terça-feira, 22 de abril de 2014

OS LUSÍADAS - MITOLOGIA & ASTROLOGIA


Os Lusíadas, como gênero literário, classifica-se como um poema
épico. Esta palavra veio para nós do latim, epicus, que, por sua vez, prende-se a epikos, do grego, que tem na sua base epos, inicialmente palavra, depois verso e recitação. Já o verbo poiein em grego recebeu o sentido particular de fazer uma obra literária; como na antiguidade grega toda literatura era poesia, a palavra guardou o sentido de fazer poesia. O poietes, literalmente, é aquele que faz a poesia, sendo poiema o objeto feito.


         O épico sempre foi considerado o gênero para o qual caminha
todo o grande poeta, qualquer que seja a sua corrente literária. A temática épica tem características universais, fala de grandes feitos, de grandes realizações, de coletividades, tendo no geral um caráter laudatório. Seus personagens vêm da história, da mitologia, das lendas, são deuses, semideuses, heróis, monstros. A épica se opõe à lírica, de bem menor envergadura, sempre mais pessoal, mais subjetiva, tendo características confessionais,    sendo ditada pela emoção.


Para facilitar a compreensão da epopeia, podemos apontar três elementos que costumam estar presentes na sua estrutura: a ação, o(s) protagonista(s) e o maravilhoso. A ação é o próprio fato
VASCO DA GAMA
heroico no seu desenvolvimento como, por exemplo, o descobrimento do caminho marítimo para a Índia em Os Lusíadas. Embora o poema celebre na realidade toda a história nacional portuguesa, sua tônica dominante, em torno da qual tudo gira, é a viagem ao oriente. O protagonista, do grego protagonistes (etimologicamente, de protos, primeiro, e agon, luta, concurso), é o que “luta na frente”, o principal ator na tragédia grega. É o herói central numa epopeia, Vasco da Gama, no caso de Os Lusíadas. Maravilhoso é a intervenção de agentes sobrenaturais a favorecer ou dificultar o desenvolvimento da ação.


Merece especial referência este último elemento, o maravilhoso. Etimologicamente, a palavra vem do latim, mirabilia, do verbo miror, espantar-se, surpreeender-se. Ela implica um espanto no qual se misturam temor, admiração e surpresa, um sentimento de difícil explicação. O maravilhoso se opõe a conceitos de realidade e de normalidade. Deuses, fatos, seres e objetos intervêm na ação transgredindo as leis naturais. Pomos em dúvida a nossa capacidade de observação, questionamo-nos, deslumbramo-nos, colocando sempre em dúvida a nossa capacidade de objetivar ou conhecer, diante deles, as leis do mundo real.


O maravilhoso, ao longo da história da arte e da literatura em especial, foi usado de diversas maneiras por várias escolas e correntes. Fala-se do maravilhoso oriental. A taumaturgia dos gregos é um exemplo. Na Idade Média cultivou-se um maravilhoso cristão. No Renascimento, retomou-se o maravilhoso pagão. A arte barroca, já no século XVII, explorou o maravilhoso talvez como nunca se fizera antes. No século XX, os surrealistas tentaram usá-lo, mas, ao que parece, ficaram apenas no anedótico.


LUÍS DE CAMÕES


Luís de Camões, filho de Simão Vaz de Camões e de Anna de Sá e Macedo, nasceu em Lisboa, em 1524. O local, a data de nascimento e muitos outros dados de sua biografia foram objeto de muitas controvérsias. Quanto ao local, está hoje unanimemente aceito: o poeta nasceu em Lisboa. Quanto à data, a questão foi discutida ao longo dos séculos sem sucesso. 



                                            
  Dentre os vários pesquisadores que estudaram a vida e a obra do poeta, há um, Mário Saa, que me parece ter resolvido definitivamente a questão. Mário Paes da Cunha e Sá (1893-1971), que adotou o arcaizante Saa para seu sobrenome, segundo estudos astrológicos (As Memórias astrológicas e o nascimento do poeta), realizados em cima dos textos de Camões, conseguiu não só confirmar o dia (23 de janeiro de 1524) como precisar a hora do seu nascimento, às 20 horas e 40 minutos.




Mário Saa observa que o próprio Camões havia deixado um registro sobre o seu nascimento numa de suas Canções:

O dia em que nasci morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar
Não torne mais ao mundo, e se tornar, 
Eclipse, nesse passo, o sol padeça. 
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça;
Mostre ao mundo sinais de se acabar, 
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, 
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida, 
Cuidem que o mundo já se destruiu!
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!


