domingo, 8 de janeiro de 2017

ERIDANUS, HYDRA




ERIDANUS é a maior constelação do céu, abrangendo um espaço enorme que vai de Cetus, A Baleia, passa por Orion e finalmente alcança as proximidades do polo Sul, mais ou menos na latitude de 60º. Em muitas culturas, pela sua importância, pela sua dimensão, pelo seu papel histórico, social e econômico, os rios adquirem um significado nacional ou mesmo transnacional. Muitos se confundem com o próprio desenvolvimento das sociedades onde os encontramos. Os nomes são sugestivos,  Ganges, Tigre, Eufrates, Nilo, Ebro, Reno, Tibre, Tejo, Sena, Pó, Amarelo, Mississipi, Yamuna,  Arno, Volga são exemplos significativos, grande parte deles formando o berço de muitas civilizações.

Os rios nunca foram considerados só como uma corrente de água estática. Seu fluxo,  suas enchentes e estiagens apontam para uma dinâmica que se confunde com a própria vida. Desde que o homem está na terra, os rios sempre foram usados como símbolos em mitos e religiões. A divisão entre
RIOS   DO   HADES
o mundo dos mortais e o Outro Lado é marcada normalmente por rios. A antiga tradição judaica divide a terra que envolve o paraíso em quatro quadrantes sinalizada esta divisão por quatro rios: Pison (Indus ?), Gihon (Ganges ?), Hiddekel (Tigris) e Euphrates. O Hades grego tem cinco rios: Aqueronte, Piriflegetonte, Estige, Cocito e Lethe. 


OCEANO
FONTANA    DI   TREVI
A primeira ideia de rio que aparece na Mitologia grega é a de Oceano (rodear, circular, em grego), um imenso rio-serpente que cercava a terra, estendendo-se de norte a sul e de leste a oeste, demarcando as fronteiras do globo terrestre. Além dele, o Outro Lado, que começava pelo país dos cimérios, que ficava no extremo ocidente. Oceano era o mais velho dos titãs, filho de Urano e de Geia; unindo-se a Tétis (simbolo da fertilidade das águas), gerou mais de três mil rios, nascentes, lagos e as ninfas oceânidas.

Os antigos gregos sacrificavam touros, cavalos e carneiros para honrar os rios, devidamente divinizados, participando eles de muitos mitos, rios como o Aqueronte, o Aqueloo, o Céfiso, o Scamandro e o Eridanus. Assim como os mares, constantemente em movimento, os rios participam da simbologia da fertilidade, da morte e do renascimento pelo seu eterno fluir, lembrando a sua chegada aos
RIO   GANGES, DESCENDO A MONTANHA 
oceanos o retorno à indiferenciação. Os rios, na antiguidade grega, inspiravam veneração e crença, só podiam ser atravessados depois de observados determinados ritos purificação e feitas certas preces. Os rios, descendo as montanhas, brotando de grutas, atravessando vales, precipitando-se em lagos, fundindo-se com outros, acabaram por se constituir na imagem da própria existência humana

Eridanus (colina, pequeno monte e também túmulo, em grego) é um dos numerosos filhos do deus Oceano e de Tétis. Participa do terceiro trabalho de Hércules (a busca dos Pomos de Ouro no Jardim das Hespérides). Uma outra história, diretamente relacionada com Eridanus, é a de Faetonte, da qual participa o deus Hélio.




Hélio, filho de Hiperion (o que contempla do alto, em grego) e de Teia (a divina), é o Sol sob o ponto de vista físico. É um titã, tendo por irmãos Eos (Aurora) e Selene, a Lua (sob o ponto de vista físico). Unindo-se a Perseis, uma oceânida, tornou-se pai de Circe, a maga; de Eetes, rei da Cólquida; Pasífae, rainha de Creta, esposa de Minos; e de Perses, que passa por ser o pai de Hécate, deusa triforme do mundo infernal. Relacionando-se Hélio com outra oceânida, Clímene, tornou-se pai das Helíades e de Faetonte. Com Rodos, ninfa da ilha de Rodes, foi pai dos Helíades, renomados astrólogos.

