segunda-feira, 7 de agosto de 2017

VIRGEM (3)


CATEDRAL   DE   CHARTES
Dentro deste universo simbólico não nos surpreende o rito praticado, em tempos muito remotos, por sacerdotes gregos e romanos, que costumavam lançar grãos de trigo sobre as vítimas humanas imoladas para se garantir o renascimento dos vegetais, as próximas colheitas. Tal rito era, em suma,   uma prática que lembrava a imortalidade, a ressurreição. Além disso, explicava-se por esse rito também a razão  de se trazer espigas de
ESPIGAS   DE   TRIGO
trigo para o interior das casas com o objetivo de proteger tanto o edifício como os que nele viviam.  Presas à viga mestra das casas, quando de sua construção, as espigas de Deméter asseguravam não só solidez à construção como paz e prosperidade para os seus moradores.

É de se lembrar, quanto ao uso de espigas no interior das casas, como está acima, que os gregos antigos usavam também, com a mesma finalidade, mas na parte externa da construção, um elemento a que davam o nome de acrotério (de acro, ponta). Situados no mais elevado do frontão das construções, dentre os elementos mais usados como acrotérios (vasos, estatueta, bolas, imagens de animais etc.), encontramos a pinha, um símbolo do deus Dioniso. 

PINHA
A pinha, como se sabe, enquanto dionisíaca, é um  símbolo da vida sob a sua forma imperecível. Consagrada a várias divindades, mas principalmente a Dioniso, a pinha representa a permanência da vida vegetativa, a alternância das estações e a ressurreição da natureza. O longo bastão de Dioniso, o chamado tirso, atributo do deus e de suas sacerdotisas, era rodeado de hera, de flores da vinha e de cachos de uva. No topo, para a sua empunhadura, uma pinha encimava-o.  

Ao se apoderar da história de Deméter, a psicologia profunda vê no arquétipo por ela descrito um comportamento neurótico. As neuroses, como sabemos, constituem um conjunto de problemas de origem psíquica que, dentre outras características, costumam se manifestar por um comportamento compulsivo, de caráter obsessivo. Diferentemente da psicose (transtorno mental caracterizado por desintegração da personalidade, conflito com a realidade, alucinações, ilusões etc.) a neurose conserva uma referência à realidade, liga-se a situações circunscritas e gera intensas perturbações sensoriais, motoras, emocionais e ou vegetativas. 

O arquétipo materno liga-se, inconscientemente, no ser humano, aos elementos passivos, negativos, à água e à terra, entendidas estas como as matrizes que deram origem à vida. A primeira sempre foi divinizada por todas civilizações como o princípio de todas as coisas. A noção de águas primordiais existe em todas as culturas, simbolizando origem, purificação e regeneração. A terra é a
KNUM
substância universal, prima matéria, separada das águas, e é dela que sairá o homem. Este é o significado da argila como matéria que será utilizada, por exemplo, pelo deus Knum, entre os egípcios, para fabricar o homem. Ou, como está no Gênese, quando Elohim modelou uma estátua de argila vermelha, à sua semelhança, e nela insuflou uma alma. As palavras hebraicas adamah (terra) e adom (vermelho) têm relação com o primeiro homem criado, Adão, segundo esta tradição. 

Deméter tem a ver com as estações, com os trabalhos agrícolas, com a semeadura, com o crescimento das sementes, com os campos trabalhados, com as colheitas e com os celeiros. Sua função materna é importante, mas limitada, pois sofre uma violência, o rapto de sua filha, Koré. Esta violência é a causa da sua neurose, acima referida. Um detalhe muito importante desta história é que essa perda é apoiada e até incentivada pela própria Geia, avó de Koré, a Grande Mãe Universal, como está no hino homérico a Deméter. 


RAPTO   DE   KORÉ  ( ALESSANDRO  ALLORI , 1533 - 1607 )

Lembremos que Deméter é particularmente honrada na Sicília, pois é considerada como a sua divindade protetora. A deusa, na Sicília, representa um caso notável de associação de antigas crenças. Não só os antigos colonos gregos da ilha a ligaram a uma antiga deusa local da fertilidade como lá reconstruíram o mito. A jovem Koré estava em companhia de algumas ninfas oceânidas quando, ao colher narcisos, foi raptada por Hades, o Senhor dos Infernos, que estava à procura de alguém, uma deusa, que com ele pudesse compartilhar o poder sobre o seu reino.