MÁRIO SAA

Mário Saa afirma que nos versos da primeira quadra acima está implícito na redundância “morra e pereça” o duplo infortúnio, reconhecido pelo próprio poeta, que o atingiria, representado, de um lado, pela conjunção Júpiter-Saturno, presente no seu mapa astrológico, e, de outro, pelo eclipse solar que deveria ocorrer exatamente um ano depois, em 1525, no mesmo dia.


MAPA ASTROLÓGICO DE CAMÕES

Camões sempre declarou que nasceu sob a influência funesta de Saturno (Fado Escuro, Fortuna Inquieta, para ele). Com efeito, Saturno, pela conjunção com Júpiter (Justa Lei do Céu,  para ele), afetava bastante dois setores da sua vida, a  sentimental e os vínculos que pudesse estabelecer em decorrência dela, além da sua desastrada existência de aventuras, que o levou para longe da pátria.

Segundo o próprio poeta afirmou, dentre os grandes sofrimentos que lhe haviam sido impostos por essa conjunção e pelo planeta Marte no seu mapa, destacava-se o trágico desaparecimento da sua amada Dinamene. Camões, nos seus versos, fala de “dois lobos”, Saturno e Marte, conhecidos como “Infortúnio Maior” e “Infortúnio Menor”, respectivamente, que lhe roubaram a Fortuna Maior (o planeta Júpiter) e lhe mataram o amor, a formosa chinesa Dinamene, sua “cordeira gentil”, “perpétua saudade de sua alma”, que morreu no naufrágio da embarcação em que ela e o poeta estavam no rio Mekong. Dinamene é nome retirado da mitologia grega (Homero); trata-se de uma nereida, filha de Nereu, o “Velho do Mar”, e de Dóris, oceânida. Dinamene significa em grego "a poderosa no mar". No nome dessa nereida ecoam ideias de tristeza, mágoa e frustração, associadas ao mar e à morte. 





Muito novo ainda, conforme assentado na sua biografia, Camões partiu para Coimbra, de onde seu pai era natural. Ali fez a sua
educação, primeiro no mosteiro de Santa Cruz, sob a supervisão de um tio padre, indo depois para a universidade cursar Humanidades. Fala-se muito na educação do poeta. Supõe-se que a sua formação literária e científica tenham sido “robustas”, como anotam alguns biógrafos, pois o poeta revelará nos seus escritos uma erudição rara naqueles tempos, principalmente com relação à primeira. Lá, ao que parece, escreveu as suas primeiras canções.


Ignoram-se os motivos pelos quais, por volta dos vinte anos, abandonou Coimbra sem ter terminado os estudos. Voltou a Lisboa em 1554. O talento que mostrou e a proteção de alguns nobres abriram-lhe as portas do Paço, no qual foi bem recebido. Por causa de amores “errados”, com D. Catharina de Athayde mais exatamente, foi desterrado para Santarém, segundo tudo indica. A donzela Catharina era filha de um camareiro do infante D.Duarte. Camões a imortalizaria poeticamente sob o nome de Natércia (anagrama de Caterina) pelo qual a chamava.



TÚMULO DE CATHARINA DE ATHAYDE


Os amores do jovem Camões não eram do agrado dos pais da moça. As intrigas contra ele levantadas na corte, justificadas em grande parte, acabaram também surtindo efeito e receando consequências funestas por causa de suas ousadias amorosas e vida desregrada, o poeta resolveu partir para a África, a fim de servir o Rei por dois anos. Em Ceuta, perdeu o olho direito, vazado por uma seta, em um combate. Voltou a Lisboa em fins de 1549. Em 1552, no dia de Corpus Christi, envolveu-se numa desordem, da qual saiu ferido. Preso e perdoado, assentou praça de soldado para servir na Índia. Partiu de Lisboa em 1553, embarcando na nau S.Bento, com destino a Goa. À sua despedida, compareceram várias pessoas; dentre elas, Isabel Tavares, a “menina de olhos verdes”, a Belisa ingrata, sua prima e seu primeiro amor, a esse tempo já casada. 

A quem, Belisa ingrata, te entregaste?
A quem deste, cruel, a fermosura,
que só a meu tormento se devia?
Porque üa fé deixaste, firme e pura?
Porque tão sem respeito me trocaste
por quem só nem olhar-te merecia?
E o bem que te queria,
que nunca perderei senão por morte,
não é de maior sorte
que quanto a cega gente estima e preza?
Se a tua crueza
foi nisto contra mim endurecida:
perca, quem te perdeu, também a vida.