Hélio era antropomorfizado como um jovem de grande beleza, cabeça sempre aureolada, de onde emanavam raios. Para se movimentar com grande velocidade pelo cosmos usava sempre um
EOS
carro de fogo, às vezes uma taça, à guisa de barca, puxada por quatro cavalos, Pírois (fogo), Eóo (luz), Éton (chama) e Flégon (brilho). Sua chegada todas as manhãs era precedida pelo carro da deusa Eos (Aurora).  Ao final das tardes, mergulhava com seu carro no oceano, acalmando os seus animais. Pernoitava num palácio de ouro, recomeçando na manhã seguinte a sua trajetória. No mito, foi sendo aos pouco suplantado por Apolo, divindade da terceira dinastia, vencedora dos titãs, não perdendo, porém, a prerrogativa de ser considerado o “Olho do Mundo”, o que tudo via.

O nome do nosso herói, Faetonte, vem da palavra grega phaeton, brilhante. Foi educado pela mãe sem saber que era filho do deus Hélio. Só quando adolescente teve conhecimento de sua paternidade. Desde a infância sofrera muito, sendo ridicularizado, por não saber declinar o nome do pai. Revelado o nome paterno e desejando calar para sempre os que o maltrataram, pôs-se a
AS   METAMORFOSES
caminho para encontrá-lo, muito ansioso. Quem narra essa história é Ovídio nas suas Metamorfoses. Encaminhou-se então o jovem para o extremo oriente, aproximando-se do majestoso palácio do pai, todo em ouro, com portas de prata e aplicações de marfim. O pai estava sentado num trono de esmeralda, resplandecente. À direita e à esquerda encontravam-se as Horas, os Dias, os Meses, os Anos, os Séculos e os Milênios, cada um ocupando o seu espaço. Apropriadamente vestidas, por perto, moradoras no palácio, as quatro estações, a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno. 



AS   QUATRO   ESTAÇÕES  ( A. M. MUCHA , 1860 - 1939 ,  PRAGA )

Hélio reconheceu o filho, abraçou-o efusivamente e para sacramentar o reconhecimento, antes de qualquer palavra, jurou, em nome das águas do rio Estige, atender tudo o que ele lhe pedisse. O jovem, sem titubear, pediu que o pai lhe emprestasse por um dia o carro puxado pelos cavalos alípedes com o qual viajava pelos céus. No mesmo momento em que ouviu o pedido do filho, logo o arrependimento o tomou inteiramente, pois não poderia voltar atrás, pois juramentos divinos feitos em nome do rio Estige eram irrevogáveis. Hélio descreveu então ao filho os perigos a que ficaria sujeito. Se levasse o carro acima da eclíptica, certamente se chocaria com os astros, se abaixo, com a Terra. Qualquer descuido na condução do carro, a ordem cósmica seria fatalmente perturbada, com consequências catastróficas, sem dúvida. Hélio lembrou-lhe o exemplo do infeliz Ícaro, quando tentara escapar de Creta.

Hélio observou ao filho que nem Zeus se atreveria a conduzir o carro solar. Eis uma parte do seu discurso ao jovem, segundo Ovídio: Supõe que eu te entregue o carro. Que farás? Poderá enfrentar a rotação dos polos, para não seres arrastado pelo eixo movediço? Por acaso imaginas que há no céu bosques, cidades dos deuses e templos repletos de oferendas? O caminho solar avança entre ciladas e animais ferozes. E mesmo se o seguires sem errar terá de enfrentar os chifres do odioso Touro, o ardor de Sagitário, a boca do feroz Leão, o Escorpião com os seus ferrões recurvados e o Caranguejo, também de ferrões recurvados, mas num outro sentido. Quanto aos quadrúpedes, animados por um fogo que têm no peito e que soltam pela boca e pelas narinas, conduzir os cavalos não te será fácil. Mal me obedecem, com aquele seu vigor fogoso e mal suportam o freio. Cuidado, meu filho, para que eu não preste um favor funesto e, já que ainda é tempo, muda de ideia.