Deus temido, soberano de um mundo invisível, lugar sem saída (salvo para os que acreditavam na reencarnação), mergulhado eternamente no frio e nas trevas, povoado de monstros, de
KORÉ    E    A   ROMÃ
espectros e de fantasmas, com os seus rios, antros e cavernas nos quais perambulavam as almas dos danados, Hades resolveu seu problema pelo sequestro. Sob o protesto de Ciane, uma das companheiras de Koré, transformada numa fonte por isso, arrastou a jovem para o seu reino, colocou nas suas mãos sementes de romã, símbolo da fidelidade conjugal, e fez com que ela as engolisse. Koré as experimentou e parece ter gostado.  Com isso, ficou “presa” definitivamente ao Hades. 


TRAPANI
Na versão siciliana do mito, consta que durante nove dias Deméter errou pelas terras da ilha à procura da filha desaparecida. Na sua passagem, ela foi deixando marcas por onde andou. Há um promontório foiciforme perto de Trapani que os sicilianos dizem ter sido originado pela perda de uma foice que Deméter, como deusa das colheitas, usava. Contam ainda que por causa de Deméter os tremoços, antes adocicados, amaldiçoados pela deusa, tornaram-se amargos e tóxicos. A deusa os amaldiçoou porque, ao perambular pela ilha à procura de Koré, interpretou como gozações, chacotas, os ruídos que as plantas da leguminosa emitiam quando de sua passagem. 

No seu desespero, não encontrando a filha, Deméter provocou uma seca terrível em todo o mundo. Homens e bestas começaram a morrer. Os deuses deixaram de receber sacrifícios. Zeus intercedeu e obrigou Hades a devolver Koré à mãe. Mas a jovem já havia experimentado as “sementes de romã”. Assim, ligara-se ao Senhor dos Infernos. Um acordo, então, é celebrado. Ela passaria uma
MINTHE
parte do ano com ele e outro tanto com a sua mãe. Uma prova de que Koré, já transformada em Perséfone, se afeiçoara bastante ao Senhor do Hades está na tenaz perseguição que ela moveu contra uma ninfa que mantinha relações com ele. Enciumada, Perséfone pôs-se a maltratá-la. Hades, contudo, não desejando perder a amante, a levou para as montanhas e a transformou numa planta, a hortelã perfumada e refrescante, com o nome de Minthe. 

Há uma outra versão sobre o caso acima. Como Koré, já como Perséfone, se afeiçoara bastante com o Senhor do Inferno, Deméter resolveu intervir a favor da filha, condenando a planta (hortelã pimenta, mentha piperita) a não gerar frutos, advindo daí a dupla reputação que a menta tem para os povos mediterrâneos: um caráter funesto, considerada como uma planta que ao mesmo tempo que causa a esterilidade tem um caráter afrodisíaco. 

Hipócrates, Aristóteles e Plínio, o Velho, acreditavam que a menta atuava como anticoncepcional. Grande parte desta aura que cerca a menta pode ser atribuída a uma lenda cristã. Consta que quando o menino Jesus e sua mãe fugiam de Herodes a menta os denunciou (felizmente em sottovoce e não foi ouvida), razão pela qual Maria a amaldiçoou: Tu és menta e tu mentirás sempre; florirás, mas não darás frutos.

Do ponto de vista de Geia, a Grande-Mãe, os elementos e acontecimentos desta história, sedução, rapto, “ingestão” de sementes de romã por Koré, a presença de Minthe, a ninfa do Hades, a indiscrição de Ascálafo eram irrelevantes. Não tinham a grande importância que lhes foi dada por Deméter e, a princípio por
LAGO   DE   PERGUSA
Koré. A “perdição” da jovem, como ficou claro em Homero, foi apoiada pela própria Geia que, inclusive, dela participou indiretamente ao cultivar as flores que ajudaram Hades a raptar a jovem. O rapto, segundo a tradição mais confiável, ocorreu na Sicília, perto do lago de Pergusa, sob os protestos das companheiras, em especial de Ciano, transformada por Hades numa fonte. 

