada para o seu controle através da razão. Válida para Walter Faber a observação de Freud: O importante não é o que você sabe, mas o que você não sabe.


O pensamento e as ações de Faber eram inspirados pelo chamado um pensamento científico, voltado exclusivamente para um conhecimento objetivo e universal. Era dotado de um espírito positivo, nele não havia lugar para as impressões subjetivas ou para a tradição. Ele só se identificava com um espírito crítico aplicado a objetivos reais, entendendo que a ciência podia satisfazer todas as necessidades da inteligência humana. Acreditava que o progresso da ciência poria fim a tudo o que ainda não era conhecido na natureza ou no homem. Impensável, por isso, para Faber, uma vida moral baseada no sentimento.  




Um dos pontos altos do filme é a interpretação de Sam Shepard. Nascido em 1943, nos USA, atua como ator e diretor, sendo também autor de muitos pequenos contos, ensaios e memórias. Alcoólatra, viveu, desde 1983,  com a atriz Jessica Lange, separando-se dela em 2010.  Começou no teatro off-Broadway em NY e trabalhou com Bob Dylan. Num mesmo nível de Shepard está Barbara Sukowa, uma das mais fascinantes atrizes do cinema europeu. Nascida em 1950, em Bremen, é muito conhecida pelas suas performances no Cinema Novo alemão. Trabalhou com Rainer Werner Fassbinder em Berlin Alexanderplatz, marco do cinema mundial. Muito premiada (Cannes, 1986, num filme de Margarethe von Trotta, Rosa de Luxemburgo), Sukowa desenvolveu uma excepcional carreira internacional como narradora de textos musicais (Schonberg, Prokofiev, Mendelssohn, Honegger, Kurt Weill etc.). Em 2012, Sukova voltou a ser dirigida por Margareth Von Trotta, no filme Hanna Arendt.  


JULIE   DELPY

Julie Delpy é francesa, nascida em 1970, mas faz carreira no cinema internacional. Trabalhou com Krzysztof Kieslowski, num dos filmes de sua trilogia, o Branco. Mas o que a projetou, justificadamente, no cenário do cinema internacional foi a sua participação na trilogia de Richard Linklater, Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia-Noite.