De nada valeram as ponderações de Hélio. Pela madrugada, quando Eos  já abrira as portas do oriente para a luz, Faetonte subiu no carro do pai e partiu numa alucinada carreira. Os cavalos logo perceberam que Hélio não estava no comando. Aumentado a velocidade, Faetonte, ao subir, estava pondo em risco os astros. Nos rasantes que dava, incendiava a Terra. O carro se chocava com as estrelas, as nuvens se inflamavam, cidades e bosques na Terra se incendiavam. Faetonte na sua corrida louca ia deixando um rastro de destruição e de dor. 


FAETONTE  ( NICOLAS  BERTIN )

Geia, a Grande-Mãe, ressequida até as entranhas, não suportando mais as agressões a que estava sendo submetida, pediu a imediata intervenção de Zeus. Atendendo-a, reverente, o Senhor do
NÁIADES   CHORAM    FAETONTE
Universo, do alto do Olimpo, lançou a sua infalível arma, que abate os orgulhosos e os inconsequentes dominados pela
hybris. Faetonte despencou com o carro solar, que se espatifou em chamas nas águas do rio Erídano. As Náiades da Hespéria recolheram o cadáver do jovem, dando-lhe sepultura. No túmulo, colocaram a seguinte inscrição: Aqui repousa Faetonte, condutor do carro paterno, ao qual se não conseguiu conduzir, ao menos pereceu em gesta gloriosa.

Hélio, cheio de dor, deixou a Terra sem luz no dia seguinte. As Helíades, irmãs do jovem, choraram tanto junto à sua sepultura, às
ÂMBAR
margens do rio, que foram metamorfoseadas pelos deuses em choupos e as suas lágrimas em fragmentos de âmbar. Os choupos são, como sabemos, árvores funerárias que lembram sempre as forças regressivas que atuam na natureza, trazendo-nos mais lembranças que esperanças, falando-nos mais de tempos passados que de
CHOUPOS
renascimento. Já o âmbar (electron, em grego) simboliza o fio psíquico (sutratma para os hindus) que une a energia individual à energia cósmica, a alma individual à alma universal. Apolo, por exemplo, depois de ter fulminado os Cíclopes, foi banido do Olimpo por Zeus, vindo para o seu exílio terrestre. Saudoso do mundo olímpico, chorava, transformando-se suas lágrimas em gotas de âmbar. Segundo a tradição, o âmbar (na realidade, resina fossilizada de árvores coníferas que datam de milhões de anos, especialmente da região do mar Báltico) sempre foi usado na joalheria. Nas regiões do Mediterrâneo, o âmbar era considerado um amuleto poderoso, sendo muito usado contra assombrações e espíritos demoníacos. Astrólogos gregos associavam o âmbar ao planeta Mercúrio. É também símbolo de atração solar, espiritual, divina. 

QUEDA  DE  FAETONTE
( JOHN  LISS , 1597 - 1631

A história de Faetonte, o seu mergulho no Eridanus, simboliza a precariedade da existência, fala-nos do que ela tem de efêmero, de transitório, e também da indiferença que comanda o vir-a-ser das coisas do mundo. Tudo flui, tudo retorna à indiferenciação e tudo retorna.  


Na tradição grega, entre os antigos astrólogos, a queda de Faetonte no rio Eridanus teria sido a tradução mítica de um fenômeno (queda de um meteoro) que causou um remoinho (zalos), cujo efeito é conhecido como precessão (movimento de recuo dos pontos equinociais). Na Física, a precessão, como sabemos, acontece quando um corpo rígido se movimenta em torno do seu eixo de rotação sujeito à ação de um sistema conjugado externo. 



Eridanus se estende de 15º de Peixes a 0º de Gêmeos. Para Ptolomeu, as suas influências são saturninas. Há, com elas, propostas das virtudes superiores do planeta, erudição, gosto pelo conhecimento, por longas viagens, possibilidade de conquista de posições de autoridade; há, porém, riscos de acidentes no mar, afogamento. As principais estrelas de Eridanus, por ordem de importância, são Achernar, Cursa, Zaurac e Azha. A primeira, alfa, de 1ª magnitude, é a única importante astrologicamente; está hoje a 14º31´ de Peixes. O nome vem do árabe, Al Ahir al Nahr, O Fim do Rio, a 32º do Polo Sul. As influências jupiterianas (religião, atividades sociais e beneficentes) dentro desta constelação ficam por conta de Achernar, estrela representada muitas vezes por um querubim armado. Para os judeus, um querubim (palavra que significa jovem) com uma espada de fogo na mão guardava a entrada do Éden para impedir que o homem tentasse a ele voltar. Os querubins simbolizam proteção, guarda, vigilância combativa. Quando os homens se mostram infiéis, os querubins voltam-lhes as costas, significando isto a ira de Deus e o prenúncio de calamidades. 