Decorreu a viagem sem maiores problemas. Teve o poeta somente o ensejo de observar, durante a longa travessia, como disse, “os segredos da natureza”, que tão bem descreve no seu poema.
Poucos meses depois da sua chegada, foi obrigado Camões a partir, como soldado, numa campanha contra o rei de Chembe (África Austral), o chamado “Rei da Pimenta”, numa esquadra de cem velas, indo depois guerrear contra os árabes. Foi por essa época que escreveu talvez a mais bela poesia saída de sua pena, que principia pelas palavras “Junto de um seco, duro, estéril monte”.

Durante o período do seu desterro no oriente percorreu Camões as Molucas, Malaca, Java, Bornéu, Sumatra e talvez o Sião e a Cochinchina. Enquanto lá permaneceu, ia preparando Os Lusíadas, começado vinte anos antes. Quem nos dá essa notícia sobre o
poema é o cronista Diogo de Couto (1542-1616), historiador português do oriente: “Em Moçambique achamos aquele Príncipe dos Poetas do seu tempo, meu matalote e amigo Luiz de Camões, tão pobre que comia de amigos, e para se embarcar para o Reyno lhe ajuntamos os amigos toda a roupa que houve mister, e não faltou quem lhe desse de comer, e aquele inverno em que esteve em Moçambique acabou de aperfeiçoar as suas Lusíadas para as imprimir, e foi escrevendo muito em um livro que hia fazendo, que intitulava Parnasso de Luiz de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe furtaram, e nunca pude saber no Reyno delle, por muito que o inquiri, e foi furto notável...” O Parnasso, é certo, era uma coleção de poesias líricas camonianas, compostas ao gosto italiano.


BATALHA DE ALCÁCER-QUIBIR


Em 1572, publicou Camões Os Lusíadas, concedendo-lhe D.Sebastião, por essa publicação, uma tença anual de quinze mil
réis, rendimento que adicionado ao lucro da venda de algumas obras poéticas, permitiu-lhe, em companhia da mãe e de um escravo javanês, viver muito modestamente, desfazendo-se com isso a fábula de que terminara a vida pedindo esmolas. Com a saúde minada pela idade, pelos excessos e sobretudo pelos trabalhos e desgostos passados na África e na Ásia, Camões foi definhando. A derrota de Alcácer-Quibir parece tê-lo deprimido bastante. Assistiu do leito ao desenvolvimento das intrigas políticas que levaram à escolha de Felipe II para rei de Portugal. Faleceu precisamente no dia, 10 de junho de 1580, dia em que o exército espanhol transpunha a fronteira do Alentejo, para invadir o país. Tinha o poeta 56 anos de idade.

O corpo de Camões foi enterrado pobremente em uma sepultura ordinária, campa rasa, na igreja das freiras do convento de Santa Anna. Quinze anos depois, a sepultura foi transferida, nela se inscrevendo o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Luiz de Camões, Príncipe dos Poetas de seu tempo. Morreu no ano de 1579 (sic). Esta campa lhe mandou aqui pôr D.Gonçalo Coutinho, na qual se não enterrará pessoa alguma.”


TÚMULO DE CAMÕES 

Após esta transferência, ninguém mais se lembrou, por quase três séculos, do poeta. O terremoto de 1755, dispersou-lhe os ossos, que depois foram em vão procurados por Almeida   Garrett
e António Feliciano de Castilho, escritores do romantismo português. Somente em 1867 lhe inauguraram uma estátua pedestre em Lisboa. Mais tarde, em 1880, foram os ossos (?) de Camões, em uma urna, e os de Vasco da Gama em outra, conduzidos com a maior pompa desde Lisboa até a igreja de Belém, sendo ali colocadas a de Camões à direita e a de Vasco da Gama à esquerda do túmulo de D.Sebastião. O túmulo do poeta é, a rigor, um cenotáfio (kenotaphion, um túmulo vazio
ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO
(kenos, vazio e taphos, túmulo), modo que os gregos antigos haviam inventado para dar sepultura aos seus heróis cujos corpos não haviam sido encontrados. Lembro que para um grego antigo era importante a obtenção de uma sepultura; considerava-se não apenas ímpio como também muito perigoso deixar os mortos sem sepultura e honras fúnebres, pois as almas errantes se transformariam em fantasmas que ficariam a perseguir os vivos...


CAMÕES ASTRÓLOGO ?


As características do Renascimento são bem conhecidas: navegação intercontinental, desenvolvimento das técnicas, descobertas científicas, instalação de monarquias nacionais... Do ponto de vista intelectual, recuperação da antiguidade greco-romana, curiosidade mental, teses humanistas, choques religiosos, contestação do poder papal, concepção mágica da natureza, visão heliocêntrica, difusão dos textos escritos favorecida pela invenção de Gutemberg, surgimento do protestantismo, fundação da sociedade política baseada num contrato...

