domingo, 16 de outubro de 2011

UMA VIDA DIFERENTE (CONTO)




ILUSTRAÇÃO   DE   LÚCIO   MENEZES


          O prato, os talheres, as cascas da laranja, as migalhas, os copos. Um gesto e tudo iria para o chão, a louça e o passado. Vontade não faltava. Aliás, pensando bem, toda a sua vida fora feita de vontade que não faltava Quisesse ou não, aos trinta e cinco anos, a conclusão não podia ser outra. Porque tudo ficava no amanhã eu faço, no um dia acabo fazendo. Quantas vezes, ali sentada, quando o silêncio se alastrava pela casa, não dissera que era a última vez. A última vez que acordava cedo, a última vez que arrumava a cozinha, a última vez, sempre a última vez. Quantos anos ainda nessa vida, o tempo escorrendo, a suportar a longa sucessão de dias e noites entre a banca de peixe e a casa, o pai, Nina, vida lenta, interminável? Durante esses anos todos acontecera Waldomiro. Por uns momentos, não mais que por uns momentos, entre esperanças e pressentimentos, Waldomiro tinha sido mais imaginação que realidade. Chegara alto e moreno, pele trabalhada pelo mar, e no quarto, na banca de peixe, na rua mesmo, o futuro fora construído. O gesto interrompido, Waldomiro no pensamento, viu-se menina desajeitada armando as peças de um brinquedo-amor. Inesperado brinquedo, jogo difícil, para o qual não fora criada. Mas era uma vida, dádiva, que ofereceria a Waldomiro com os olhos enxutos e a boca sem palavras, porque o amor não precisava de palavras.
Mais do mar do que da terra, Waldomiro não entendeu. Ou fez que não, com as suas, preocupações, peixes, redes e barcos. Por isso, já não significava mais nada. Passara pela superfície calma da sua vida sem deixar marcas. Quando muito, imagens de uma vida diferente, hoje vaga lembrança onde havia mais decepção do que tristeza. No fundo, Waldomiro talvez nunca tivesse significado nada. Nem mesmo quando tudo era novo, nos primeiros tempos, quando tentara acreditar que a sua vida ia enfim se modificar. Modificação era sair do beco do Peixe, longe da casa, do trabalho na banca, viver, viver, sim, com Waldomiro. Uma outra vida, futuro imaginado. Mas que vida?, se nunca soubera fazer outra coisa senão cuidar da casa e trabalhar no peixe. Não era mulher para homem do mar. Mulher como tantas outras, isso era, que Waldomiro encontraria aqui e em outros portos. E quem sabe se a culpa não tinha sido sua, porque nunca falara, porque o gesto, áspero, desajeitado talvez, mas sempre um gesto, fora recolhido? E a palavra? Bastaria uma palavra. Culpada ou não, Waldomiro entrou com o correr do tempo para o rol das coisas que se repetiam.
Nem tinham começado a namorar, se aquilo podia ser chamado de namoro, Waldomiro dera para sumir dias e dias. Primeiro, aquela história do pesqueiro japonês, mês sem vir, sem mandar noticias, as noites na janela. Depois, a pesca da baleia, meses e meses sem fim. O certo é que pouco a pouco, sem nunca terem tocado no assunto, a vida foi se encarregando de acertar tudo. Até que as visitas de Waldomiro, visitas, sim, do jeito que ele vinha, entre um barco e outro, se tornaram mais regulares. Cinco, seis, sete, no máximo, por ano. Namoro... Um domingo à noite no cinema, aquele vestido azul, duas ou três vezes depois, três vezes, exatamente, por que não reconhecer?, ele nunca entrando porque já era muito tarde...
Mas nunca dissera uma palavra ao pai, a Nina, a ninguém. Poderiam eles compreendê-la? Violência, revolta, indiferença, conformismo, sentimentos de uma vida, de muitas, vidas vivendo lado a lado. Agora, por exemplo, um gesto e tudo viraria um monte de cacos. Pratos, copos, louça ordinária que o pai comprava, quebrar até não sobrar nada, Depois ir até o fim sem explicar, um gesto puxando o outro. Sair do beco do Peixe sem se incomodar com futuro. Esticar o braço e jogar tudo no chão, a louça e o passado. Um gesto. Mas como fazer isso, se nem força tinha para se levantar da mesa? De quê adiantava aquela revolta se sabia no fundo que nunca faria nada? O corpo não era mais que um desânimo infinito e os olhos dois olhos mortos de sono e cansaço a olhar a louça, a cozinha suja, as coisas por fazer.
Lá fora, lá fora o tanque, os varais, o passarinho, a criação, as pequenas preocupações noturnas, que só à noite dava tempo. Não bastava o trabalho na banca desde as seis da manhã e ainda por cima a casa. O trabalho na banca, por ruim que fosse, sempre tinha um sentido, mesmo limpar peixe tinha um sentido. Mas se não fizesse o trabalho da casa quem faria? Alguém precisava fazer, mulheres, muitas mulheres faziam. Nina? Nina dormia, pintava as unhas e enrolava o cabelo. Nina tinha quatorze anos. Quinze no mês que vem.