ANJOS
Lembremos que os querubins são encontrados em várias tradições antigas. No Egito, eram figuras aladas, com o corpo coberto de olhos (vigilância),  oniscientes e onipresentes. Entre os persas, babilônicos e assírios desempenhavam funções semelhantes; postavam-se à porta dos templos com a função de guardar tesouros. Simbolizavam sempre dignidade, altas posições, glória. Na hierarquia celeste dos anjos, há três Ordens, subdivididas em três Coros. Os querubins, na primeira ordem e primeiro coro, ficam abaixo dos serafins e acima dos tronos. Sentam-se eles ao pé de Deus, numa proximidade superior à de quaisquer outros anjos e santos. Os querubins, além da função de vigilância que exercem, são encarregados da difusão da sabedoria que permite a recepção dos mais altos dons espirituais.  

Para os antigos, o Eridanus era o rio da vida, o rio que fazia a ligação com a Via Láctea (21º de  Gêmeos-1º de Câncer a l2º de Sagitário-21º de Sagitário), ou seja, o rio que “tira” do sistema solar e põe em contacto com a Galáxia, que leva do terrestre para a imensidão do Grande Todo. Além do mais, é preciso lembrar que Eridanus, que faz a ligação entre o quarto e o primeiro quadrantes, cobrindo boa parte deste último, “traz” para ele influências saturninas (Saturno rege o quarto quadrante) e, por Achernar, jupiterianas, influências que deverão ser consideradas para cada caso, segundo o quadrante por ela coberto.





HYDRA - Esta constelação é também conhecida como A Serpente, tendo sido considerada aparentemente por várias culturas de maneira muito diversa. Contudo, se nos detivermos um pouco mais no seu exame, veremos que, no fundo, todas as suas representações se assemelham bastante. Os gregos, por exemplo, a viram como o monstro marinho que atacou a nau Argo quando da viagem de Jasão e de seus companheiros  à Cólquida. 


VELOCINO   DE   OURO
Ainda segundo a tradição grega, dentro da mesma história dos argonautas, a Hydra não representava esse monstro, mas o dragão que guardava o velocino de ouro no bosque consagrado ao deus Ares. O velocino de ouro é a pele de um carneiro divino que, pelos céus, para salvá-las, transportou duas crianças, Frixo e Hele, da Grécia à Cólquida. O primeiro chegou ao seu destino, Hele, porém, no meio da viagem, caiu no mar e morreu. Sacrificado o animal divino na Cólquida, sua pele (tosão ou velocino), como um precioso tesouro, passou a ser guardada pelo mencionado dragão. 

KIRON   E   AQUILES
A história de Jasão tem origem numa reivindicação que ele, depois de recebida  a devida iniciação pelo centauro Kiron, fez chegar a seu tio, usurpador do trono de Iolco. Pélias, o tio, expulsara e mandara para o exílio o rei Esão, pai de Jasão. Diante de Pélias, o jovem alegou que, por direito, o trono lhe cabia. Pélias concordou com a pretensão do jovem; ceder-lhe-ia o trono desde que ele lhe entregasse o famoso velocino de ouro que estava na Cólquida, guardado por um pavoroso dragão.

Com o auxílio de Palas Athena, Jasão conseguiu recrutar um grande número de heróis e príncipes gregos para, sob seu comando, participarem de tão perigoso empreendimento. Mais de cinquenta se apresentaram. Chegando à Cólquida, Jasão expôs ao rei Eetes as razões de viagem. Para a obtenção do velocino de ouro, Eetes  impôs quatro provas a Jasão, provas julgadas pelos seus companheiros de impossível realização por qualquer ser humano. A primeira prova consistia em pôr o jugo em dois touros bravios, presentes do deus Hefesto a Eetes, touros de patas e cornos de bronze, que lançavam chamas pelas ventas, e atrelá-los a uma charrua de diamantes; a segunda, lavrar com eles uma vasta área e nela semear os dentes do dragão morto pelo herói Cadmo, na Beócia, presente de Palas Athena; a terceira, matar os gigantes que nasceriam desses monstros; a quarta, e mais perigosa, eliminar o dragão que guardava o velocino de ouro.



