segunda-feira, 8 de junho de 2015

COMPLEXOS

                                                  
O texto que vem a seguir é matéria introdutória de um ciclo de Alquimia Simbólica em que procuramos estudar a origem dos nomes do que várias doutrinas psicológicas chamam de complexos, de modo especial as suas relações com o tema da coagulatio.


Comumente, define-se o complexo, quando pensamos na interioridade do ser humano, como um conjunto de ideias, de imagens, de sentimentos ou de representações parcial ou totalmente inconscientes com enorme carga afetiva. Inativo por muito tempo, este conjunto pode às vezes entrar em atividade, fazendo oposição aberta às intenções do eu que se pretende consciente,  rompendo a sua unidade. Quando isto acontece, temos a sensação de que um outro ser nos habita, impondo a sua vontade, adquirindo vários graus de autonomia, chegando mesmo, em situações extremas, a destruir nossa ideia de identidade.

No geral, porém, a ação de um complexo costuma gerar descontentamento, contrariedade, produzindo uma sensação de fracasso, de que algo não saiu como desejávamos. Estas perturbações internas têm como núcleo temático o referido complexo, que apresenta sempre um caráter eminentemente pessoal, de intensidade variável.

A   SÍNTESE   DA   ALQUIMIA
O complexo, sob o ponto de vista da Alquimia Simbólica, constitui-se numa espécie de coágulo e a ele vão se juntando partículas toda vez que estimulado por uma referência, por um acontecimento externo ou interno que não conseguimos resolver, seja por comodismo, inabilidade, fraqueza ou incapacidade. Forma-se assim uma espécie de nó, um lugar de condensação, de fixação, de agregados, um lugar onde algo é bloqueado, onde algo estaciona, não flui. Um ponto morto.

Na medida em que os nós simbolizam uma parada, um constrangimento que imobiliza, simbolizando um tema existencial que não sabemos resolver, eles, os nós, desde a mais remota antiguidade, adquiriram um valor mágico. Nós criam certos pontos fixos não só no corpo físico como no anímico, sendo esta fixação considerada maléfica, pois impede o normal fluxo da energia, um obstáculo sempre. No corpo físico, por exemplo, falamos de nódulos tireoidianos, de nódulos cervicais, de cistos, de cálculos renais, de nó nas tripas, que podem existir nos mais diversos órgãos e tecidos etc.


O aspecto benéfico dos nós aparece com destaque na literatura e na arte religiosa, simbolizando o poder que une, que integra a um todo maior. Na Alquimia, as operações que têm relação com nós têm o nome de conjunctio (conjunção) e coagulatio (coagulação). Nos Upanishads do Hinduísmo, desfazer o nó (granthi) vital é alcançar a libertação (moksha). O nó de Isis, no antigo Egito, era símbolo de imortalidade. Em muitas tradições religiosas, o adepto reafirma a sua fé através de nós que de tempos em tempos (a cada cinco anos, por exemplo) são dados no cordão com que envolve, na região da cintura, as suas vestes talares (batina, sotaina, loba etc.) que lhe descem pelas pernas quase até o chão. 

Metaforicamente, nós são ligações entre pessoas por parentesco, por afeição, por contrato (casamento, formação de uma sociedade comercial etc.). Nó é também aquilo que é mais importante num assunto. Apertos provocados na garganta por uma emoção são chamados de nós, nós na garganta.  É também pelas razões aqui mencionadas que em muitas ordens religiosas os seus membros ficam proibidos de usar roupas com nós. Era o caso dos sacerdotes de Júpiter na antiga Roma, os flamen dialis, cujas vestes não deviam ter nó algum. A mesma interdição é encontrada na tradição islâmica: os peregrinos que se dirigem a Meca não devem ter nós nas suas roupas. A feitiçaria europeia medieval utilizava frequentemente a ligadura (nós em cordões) com a finalidade de impedir o normal funcionamento de órgãos do corpo da pessoa que a ser atingida. 

THEODOR  ZIEHEN
Na psicoterapia, a palavra nó passou a designar tudo o que delimita, inibe, fixa ou bloqueia, dando-se a ela também o nome de complexo, palavra que vem do latim, complector, que traduz a ideia de abraçar, de cercar, de tomar nas mãos, indicando união, reunião, envolvimento, fechamento. O termo complexo, ao que parece, foi usado pela primeira vez pelo psiquiatra alemão Theodor Ziehen (1862-1950) e depois adotado por Carl Gustav Jung (1875-1961) para designar fragmentos soltos da personalidade ou grupos de conteúdo psíquico separados do consciente e que têm um funcionamento autônomo no inconsciente, de onde podem exercer influência sobre o consciente. Para os freudianos, o termo complexo aparece apenas ligado a dois conjuntos de representações inconscientes na vida psíquica, o de Édipo e o de castração.