Como movimento intelectual, o Renascimento está impregnado de esoterismos diversos, seus pensadores  participavam     de
grupos esotéricos: Marisilio Ficino, Leonardo da Vinci, Pic de La Mirandola, Corneille, Paracelso, Cardan e muitos outros. O Hermetismo greco-alexandrino reapareceu. O   neopitagorismo,  neoplatonismo, a cabala, a alquimia, a astrologia ptolomaica e outros esoterismos passaram a fazer parte da cultura do homem do Renascimento.


A astrologia e a astronomia  caminhavam  juntas a  esse  tempo.   O
TYCHO-BRAHÉ
número de astrólogos era muito grande, homens de grande conhecimento, eruditos. Importantes nomes da astronomia ganhavam a vida como respeitados astrólogos, Tycho-Brahé, Kepler e Copérnico, por exemplo. Pensadores, religiosos, médicos e artistas, como Miguel Servet, Giordano Bruno, Dürer (Melancolia), Rabelais, Shakespeare, Ronsard, Lutero e outros se aproximaram da astrologia. Tudo isso evidentemente chegou à península ibérica e naturalmente a Portugal.

No Renascimento, embora algumas bulas papais condenassem a astrologia, proibindo que autoridades eclesiásticas, padres e
sacerdotes a cultivassem, na prática nada acontecia. A posição da Igreja era a de Santo Tomás de Aquino: admitir a legitimidade da astrologia desde que ela não fosse acompanhada de práticas mágicas, demonismo, evocações etc. Quanto à ciência, raros eram os cientistas que a condenavam por motivos estritamente científicos. Somente no séc. XVII ocorrerá a drástica separação entre a astronomia e a astrologia. Até essa época (e mesmo
CATARINA DE MÉDICIS
depois), reis, papas e grandes potentados se servirão do trabalho de muitos astrólogos. Na França, por exemplo, Catarina de Médicis terá dois astrólogos muito famosos a seu serviço, o médico Nostradamus e Augier Ferrier. O cardeal Richelieu convocou Morin de Villefranche, médico-astrólogo e matemático, para seu conselheiro pessoal.






D. HENRIQUE
Em Portugal, com a dinastia de Aviz, as grande expedições marítimas foram iniciadas, conforme política implantada por D. Henrique, o Navegador. Pelo tratado das Tordesilhas (1494), arbitrado pelo papa Alexandre VI (Bórgia), se fixou um limite para as possessões portuguesas e espanholas, estabelecendo-se o que seria a América portuguesa e a espanhola. O resto seria de quem descobrisse...





A oito de julho de 1497 saíram de Lisboa quatro navios comandados por Vasco da Gama, com ordens de descobrir o caminho marítimo para a Índia. Dos quatro navios que levavam cento e quarenta e oito homens, eram capitães Vasco da Gama, Paulo da Gama, Nicolau Coelho e Gonçalo Nunes. O navio deste último, que continha mantimentos, foi queimado depois de ser ultrapassado o cabo da Boa Esperança, por já não ser necessário.

Em março de 1498 avistou Vasco da Gama a ilha de Moçambique, passando poucos dias depois por Mombaça, chegando a Melinde,
D. MANOEL, O VENTUROSO
onde o receberam com amizade. Prosseguindo, Vasco da Gama avistou a cidade de Calicute (Malabar), a primeira terra indiana, a 19 de maio de 1498. Ao rei de Calicute apresentou Vasco da Gama a embaixada que para ele levava de el-rei D.Manoel, o Venturoso. “Mas os mouros tais e tantas insídias armaram que obrigaram Vasco da Gama a retirar-se em outubro”, dirigindo-se para Melinde, onde chegou a 7 de fevereiro de 1499, sendo ali queimada a nau de Paulo da Gama, por incapaz de navegar.

Depois de dobrarem o cabo da Boa Esperança, sobreveio um temporal que separou as duas naus restantes. A de Nicolau Coelho chegou a Cascais a 10 de julho de 1499. A de Vasco da Gama alcançou a ilha de S.Thiago e depois a ilha Terceira, onde faleceu Paulo da Gama. Vasco da Gama, em outra caravela, chegou a Lisboa a 30 de agosto do mesmo ano. Dos quatro navios que foram ao descobrimento da Índia, só um voltou ao reino; e dos cento e quarenta e oito homens, que levou a frota, voltaram apenas cinquenta e cinco.