O mito nos conta que a filha do rei Eetes, Medeia, feiticeira como a tia Circe, a maior das magas, assim que viu Jasão apaixonou-se por ele, comprometendo-se a ajudá-lo, a superar todas as provas, o que de fato aconteceu. As provas, uma a uma, foram sendo vencidas pelo nosso herói. Na última, a magia de Medeia fez o dragão adormecer e Jasão o atravessou com a sua espada, matando-o. O dragão da Cólquida era filho do maior dos monstros da Mitologia grega, Tifon, e de sua irmã e mulher, Équidna, a Víbora, e, portanto, irmão de outros tantos monstros como Ortro, Cérbero, Hydra de Lerna, Quimera, Fix, Leão de Nemeia e Ládon. 

Uma das melhores ilustrações que os gregos nos deixaram sobre a Hydra está no oitavo trabalho de Hércules, discutido neste blog, que, em muitos aspectos, complementa o que aqui se fala sobre a
HÉRCULES   E   A   HYDRA   DE   LERNA
constelação da Hydra. Nele, nosso herói enfrenta e vence esse pavoroso monstro que vivia num pântano, em Lerna. Na maior parte das civilizações, a greco-romana, a indiana, a persa, a germano-escandinava
 e outras,  observe-se, uma das mais importantes missões dos seus heróis é a de matar monstruosas serpentes, seres dracônticos, sejam ele terrestres ou marinhos, nos seus mais diversos papéis, como símbolos da imortalidade, da energia universal, dos ciclos de sua manifestação, da sexualidade, como animais psicopompos, como representante da vida inconsciente. Na serpente, simbolicamente, se juntam várias expressões da energia psíquica subconsciente do homem que pode, ao se manifestar, em razão de sua ambivalência, assumir aspectos negativos (terror, angústia, morte) ou positivos (propriedades curativas e salvadoras).      

Outra versão nos conta que a constelação da Hydra foi revelada ao mundo de então pelos armênios, segundo uma imagem que haviam
TIAMAT
recebido dos urartianos, um povo que viveu às margens do Mar Negro (região sudeste). Desde 3.000 aC que se tem notícia desse povo, vencido pelos armênios por volta de 700 aC. Numa descrição do céu (uranografia) encontrada numa pedra, aparecia a Hydra, que, segundo a tradição dos urartianos, era o grande vórtice por onde seria possível entrar em contacto com Tiamat, o grande monstro da mitologia mesopotâmica, símbolo das forças caóticas, representado pelo oceano primordial. 


GANGA
Algumas histórias que nos vieram da Índia contam que a constelação a que no ocidente se dá o nome de Hydra é uma representação do monstro enviado por Jalandhara, nascido da união da deusa Ganga (rio Ganges) com o Oceano. Jalandhara era uma espécie de titã (asura), poderosíssimo. Quando do nascimento de Jalandhara, os três mundos tremeram. Em virtude de intensas práticas ascéticas, ele adquiriu enormes poderes. Sobrevoava os oceanos, os maiores peixes e aves a ele se submeteram, gostava de caçar leões, que dominava com extrema facilidade. O próprio deus Brahma se assustou com o seu poder. Um dia, Jalandhara resolveu enfrentar os deuses com o objetivo de destroná-los e de impor uma nova ordem cósmica. Para tanto, enviou um monstruoso dragão para atacar o deus Shiva, a terceira pessoa da trindade divina, que tinha por função a destruição que levava à regeneração das formas universais. 