E, por falar em limpar, aquela cozinha estava uma sujeira. Foi deixando, deixando, e agora não podia olhar aquelas paredes de tão encardidas, O resto da casa também, imunda, caindo aos pedaços. a paredes rachadas, goteira por todo canto. Um dia, hoje não, um dia, se viesse a coragem, faria uma limpeza em regra, faxina de água, sabão, creolina. Depois era falar com o seu Lopes para ver se conseguia uma pintura. Pelo menos, caiar a cozinha e a frente.
No quintal nem era bom pensar. Desesperava até. Parecia um terreno baldio de tanto mato e lixo. Não adiantou nada aqueles homens. Os ratos voltaram e continuaram matando a criação nova. Da ninhada de doze, desde a semana passada, não sobravam mais que sete. Os homens deram umas bombadas, disseram para capinar no fundo, lá perto do pé de maria-mole, mandaram não jogar lixo, como não jogar lixo se o muro está arrebentado e todo o mundo que passa joga coisas, como ainda ontem o filho de dona Filomena, os homens falaram até em peste, mas o certo é que não adiantou nada. A prova foi hoje, mais dois pintinhos mortos. Bem, não que tenham morrido, até que não tinha visto os dois pintinhos mortos. Fugir, não fugiram, porque tinha perguntado à vizinhança toda. Roubaram, talvez. Mortos, roubados, sempre dava no mesmo. Melhor dizer que sumiram, sumiram como Waldomiro. Também ninguém se incomodava. Nina podia, bem que podia, se não passasse o dia todo lendo aquelas revistas, falando em fazer um teste na rádio, que tem um moço lá que prometeu...
Não, hoje não faria mais nada. Precisava era ir para o quarto, ficar na janela olhando a rua até que o sono chegasse. Gostava desses momentos. Não pensava em nada. Ou melhor, pensava cm muitas coisas, mas não fazia força para pensar nelas. Era como um desfile, alguém decidia o que ia ver. Não tinha que escolher, e se alguma coisa aborrecia nada mais fácil do que mudar a direção do olhar. Ai então vinham os tempos de menina, passeios, a escola, as praias iluminadas, automóveis, tudo diferente do beco do Peixe. Nas vezes em que fora a esses lugares chegara até a gostar. As mulheres fumavam, os homens falavam alto, olhavam de um modo estranho, como se tudo fosse deles. Roupas, então, nunca vira roupas tão bonitas. Se eles não falassem a mesma língua, poderia dizer até que estava viajando, visitando um outro pais.
O quarto, a rua. Rua, não, antes um beco, com o muro de dona Filomena atravancando tudo. Sempre tinha sido assim, a Prefeitura intimando, e o seu Lopes não fazendo nada. Dono de quase todas as casas da rua, apenas mandava o Perneta no fim do mês fazer a cobrança dos aluguéis. Não aparecia nunca. Seu Lopes era como um deus, todos sabiam que ele existia, mas poucos o tinham visto ou falado com ele. Se os inquilinos queriam reclamar era esperar o Perneta. Dia cinco, seis, lá vinha ele, capengando, importante. Os anos se passavam e a vida no beco continuava a mesma, as casas mais velhas, os moradores mais velhos. O muro de dona Filomena, agora cai não cai desde que o Gino soltara aquela cabeça-de-negro na noite de São João, foi o Gino, quem mais poderia, tudo esburacado, sem luz, beco de sombras, por onde ninguém passava depois das nove. Só com o seu Lopes mesmo, caiar a cozinha, pelo menos...
Quase dez horas no relógio da torre da igreja. Precisava era ir para a cama, pois o pai sempre acabava implicando. Apaga, Carmela! Fecha, Carmela! Olha o freguês, Carmela! Vida estúpida, o pai não parando de implicar. Em casa, na banca, vinte anos desde que a mãe morrera, o pai deixou de falar, não ligou para mais nada. Resmungava, bebia cada vez mais, dizendo palavrão por qualquer coisa.
Na banca era igual, o pai não parava de implicar. Mas o tempo passava mais depressa e quando dava conta mais um dia tinha ido. O avental e as botas de borracha voltavam para o lugar e a água escorria limpando tudo. A água então carregava as escamas, e aquela mistura de água, escamas, espinhas e sangue, quando havia luz, um sol que entrava pela janela dos fundos, parecendo até vitral de igreja. A água escorria vermelha, bem forte, depois ia clareando, tornando tudo limpo, branco para o dia seguinte. As mãos e os azulejos. O que fazer das mãos? nada tirava aquele cheiro, as mãos feridas, cortadas, calejadas, não havia esmalte que desse jeito naquelas unhas.
O pai nem precisava dizer. Depois de tanto tempo, acabara se acostumando, aprendendo a adivinhar os gestos. Vinte anos desde que o pai a pusera na banca, desde que a mãe tinha morrido, mal se lembrava do rosto dela, vinte anos conhecendo os homens e os peixes. Dez e meia, não era tão tarde assim... Quem sabe se o Waldomiro viria? Tinham chegado três barcos...