Em 1972, publicou-se em Lisboa, sob a responsabilidade 
da Junta de Investigação do Ultramar, no quarto centenário da
primeira edição de Os Lusíadas, um substancioso e erudito trabalho, Astronomia de Os Lusíadas, de autoria de Luciano Pereira da Silva, professor de mecânica celeste da Universidade de Coimbra. Esse trabalho fora publicado originalmente em 1915, na Revista da referida Universidade. Um trabalho tido como fundamental para a exegese do poema. Para comprovar suas afirmações, transcreve o autor uma elegia do poeta, a terceira. Essa elegia, segundo Luciano Pereira da Silva, demonstrava claramente o apreço que o poeta tinha pela astronomia e falava da inveja que tinha da vida tranquila dos que viviam no campo, que poderiam a ela se dedicar:

Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!
Este bem facilmente alcançaria
As causas naturais de toda cousa:
Como se gera a chuva e neve fria,
Os trabalhos do Sol, que não repousa;
E porque nos dá a lua a luz alhêa, 
Se tolher-nos de Phebo os raios ousa:
E como tão depressa o Ceo rodea;
E como só os outros traz consigo;
E se he benigna ou dura Citarea
Bem mal pode entender isto que digo
Quem há-de andar seguindo o fero Marte,
Quem traz os olhos sempre em seu perigo.

       Este poema, considerado mais atentamente, porém, ao invés 
de nos falar do estudo da astronomia, nos dá, à maneira de Hesíodo
(Os Trabalhos e os Dias), uma forma da chamada “literatura sapiencial”. Ou seja, entender o céu, os astros, como eles nos afetam aqui em baixo, e viver bem com as mansas ovelhinhas. Nenhum astrônomo ou alguém nela versado se referiria a um astro como “benigno”, “duro” ou “fero”. Astronomia é ciência que trata do universo sideral e dos corpos celestes, com o fim de situá-los no espaço e no tempo e explicar sua origem e movimento. Astrologia é estudo, arte, prática que tem por objetivo o conhecimento (decifração) das influências dos astros no curso dos acontecimentos terrestres e na vida das pessoas, em suas características psicológicas e em seu destino.


O que temos em Os Lusíadas é muito mais astrologia que astronomia. Nos últimos versos da elegia acima, temos uma clara
referência ao planeta Marte dos astrólogos e não ao dos astrônomos. Quem “segue” o planeta, “traz os olhos sempre em perigo”. Ora, Camões durante toda sua vida não fez mais que “seguir” esse planeta, astrologicamente responsável por sua morte, juntamente com Saturno. Marte, como se sabe, na astrologia, é o planeta regente do signo de Áries, signo que no corpo humano tem a ver com a região da cabeça e, de modo especial, com a visão. Não foi por acaso que nosso poeta perdeu a sua vista direita, atingido por uma seta. Mesmo que admitamos um Camões muito “profundo” em astronomia, e que sua adjetivação seja fruto de “licenças poéticas”, o que temos nesta elegia, isto sim, é uma linguagem de astrólogo traduzida literariamente por um genial poeta. O mesmo se diga com relação às afirmações que o poeta faz sobre o planeta Vênus (Citerea). 


O trabalho do doutor Luciano declara que as ideias astronômicas de Camões vinham da Sphaera de Sacrobosco, nome latinizado do
matemático e astrônomo inglês Jean de Hollywood (1190-1250), que traduziu muitos textos astronômicos dos árabes, compilando-os, publicando-os sob o título de Sphaera Mundi. O português Pedro Nunes, por sua vez, em 1537, traduziu a obra de Sacrobosco, modificando-a e adaptando-a. O livro de Pedro Nunes era o manual náutico usado por um grupo restrito de mestres navegadores portugueses, grupo este do qual Camões, ao que parece, nunca fez parte, embora pudesse conhecê-lo. 

Para homens letrados como Camões, para a prática artística e literária, havia os chamados Reportórios dos Tempos, onde se encontravam algumas informações astronômicas e sobretudo as “apreciadas indicações da astrologia judiciária sobre as várias influências dos signos e dos planetas.”

O primeiro Reportório publicado em Portugal parece ter sido o de
Valentim Fernandes, pelo ano de 1518. Esta obra foi largamente usada no ensino universitário da época, obra que Camões conhecia perfeitamente. É por essa razão também que o conhecimento do céu que Camões demonstra tem por base o sistema ptolomaico e não o de Copérnico. Ou seja, a Terra, formada pelos quatro elementos, ocupa o centro do sistema; em torno dela as esferas por onde circulavam a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno, as “estrelas errantes”. Acima dessa esfera ficavam o céu das estrelas fixas, a oitava, e depois a nona (que explicava a precessão dos equinócios) e a décima (a do primeiro móbil) esferas. A obra de Copérnico (sistema heliocêntrico) só foi publicada em 1543.