RAHU
O mensageiro de Jalandhara chamava-se Rahu, grande dragão, que às vezes tomava uma negra e gigantesca forma humana, que aparecia sempre montado num enorme leão. Era também um asura como Jalandhara. O monstro tinha a incumbência de produzir um fenômeno celeste até então desconhecido, um eclipse lunar. Quando da criação do universo, Rahu ingerira um pouco do elixir da imortalidade (amrita), tornando-se imortal. A Lua, como sabemos, é a depositária do famoso elixir, como Soma. O Sol (Ravi) e a Lua (Soma ou Chandra) avisaram os deuses. Agindo prontamente, Vishnu, com um golpe de espada, cortou o pescoço de Rahu. Como a bebida passara pela boca e pela garganta do monstro, estas se tornam imortais, formando-se, do outro lado, na extremidade do corpo seccionado, uma cauda. A cabeça, ávida por outro gole do elixir, percorre os céus desde então à procura da taça de Soma, a Lua. Os eclipses acontecem quando Rahu a encontra, ocasião em que ingere um pouco da bebida. Mas como ela não alcança o estômago, o líquido ingerido se perde. Eternamente torturado pelo desejo de obtê-lo de novo, o monstro recomeça sempre a sua eterna perseguição à Lua. 

Qualquer que seja a versão que abordemos, o que se depreende é que todas são ilustrações desta constelação são uma projeção, nos céus, pela humanidade, da serpente como um de seus grandes
SERPENTE
arquétipos.  A serpente, nas suas características mais primárias e imediatas, tem relação com o mundo subterrâneo, com a morte, com o renascimento, com a vida subconsciente, com o mundo feminino, no que ele tem de tentacular, temível, ligado à figura materna. Fisicamente, a serpente é o oposto do ser humano. Não tem pés, mas se move com espantosa rapidez; seu corpo é uno, íntegro, não tem partes e complicações como o dos humanos. Não tem pelos nem penas,  é fria, ovípara.

URÓBORO
Na serpente, o caos e o cosmos coincidem, razão pela qual o homem criou o uróboro, o monstro que engole a própria cauda, uma representação da vida como repetição sem fim, uma representação que se confunde com o próprio círculo zodiacal. É neste sentido que o corpo da serpente é a grande metáfora do ciclo do eterno retorno. É por essa razão que a serpente simboliza no ser humano aquilo que ele menos controla em si mesmo, aquilo que para ele é mais misterioso, obscuro, incompreensível. A serpente é um desmentido da individualidade do ser humano, da ilusão da sua verticalidade como signo distintivo com relação aos demais seres do universo. Na serpente tudo é simples, direto e objetivo. Tudo nela é funcional. Nada é acessório, supérfluo ou ornamental, tudo está organizado para lhe dar a maior eficiência nas funções que lhe são próprias e que desempenha com domínio perfeito. Tudo muito diferente se a compararmos ao ser humano, que, risivelmente, se orgulha da sua racionalidade, como o fim de um processo genético evolutivo, desmentida a sua racionalidade a cada momento da sua dolorosa existência.

Na perspectiva do que acabei de expor é que a Astrologia hindu (Jyotish), a que melhor explica este arquétipo, associa a serpente aos mitos cosmogônicos da Índia. A grande Hydra para os hindus é Sesha, conhecida como Sesha-Naga, divindade tutelar das regiões
VISHNU  E  LAKSMI  NA  SESHA-NAGA
infernais conhecidas como Patala. Sesha é representada como uma serpente monstruosa com mil cabeças, formando ela o leito e o dossel de Vishnu quando ele descansa durante o intervalo entre uma criação e outra. Em muitas representações, aparece como sustentáculo do universo criado, uma espécie de ancestral mítico, sendo, por isso, responsável pelos abalos e tremores que a Terra suporta. No fim de cada kalpa (período cósmico), Sesha vomita um fogo venenoso que destrói toda a criação. Quando os deuses resolveram criar o universo, Sesha foi usada como instrumento (uma forma espiralada à volta do monte Mandara) para batimento do oceano primordial, a fim de que as terras emergissem. Sesha é às vezes chamada de Ananta, A Infinita, como símbolo da eternidade.