Para Geia, o rapto de Koré e a sua sedução eram fatos naturais, tão naturais como o nascimento e a morte, que ela sempre enfrentara com tranquilidade e resignação. Suas experiências com Urano, neste particular, ainda que violentas, ela bem o sabia, faziam parte da ordem natural do mundo, na qual as violações apareciam como necessárias, inevitáveis. 

Num primeiro momento, Deméter simboliza uma fase muito importante na história da humanidade na medida em que ela, na
ELÊUSIS  -  GRÉCIA
linha sucessória das Mães ligadas à terra, vindo depois de Geia e de Reia, representa o aparecimento da agricultura com o consequente processo de sedentarização, isto é, o abandono da vida selvagem, nômade, coletora pela vida social mais organizada. Num outro plano, a mensagem mais importante deusa, através de Elêusis, é a da imortalidade da alma e a da sua eterna ressurreição depois da morte. 

Como se não bastassem essas possibilidades significativas, lembremos que Deméter ensinou aos homens a arte de plantar e de colher, atividades que dependem sempre de uma elevada capacidade discriminatória. O agricultor tem que ter, numa ponta, para plantar, a clara noção do lugar em que o fará, do tipo de solo, da estação, das condições climáticas, da qualidade das sementes e dos demais cuidados necessários. Noutra ponta, clara noção do momento oportuno da colheita, dos meios disponíveis para tanto, do que e onde o colhido deverá ser armazenado e do fim a lhe ser dado. Entre as duas pontas, os cuidados permanentes para que tudo o que foi plantado venha à luz da melhor maneira possível. 


A   COLHEITA  ( BRUEGEL , 1521 - 1569 )

A capacidade discriminatória de Deméter, numa visão mais apressada, parece dizer apenas ao que ocorre na “superfície”, à percepção das diferenças nele constatáveis, visíveis. Entretanto,
PERSÉFONE   E   HADES 
lembremos que o “outro lado” de Deméter é  Perséfone, e que elas, no fundo, são a mesma coisa. Assim, enquanto uma atua em cima, a outra atua em baixo. Por isso, a percepção de Deméter deverá implicar  também, sempre, a percepção do que ocorre no mundo inferior, o mundo do “não-visto”, do invisível. Ou seja, notar as diferenças no mundo de cima e ter, ao mesmo tempo, uma percepção do que é  invisível, que está no mundo inferior. 

O que acontece, porém, com relação a Deméter, como o mito desenha o arquétipo, é que ela não tem esta percepção “inferior”.
HÉCATE
Quando perde a filha, ela se torna depressiva.  Decreta a seca universal, nega o futuro. É a velha máxima da psicologia: se não posso ter o que desejo, destruo tudo e/ou me autodestruo. Sob o disfarce de um animal (tema já abordado acima) e de uma velha, Deméter perambulou pela terra, desesperada; deixou de tomar banho, não se alimentou, até encontrar Hécate, a deusa lunar triforme que lhe disse também ter ouvido os gritos da jovem, mas que não lhe fora possível reconhecer o raptor. Sugere Hécate que ela vá ao deus Hélios, que tudo via, já experiente nessas questões (a revelação do affaire Ares-Afrodite). Assim foi feito, cientificando-se então Deméter das circunstâncias do rapto de Koré e de seu autor. 

O comportamento de Deméter é reconhecidamente neurótico, como se disse. Desespero e depressão quando perdida a filha. Contentamento, pulos, “esquecimento” do drama vivido, quando a recuperou. A história de Deméter nos revela também, por essa linha de raciocínio, que, acima de tudo, a vida adquire um significado em função do que sentimos. São eles, os sentimentos, os doadores da vida. De bem com a vida, Deméter é benevolente, dadivosa. Mal com a vida, quando tem que lidar com o “lado ruim da vida”, é depressiva, agressiva, negativa, destruidora. Esse jogo normalidade/anormalidade nos introduz numa questão importante dos arquétipos, a de que todos têm também a sua patologia. Ou seja, num único e mesmo arquétipo podemos ter a sua patologia e a sua terapia.  