Ptolomeu  viveu no séc. II dC,  em  Alexandria.  Era  matemático, astrônomo e astrólogo. Vivendo  no  período  romano   da história
grega, transmitiu ao ocidente toda a tradição greco-alexandrina dessas áreas do conhecimento. Foram os gregos, como sabemos, que deram aos sete planetas da tradição os nomes das divindades do seu panteão, com determinadas características e atributos. Durante muito tempo, atribuiu-se a Platão, como está no Epinomis, a autoria dessa associação entre deuses gregos e planetas. Soube-se depois que o autor foi um colaborador do filósofo chamado Felipe de Oponte. A máxima fundamental da astrologia grega, preservada por Ptolomeu (Tetrabiblos), que a legou à tradição ocidental, era a de que há uma solidariedade entre todas as partes do universo, um vasto organismo vivo em que tudo se comunica com tudo.

Camões, no canto IV de Os Lusíadas, por exemplo, descreve um importante acontecimento da história de Portugal associando-o à entrada do Sol no signo de Virgem. Segundo o Reportório de Valentim Fernandes, o Sol ingressava nesse signo no dia 14 de agosto, dia em que, no ano de 1385, se deu a batalha de Aljubarrota.

Respondem as trombetas mensageiras,
Pífaros sibilantes & atambores,
Alférezes volteiam as bandeiras,
Que variadas são de muitas cores:
Era no seco tempo, que nas eiras
Ceres o fructo deixa aos lavradores,
Entra em Astréia o Sol, no mês de Agosto,
Baco das uvas tira o doce mosto.

Camões, ao chamar nossa atenção para essa “coincidência”, deu a entender que esse ingresso do Sol no signo de Astreia significou, sob o ponto de vista astrológico, o nascimento de um novo Portugal (em Virgem, como sabem os bons astrólogos, se dá ou não o nascimento de um “eu superior”). Com a vitória na batalha de Aljubarrota, D.João I tornou-se rei incontestado de Portugal, o primeiro da dinastia de Aviz, acontecimento histórico que abriu caminho para o início dos descobrimentos. 


BATALHA DE ALJUBARROTA

Portugal separou-se definitivamente da Espanha (reino de Castela e Leão). A batalha de Aljubarrota teve como ponto alto a resistência do povo de Lisboa ao assédio das tropas inimigas. Esta resistência só ganhou corpo efetivamente quando os lisboetas receberam alimentos enviados da cidade do Porto. Mantiveram-se firmes, aguentaram o cerco, e, com isso, venceram a batalha. Lembro que o signo de Virgem tem a ver astrologicamente com alimentação, cereais, grãos etc. Diga-se mais que a batalha de Aljubarrota teve lugar entre dois acontecimentos agrícolas importantes: o malhar do trigo nas eiras e as vindimas.

Exemplos como o que está acima pontilham todo o poema. As referências astrológicas, para quem as souber ver, são abundantes. No canto V, por exemplo, o poeta assim se refere à partida da armada portuguesa do Tejo, a 8 de julho de 1497:

Entrava neste tempo o eterno lume
No animal Nemeyo truculento.

Temos nestes versos uma referência à entrada do Sol no signo de Leão, aqui chamado de Nemeyo, entrada esta que se daria poucos
dias depois, a 14 de julho. Astrologicamente, Áries e Leão, como se sabe, são signos relacionados com aventuras colonialistas. O poeta nesta passagem se refere ao leão de Nemeia, o monstruoso animal que Hércules enfrentou e venceu no seu quinto trabalho. Nemeia é palavra que em grego lembra lei, limite. Nomos, em grego, é convenção, lei constitucional e também lei arbitrária. Nemein é distribuir conforme o costume, habitar o que lhe couber, manter nos limites do pasto. Quando o Sol ingressa no signo do Leão, negativamente como o poeta aponta, temos ideias, como é o caso aqui, de excessos, prepotência, abusos de força...




No décimo canto, pela boca da deusa Tétis, Camões faz uma descrição da máquina do mundo. O zodíaco é apresentado na estrofe 87: um largo cinto de ouro, dividido em doze signos, “aposentos de Phebo”. Na medida em que o Sol caminha por esse cinturão, como vimos, coisas acontecem na Terra. Na estrofe 72 do segundo canto, dia da chegada da armada a Melinde, 15 de abril de 1498, domingo de Páscoa, o Sol começava a percorrer os primeiros graus do signo de Touro. Flora, a divindade das flores, promovia a sua festa na natureza. Melinde é cidade da costa africana, Zanzibar, cujo rei foi sempre amigo dos portugueses.