CARL   GUSTAV   JUNG

Uns nós só são reconhecidos intelectualmente, outros jamais o serão. De qualquer maneira, todos sempre causarão muito dano, muito sofrimento, muito mal-estar e, às vezes, algum bem. Desfazer um complexo, cortá-lo como um nó górdio, não é conveniente, não seria uma vitória psicológica, essa vitória seria tão precária como a conquista da Ásia por Alexandre. Nós (complexos) não podem ser cortados violentamente. Os chineses sempre nos ensinaram que a melhor maneira de desfazê-los é com paciência, com muita calma, pois assim fazendo é possível assegurar uma vitória mais estável, mais duradoura.

Na vida psíquica, difícil muitas vezes é admiti-los para que sua energia seja canalizada, dissolvida ou descarregada. Tentar relacioná-los, caracterizá-los, é importante. Quase sempre temos que pedir ajuda. Se não dissolvidos, podem mesmo nos dividir. Na maioria dos casos, navegam lá no fundo do nosso psiquismo, tendo voz própria. O certo é que não basta o seu reconhecimento intelectual, pois só libertamos o que é vivido com emoção. Nenhum fenômeno existencial se resolve só pelo intelecto. O fenômeno é tanto sentido intelectualmente como, sobretudo, valorizado afetivamente. Temos então que tentar desintegrar os sentimentos neles represados. Só quando sentimos de um modo diferente é que nossa vida realmente muda.


ASCLÉPIO
Os gregos antigos, através dos seus mitos, já haviam notado a importância deste fenômeno. Perto de Atenas, no santuário médico de Epidauro, de Asclépio, o deus-toupeira, os sacerdotes que lá viviam, dentre outros procedimentos, praticavam a nooterapia para curar as mentes doentes. Esta prática procurava reformar o homem por inteiro, psíquica e fisicamente. O objetivo era o de provocar nos que lá se internavam a metanoia, a transformação dos sentimentos represados (incubatio), que, como agentes mórbidos, eram os causadores das doenças. 


RUÍNAS   DO   SANTUÁRIO   DE   EPIDAURO   

Segundo as doutrinas psicológicas, várias as hipóteses, que podemos formular sobre a existência desses núcleos que navegam na nossa interioridade: 1) eles não chegam ao consciente, isto é, não estão suficientemente encorpados de modo a se fazerem sentidos. Contudo, podem acarretar alguns problemas menores, alguma confusão, sem afetar o todo; 2) ganham corpo, formando uma espécie de segundo eu, dividindo-nos. Tornamo-nos dois. Podemos ficar à mercê desse outro eu. Uma espécie de dragão devorador que pode tomar a figura de um pai que se apossa do filho, de uma mãe castradora, de inúmeras maneiras, enfim, que nos levam muitas vezes a reproduzir o que talvez eles nunca tenham exigido de nós; 3) achamos às vezes que o problema vem de fora (mania de perseguição, paranoia) quando, na verdade, é produto interno; 4) às vezes, identificamos o problema, que estava inconsciente, mas o projetamos sobre outra pessoa, partindo para o confronto (ele ou ela é que são os culpados por nós nos sentirmos assim).

Aos complexos foram sendo dados nomes de personagens do mito, da religião, da literatura, principalmente, nomes que nos ajudaram a definir melhor os comportamentos e os padrões de conduta das pessoas por eles possuídos, formando-se assim uma espécie de demonologia. Para os antigos gregos, os demônios eram seres divinos ou semelhantes aos deuses, já que também possuíam poder. O demônio de alguém acabava se identificando com o próprio destino humano. Depois, a palavra demônio veio a designar deuses inferiores e, por fim, espíritos maus.

Os exemplares desse universo estão nos mitos, nas lendas, em histórias antiquíssimas, tradições às vezes esquecidas ou perdidas, que se encontram em todas as culturas. Muitos os chamam de arquétipos (etimologicamente, forjado há muito tempo e, por isso, muito poderoso, um poder que deriva do tempo). Origem? Saíram de um tronco único? Ou cada sociedade os fabrica? O que parece mais aceitável é que esses padrões aparecem como símbolos quando se tornam claros, quando os identificamos, trazendo-os ao nosso consciente. O revestimento desses arquétipos é dado para a cultura ocidental, em grande parte, pela mitologia grega, mas isto não exclui que outras tradições e culturas também possam lhes dar vida.