DEMÉTER
Quando recebemos os dons de Deméter, precisamos ficar cientes das dificuldades que eles nos oferecem, das suas implicações inconscientes, na maioria das vezes. A única maneira de percebê-las será ir em direção do Hades. Uma  das formas que usamos para representar as nossas perdas é o luto, tanto uma autopunição como uma punição com relação àqueles que fazem parte do mundo em que vivemos.

O “luto” de Deméter é representado pela cor negra, que caracteriza, numa “leitura” apressada e superficial, as trevas, a tristeza, a morte, a negação absoluta, o silêncio sem vir a ser. Os gregos e os romanos faziam da cor negra um símbolo do luto, cor das penas e das angústias da alma. No simbolismo ocidental e cristão, principalmente, o negro sempre foi usado como cor funerária, o “luto sem esperança.” A tradição ocidental atribui ao negro uma significação nefasta conforme o atestam expressões como “ideias negras”, “humor negro”, “besta negra”, “filme noir” etc. O negro designa o sombrio, o triste, o que se opõe ao claro, ao alegre, ao luminoso. 


A   FESTA   DE   AFRODITE  ( P.P. RUBENS , 1577 - 1640 )

Os conflitos entre os cultos de Deméter e de Afrodite encontram aqui a sua explicação. Koré, lembremos, foi raptada quando colhia flores, que, no mito, “pertencem” a Afrodite, a deusa das forças incontidas da fecundidade enquanto símbolos do desejo apaixonado. Afrodite é o prazer dos sentidos, da sexualidade que independe da procriação. É a alegria de viver, a atração voluptuosa, a sensualidade, a sedução, a celebração das trocas, a comunhão afetiva, o encanto, a beleza, a graça. O seu poder fala de ternura, de
PAPOULA
carícias, de doçura, de tudo que signifique prazer e beleza. É por essa razão que nos cultos de Deméter as flores estavam proibidas (oposição Touro-Escorpião). Apenas uma flor era admitida nos cultos de Deméter, a papoula, pois a deusa, quando desesperada, por sugestão divina, para se acalmar, tomara uma infusão preparada com as pétalas da flor (mekhon) que, representava em Elêusis, o sono, o esquecimento, inclusive o sono que se apoderava dos humanos depois que morriam até um eventual renascimento. Certas correntes míticas vêem a papoula como um personagem, por ela amado, metamorfoseado em flor.


NIX  ,  THANATOS  E  HIPNOS

O efeitos narcóticos da papoula são conhecidos pelos gregos desde a mais remota antiguidade, um atributo, no mito, pertencente aos deuses Hipnos, Thanatos e Nix, todos usando coroas feitas com a flor. Por seu caráter alucinógeno (extrai-se ópio da papoula), a papoula era uma flor sagrada, pois permitia viagens  extracorporais, viagens que sem uma orientação adequada podiam levar a viagens sem volta. 

A história de Deméter ganha outra dimensão se lembrarmos que ela “nega” com todas as suas forças o mundo “inferior” (Hades) ao se apegar neuroticamente (destrutivamente) ao mundo “superior”. Sua visão é  completamente diferente da de Geia, que “sabia” que os dois mundos são uma coisa só". Deméter perde a sua escala de valores (o que vale é só o mundo de cima), não há discernimento, discriminação, só desdém. As coisas para ela só valem pelo seu aspecto “de superfície”. Daí, a sua mágoa, a sua violência, quando a privam delas. Uma visão unilateral do signo de Virgem?  