O PLANO DO POEMA


ENEIAS FOGE DO INCÊNDIO DE TROIA.

Como a Eneida, de Vírgílio, e a generalidade dos poemas heroicos, Os Lusíadas começam pela proposição do assunto. Na Eneida, o Cisne de Mântua entoava hinos em louvor do povo romano e celebrava as glórias de Roma através de um herói em especial, Eneias. Camões toma uma personalidade individual, Vasco da Gama, para herói do poema e vai declarando, desde o início, que o seu objetivo é também o de celebrar todo o povo português:


As armas e os barões assignalados,
Que da occidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram inda além da Taprobana;
E em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram.


TÁGIDES

A invocação às ninfas do Tejo, as tágides, vem a seguir. O poeta se dirige então ao jovem rei D.Sebastião, conclamando-o a se bater na África. É a dedicatória do poema. Neste ponto, Camões segue as Geórgicas, chegando a traduzir alguns versos virgilianos.

A narração começa com o concílio dos deuses, quando os portugueses navegam já pelo canal de Moçambique. Este processo, chamado clássico, seguido por Homero e por Virgílio, é retomado por Camões cerca de dois mil anos depois, inclusive por escritores realistas, o de começar o poema no meio da ação, tem a designação latina de in medias res.




Vasco da Gama é recebido amigavelmente pelo rei de Melinde. A viagem vai permitir a Camões descrever a geografia de Lisboa ao rio dos Bons Sinais. O mesmo faz Eneias, que descreve a Dido a viagem de Troia às costas da Sicília. A ação termina quando os portugueses avistam Calicute.

O paralelismo entre Os Lusíadas e a Eneida é bastante estreito, o que para muitos pode desmerecer a obra Camões. Não podemos ir a tanto. Há muita coisa em Os Lusíadas que atinge um nível do que há de melhor na literatura épica de todos os tempos. Além da contenção camoniana, do seu grande controle sobre o universo vocabular que usou (o poeta dá conta do seu recado, e muito bem, por exemplo, em bem menos versos que os de Torquato Tasso, em Jerusalém Libertada e de Orlando Furioso, de Ariosto, famosos poemas épicos), mencione-se a beleza das descrições dos fenômenos naturais, sobretudo marítimos e a criação de episódios como os do gigante Adamastor (transformado no cabo da Boa-Esperança) e do Velho do Restelo, que, por si só, garantem o lugar de Camões na galeria dos grande poetas épicos. 

Inserido no pensamento do Renascimento, Os Lusíadas tomam, por um lado, apoio no ressurgimento que nos séculos XV e XVI trouxe para as artes, para a filosofia, para as letras e para a própria religião o espírito daquilo que o mundo cristão chamava então de paganismo, tradições gregas e romanas. De outro lado, havia o pensamento moderno, que seduzia os espíritos mais brilhantes, propondo um novo sistema de valores, uma nova estética, uma nova maneira de ver o mundo, que se tornava menor, as grandes viagens marítimas trazendo as primeiras ideias de globalização. O homem assumia o controle dos acontecimentos num cenário de conflitos entre o humanismo e o poder religioso medieval.

Camões se aproveitou bastante do que os novos tempos propunham para dar ao seu poema perfeito acabamento e interesse. Do classicismo trouxe o modelo da urdidura da trama, o maravilhoso mitológico e certos episódios e expressões que encontrou em obras da antiguidade. Da cultura moderna, aproveitou os conhecimentos geográficos e astronômicos, traduzindo estes últimos astrologicamente. Os Lusíadas têm dez cantos, 1102 estrofes e 8816 versos. Para muitos, justificadamente, um “livro nacional” que se tornou universal.


MITOLOGIA


A mitologia de Os Lusíadas é a latina. A mentalidade romana, que a modelou, tomou por base não só as divindades tipicamente itálicas (indígites), pré-romanas, como as que vieram de fora (novensiles), dos gregos e dos reinos greco-orientais, em razão de contactos permanentes que os romanos com eles mantiveram. O Renascimento, como se sabe, recuperou a tradição greco-romana e procurou celebrar a natureza e, mais ainda, Deus através de sua criatura, o homem. A glorificação do humano redundou naturalmente na valorização da razão que, num mundo cada vez mais sensível e quantitativo pelo desenvolvimento de técnicas comerciais, deu nascimento a um pensamento experimental e científico. Foi no mundo do Renascimento que tivemos o aparecimento das primeiras formas do capitalismo moderno, possibilitada a sua existência sobretudo pelo grande desenvolvimento das técnicas de navegação e do comércio.