FREUD
Para Freud, o inconsciente é um depósito para onde vai o que rejeitamos do consciente, sendo isento de movimento e estático, algo sedimentar. Para Jung, o inconsciente existe a priori, uma espécie de vasto oceano do qual emerge uma pequena ilha, o consciente. Para Jung, o inconsciente não é estático e rígido, é dinâmico, movimenta-se sempre, coagulando-se e se dissolvendo, operando numa relação compensatória e complementar com o consciente. No inconsciente, encontram-se conteúdos pessoais, adquiridos em nossa vida, mais aquilo que o próprio inconsciente traz.

Conteúdos da memória dos quais não temos necessidade constante fazem parte do inconsciente pessoal. Uma espécie de banco de dados que pode alimentar a consciência se necessário. Fazem parte também do inconsciente pessoal os chamados complexos. Mais no fundo, temos o que Jung chama de Inconsciente Coletivo, matéria variada, de caráter hereditário. Não depende ele de experiências pessoais, mas seu conteúdo só se expressa através de experiências reais.

Os complexos, como tudo indica, parecem se formar já nos primeiros anos de nossa vida, encontrando-se sempre na base deles a dualidade amor-ódio. Constituem um entrave na vida de qualquer pessoa, freando o pleno desenvolvimento de qualquer personalidade, criando sempre dificuldades de adaptação. Sociedades muito rígidas, de características marcadamente puritanas, por exemplo, favorecem muito o aparecimento de complexos.

Há alguns psicólogos que não consideram os complexos em si mesmos negativos, podendo mesmo se constituírem em impulsionadores do ser humano na direção do seu desenvolvimento. Para isto, porém, seria necessário não só vivê-los intensamente como compreender o papel que poderiam desempenhar como fonte de inspiração para realizações. Seria algo assim como se nos entregássemos a uma grande paixão, a uma boa obsessão. De qualquer modo, pela carga afetiva e emocional que neles se junta, os complexos, pela autonomia que podem adquirir, sempre nos colocam numa situação passiva.


GEORGE  S.  VIERNERCK
Para uma melhor compreensão do que aqui se coloca, entendo oportuno fazer referência a um trecho de uma entrevista concedida por Freud, em 1930, na Europa, ao jornalista germano-americano George Sylvester Viereck (Glimpses of the Great). Viereck, em determinado momento da entrevista, pediu a Freud que se manifestasse sobre a impressão dele, repórter, de que a psicanálise despertava em todos os que a praticavam o espírito da caridade cristã e de que nada existia na vida humana que a psicanálise não pudesse compreender. A reação de Freud veio pronta e firme: Compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento. Mais: Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização são alemãs. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito antissemita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.

O repórter se surpreendeu, pois, como disse, achava que, mais do que qualquer outra pessoa, Freud, o criador da psicanálise, não estaria sujeito a sentimentos como os que expressava. O repórter então concluiu, dizendo que ficava contente por saber que ele demonstrava assim seus sentimentos, seus complexos, de que ele, assim o fazendo, se mostrava um ser humano mortal e não uma espécie de divindade olímpica. Encerrando a conversa, Freud então arrematou: Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com frequência são também a fonte de nossa força.


PLATÃO
Ao nos aproximarmos deste mundo dos complexos, não podemos esquecer o que Kant disse das paixões, um câncer da razão, e Platão, doença da alma. Nem do que Hegel nos deixou: nada importante se realiza na História sem paixão ou do que Balzac afirmou: A paixão é universal. Sem ela, a religião, a História, a arte e o romance não existiriam. E, para arrematar, o que Rousseau nos legou: É de se crer que as paixões ditaram os primeiros gestos e arrancaram as primeiras vozes... Não se começou raciocinando,
SPINOSA
mas sentindo. Para comover um jovem coração, para responder a um agressor injusto, a natureza dita acentos, gritos, lamentos. Eis aqui as palavras mais antigas inventadas, e eis aqui porque as primeiras línguas foram melodiosas e apaixonadas antes mesmo de serem simples e metódicas... Eis aqui como o sentido figurado nasce antes do literal, quando a paixão fascina os nossos olhos e a primeira noção que se nos oferece não é a da verdade. Por fim, Spinosa: A única liberdade possível se realiza através do conhecimento das próprias paixões.