PIETÀ  ( MICHELANGELO , 1475 - 1564 )

A mensagem astrológica do que estamos colocando poderá ser melhor apreendida se lembrarmos que o signo de Virgem, ao “receber” o ego nascido em Leão, quinta casa, não deverá apenas se fixar nos seus aspectos de “superfície”. Deverá cuidar do “outro lado”, preparando-o para a jornada subterrânea que se inicia neste período do ciclo anual. Uma das grandes imagens desta passagem está, por exemplo, numa das mais belas obras da escultura de todos os tempos, a Pietá, de Michelangelo. Com efeito, o signo de Virgem trata das transformações de nossa personalidade que partem de estados infanto-juvenis para a conquista de uma individualidade mais sábia, mais madura, representada pela fruição da colheita. É a partir de Virgem que começa a nossa reorientação (mal nascido o ego) para interesses mais universais, que, numa primeira etapa, devem passar obrigatoriamente pela vida representada pelo signo de Libra e pela sétima casa astrológica. 

Em Virgem acaba a aventura individual do ser humano. As forças do dia ainda predominam, mas começam a perder o seu poder. Por ser um signo de terra, Virgem nos fala, efetivamente, de coisas práticas (o “prato cheio” de Deméter), mas não há que se perder de vista que o caminho para o universal se abre aqui.  

Deméter, ao decretar a seca, procura eliminar o úmido do universo. Nega as possibilidades de contacto, presa de uma “ira vã e
HOMERO  ( MUSEU  DO  LOUVRE )
insaciável”, como está em Homero. A deusa, ao assim agir, nega o futuro. O quadro, como disse, é depressivo, neurótico, parecendo retirado da psiquiatria moderna: ela não se banha, deixa de comer, realiza tarefas que estão claramente muito abaixo de suas habilidades, anula a sua beleza, disfarçando-se, nega a sua própria sensualidade, foge do seu ambiente natural, o campo, procura a polis. 

ÍRIS ( L.GIORDANO )
Segundo o mito, sabemos que Zeus despachou a deusa Íris para acalmar Deméter, que não se recusou a ouvi-la. Depois, vieram outros deuses. A mesma resposta: ela jamais poria os pés no Olimpo e não permitiria que nada mais brotasse na superfície da terra enquanto a filha não lhe fosse devolvida.  Zeus, então, enviou seu embaixador plenipotenciário, Hermes, para discutir com Hades a questão e resolvê-la, de modo que a jovem retornasse ao seio materno. Hermes explicou a Hades que se Koré não fosse devolvida à mãe, a “débil raça humana seria aniquilada” e, com isto, os deuses não mais seriam honrados. Explicou mais Hermes que como os deuses “vivem” dos cultos que lhes são prestados e de sacrifícios recebidos, a extinção da raça humana significaria também a extinção dos deuses. Nada mais lógico.

Não houve necessidade de maiores detalhes para que Hades logo se convencesse, sendo-lhe prometido que a jovem passaria uns tempos com a mãe na superfície e outro tanto com ele no mundo ctônico. Consentiu que a jovem retornasse, fazendo-a, porém, ingerir mais
HADES
sementes de romã, o que lhe bastou para deixá-lo tranquilo quanto à certeza de sua volta. Feito isto, Hades mandou atrelar os seus cavalos e a levou no se divino carro até Elêusis. À vista de sua filha, Deméter não conteve a sua alegria. Sua primeira pergunta foi a de que se no Hades havia comido alguma coisa. Conformada com o ocorrido, Deméter e a filha passaram muito tempo trocando afago e demonstrações de afeto. Consta que a deusa infernal Hécate, tia da jovem, participou efusivamente do encontro e que Zeus enviou sua mãe, Reia, (e de Deméter também) com a missão de confirmar tudo o que se estabelecera. 

Deméter, como Mater Dolorosa, e sua filha sempre suscitaram nos gregos uma forte religiosidade. O mito grego segue de perto o modelo egípcio, de caráter osiriano, alterando-o, porém, no sentido
SACERDOTISA E INICIADO
de sua “persefonização”. O iniciado nos Mistérios era chamado também de Demetrios, sendo a filha uma forma regenerada, rejuvenescida, da mãe, quando de seu regresso do Hades. Os Mistérios falavam, pois, de um novo nascimento. A passagem de Koré, jovem rapariga núbil, a Perséfone, deusa dos Infernos, significa uma mudança de estado. Durante muito tempo, lembremos, desde tempos muito remotos, o rapto sempre foi considerado como um ritual matrimonial, um equivalente do estupro, um sequestro da alma. Temos o rapto da jovem pelo seu tio paterno e materno, o consentimento do pai (Zeus), a colaboração de Gaia, a grande ancestral, cujas entranhas se abriram para receber a bisneta. A testemunha de tudo isto é Euboleus (Bom Conselheiro), um porcariço que guardava os animais de Hades na Sicília, no local da cena. No momento em que a terra se abriu, alguns porcos desceram, caíram com Koré no Hades, razão pela qual se instituiu um rito de sacrifício de porcos quando das Tesmofórias, grandes festas anuais que se realizavam em homenagem a Deméter. Nessas festas, de caráter exclusivamente feminino, o mito de Deméter era inteiramente dramatizado, fechando-se o ciclo entre a semeadura e a colheita. 