Foi com a dinastia de Aviz, como se viu, que as grandes expedições marítimas portuguesas tomaram vulto. Depois da ocupação da ilha da Madeira, dos Açores e das ilhas de Cabo-Verde, tivemos a
exploração da costa oriental da África. Bartolomeu Dias dobrou o cabo da Boa-Esperança, Vasco da Gama atingiu o oceano Índico e Alfonso de Albuquerque fundou as colônias de Goa, Malaca e das Molucas. O grande cantor desse mundo é Camões. Com muita habilidade, o poeta conseguiu reunir no seu canto épico não só a história de Portugal como a descrição do sistema do mundo (décimo canto). Os Lusíadas, poema onde se misturam a tradição ibérica, formas narrativas italianizantes, o maravilhoso pagão e o maravilhoso cristão, tornou-se a celebração de uma vocação marítima expansionista e colonizadora, uma espécie de hinário nacional, de um povo então no auge de sua glória.

Astrologicamente,  estávamos  a esse tempo no segundo  decanato  da era   cósmica    de Peixes (fins do séc. XVI).   Este  signo,  que tem relação  com  o  elemento  líquido, com oceanos e  mares,  é  também   na astrologia mundana  o  signo    cujas  vibrações    mais fortemente se associam a Portugal.

A intervenção dos deuses na empreitada portuguesa tem por modelo mais recuado A Ilíada, de Homero, poema que canta um episódio da guerra de Troia, uma guerra que colocou em oposição os gregos aqueus e os troianos, ou seja, ocidente e oriente, respectivamente. A sociedade dos aqueus era fortemente organizada em famílias, sob a dependência de um pai, e às vezes em tribos. Tinham uma religião, um deus do céu luminoso, Zeus, tratado como pai (Dyaus Pater, Zeus, Júpiter), e uma deusa confundida com a terra.

Após a conquista da Grécia e das ilhas vizinhas, os aqueus, comprimidos no solo da Hélade, buscaram a fortuna longe de seu território; toda a orla do mar Mediterrâneo passou a conhecer os chamados “homens de bronze”. Ocuparam Rodes, depois Chipre e Creta (civilização creto-micênica). A guerra de Troia (Ilion) será uma consequência natural do expansionismo aqueu. As causas da guerra eram de ordem eminentemente comercial. Troia era uma potência que se opunha ao estabelecimento dos gregos na Ásia Menor. Lembre-se que se a guerra de Troia significou a conquista de rotas comerciais em direção do oriente, o outro poema de Homero, a Odisseia, tratará sobretudo da conquista, pelos gregos, das rotas comerciais voltadas para o Mediterrâneo ocidental e mesmo atlânticas, por onde andou o nosso herói Ulisses. 

Ao nos falar da guerra de Troia, Homero nos descreve também a divisão que houve no Olimpo. Vênus, por exemplo, demonstrou logo claramente, como deusa oriental, sua predileção pelos troianos
DIONISO
e particularmente por Eneias e por Páris, o primeiro fruto de seus amores com Anquises. Palas Atena, Hera e Apolo, por outro lado, se alinharão com os gregos. Camões faz o mesmo, noutros termos, evidentemente. Logo no canto primeiro do poema, na estrofe vinte, Camões arma um concílio dos deuses sob a presidência de Júpiter. Discutida a questão, sabe-se que Vênus favorecerá a gente portuguesa, “por quantas qualidades via nela da antiga tão amada sua romana”. Baco (Dioniso), por outro lado, se mostrará contrário e fará tudo para prejudicá-los.




A publicação do poema, além de celebrar o epos português, aconteceu num tempo em que a vida social do país se degradava. Luxo das elites, desprezo pelas tradições nacionais, licenciosidade contagiosa, decadência... O poema, quando publicado, veio apenas levantar o ânimo abatido de alguns portugueses, uma tentativa de fazer ressurgir antigos valores, mostrar enfim que um país que conseguira realizar os feitos narrados pelo poeta não poderia perder a sua individualidade política e ser reduzido a uma mera província de um estado vizinho. 

Felipe II, rei de Espanha, encarregou então o duque de Alba de
ocupar Portugal. Toda a alta administração do país passou às mãos do trono espanhol, as possessões portugueses ameaçadas constantemente pelos holandeses. Somente em 1640, graças a Richelieu, os espanhóis foram expulsos e João IV inaugurou a dinastia de Bragança.