TESMOFORIANTES  ( FRANCIS  DAVIS  MILLET ,  1848 - 1912 )

Numa outra perspectiva (psicológica), o mito nos fala de um animus infernal (Hades), irmão do animus olímpico (Zeus) que encontra a sua anima (Koré), seu complemento. Hades, ao liberar Koré para voltar a Deméter, profere, segundo o poeta, as seguintes palavras: Vai, Perséfone, volta à tua mãe velada de negro; mas guarda em teu peito um humor e um coração serenos. Não te desesperes. É inútil e em vão. O esposo que terás em mim não é indigno de ti entre os imortais; sou o próprio irmão de Zeus Pai. Quando estiveres aqui, reinarás sobre todos os seres que aqui vivem e se movem; terás os maiores privilégios entre os imortais, e serão castigados todos aqueles que te injuriarem no sentido de não se conciliarem com o teu coração através de piedosos sacrifícios e das oferendas que te cabem.” 


DEMÉTER  E  PERSÉFONE
Esta história de Deméter-Koré-Perséfone-Hades é também, numa outra leitura, uma ilustração que os gregos elaboraram, pela via mítica, para nos falar sobre o aparecimento dessa imagem interior no mundo masculino, a personificação feminina do seu inconsciente a que a psicologia profunda dá o nome de anima. Na anima se reúnem todas as tendência psicológicas femininas do psiquismo masculino, os sentimentos vagos, os estados de humor oscilantes, as suspeitas, as inferências, as emoções, a intuição, a sensibilidade para o mundo natural, tudo aquilo enfim que não pode ser objeto de quantificações,  de medições, de valorização objetiva. Neste sentido, Perséfone é, em suma, tudo aquilo que é irracional e ilógico. É neste sentido um poder invisível, distinto da nossa parte consciente. 

Ao se manifestar, esse lado feminino pode tomar diversas formas. Muito comuns as expressões deprimidas, violentas, irritadas, inseguras da anima, quando tomam então um caráter acabrunhante, opressivo, demoníaco, uma ilusão destrutiva muitas vezes. Estas formas sempre  fizeram parte dos mitos, das lendas, da literatura em geral, de contos folclóricos e populares; hoje, estão nos meios de comunicação, em filmes, na ópera, em canções populares, na publicidade, sendo matéria privilegiada de muitos estudos no campo da psicologia. A anima pode tomar aspectos positivos ou negativos. As Sereias da mitologia grega são exemplo da anima  funcionando destrutivamente ao atrair os homens para a perdição ou para a morte. 

EMILY   BRÖNTE
(BRANWELL BRÖNTE)
Esta mesma ideia está presente na mulher com relação ao seu animus, detentor do seu modelo masculino, do seu “homem interior”. O animus é, assim, a personificação masculina no inconsciente da mulher, podendo apresentar aspectos positivos ou negativos, como ocorre com a anima do homem. A influência básica do animus numa mulher tem muito a ver com a figura paterna, uma influência que inclusive pode se chocar a sua própria realidade pessoal. Um exemplo do que aqui se coloca está na figura de Heathcliff, personagem central da

novela de Emily Brönte, Morro dos Ventos Uivantes, transformada num excepcional filme, em 1.939, dirigido por William Wyler, com Laurence Olivier e Merle Oberon nos principais papéis. Heathcliff é uma figura torturada, demoníaca do animus da autora, espelhada nas figuras do irmão ou do próprio pai.