DEUSA   MÃE   DO   EGEU
A serpente e a mulher sempre apareceram associadas nas religiões e nos mitos. Ambas se ligam às águas, à terra e às suas profundezas, estando na base de tudo, sendo portanto causais e atemporais. A serpente é alma e libido (kundalini) ao mesmo tempo. Nas civilizações do mar Egeu encontramos, em Creta, na antiguidade, o culto da adoração das serpentes pelas mulheres.    
                                                                              Não é também por 
CIRCE
( J.W. WATERHOUSE )
outra razão que muitas divindades femininas gregas, monstruosas, têm serpentes no lugar cabelos, as Erínias, a Medusa, as Keres etc. O encantamento de serpentes tem as suas maiores sacerdotisas em Circe e Medeia. Cleópatra, lembremos, era chamada de A Serpente do Nilo. A história de Laocoonte, sacerdote de Apolo Timbreu em Troia, e de seus filhos, mortos por serpentes,  é outra ilustração do tema aqui desenvolvido.  

Os judeus ligam a serpente à inveja. Na tradição judaica, a serpente bíblica era o rei dos animais, muito astucioso, que falava e que caminhava ereto sobre duas pernas. Percebeu que os anjos tratavam
ADÃO  E  EVA ( RAFAEL )
Adão muito bem e, por isso, teve ciúmes dele. A inveja tomou totalmente o seu coração quando viu Adão e Eva se relacionando sexualmente. A tradição bíblica nos revela que por instigação de Samael, o príncipe das trevas (Sitra Achra), a serpente persuadiu Eva a não só comer o fruto proibido como a seduziu, unindo-se a ela, nela injetando a sua peçonha. Por causa dessa relação, os descendentes de Eva também têm a peçonha em seu corpo (pecado original). Essa peçonha só foi removida do povo de Israel quando recebida a Torá. Os gentios, porém, segundo os judeus, nunca conseguiram se ver purificados da peçonha da serpente. 

Em todas as latitudes e longitudes, a serpente é sempre a personificação de um poder misterioso, de vitalidade e de força infinitas. Nas tradições populares, folclóricas, no interior Brasil, uma serpente cortada ao meio será sempre duas serpentes. Consta também para essa tradição que jamais ela será encontrada morta, insensível ou incapaz. Só morrerá se a matarem. Tanto simboliza o
ANEL  
Mal como a Sabedoria. Traços mais ou menos evidentes de ofiolatria são encontrados no mundo todo. Divindades ofioformes aparecem como protetores das fontes, de lagoas e lagos, representando a fecundidade da terra, da sua força geradora, dos segredos herméticos, do infinito. Como motivo religioso e artístico, vivem em ânforas, moedas, medalhas, esculturas, camafeus, baixos-relevos etc. 

Símbolo diabólico, da tentação do mal, é o único animal que pode resistir às fórmulas exorcistas católicas (Adjuro te, serpens antiqua). Do mundo ibérico veio para as Américas (Brasil especialmente) a história de que a serpente, quando entra na água, deixa o veneno em terra, não produzindo mal algum se picar alguém dentro da água. Quanto à mulher, dizem-nos as tradições populares, se estiver em estado interessante, ainda que picada pela serpente em terra, nada sofrerá a mulher. Deus preserva a mulher do perigo para que não morra com ela o inocente pagão que traz nas suas entranhas.  

SÃO  BENTO  ( FRA  ANGELICO )
Mais da tradição popular: a mulher que, ao se encontrar com uma serpente, virar o cós da saia, dizendo: estás presa por ordem de São Bento, que é o advogado contra os ofídios, imobiliza-a, deixando-se a serpente matar sem resistência. Como diz a lenda, os ofídios e os animais daninhos são de criação demoníaca. Quando Deus, ao quinto dia da criação do mundo,  fez os animais domésticos, e todos os répteis da terra, cada um segundo a sua espécie (Gênesis), Satanás, invejoso dessas maravilhas, pediu-lhe licença para fazer também os seus bichos. Anuindo Deus ao seu pedido, abusou o Anjo Mau da graça concedida, e criou os ofídios e todos os animais daninhos e nocivos ao homem. 





A constelação da Hydra é a mais larga do céu (10ºN-36ºS), permanecendo com a mesma configuração desde tempos pré-históricos, não tendo sofrido nenhuma alteração desde essa época. Estende-se de 5º de Leão a  23º de Escorpião. Para Ptolomeu e para a maior parte da tradição astrológica, Hydra atua através de influências saturninas e venusianas, o que evidentemente é incongruente quando todos os registros nos falam muito mais de influências marcianas: envenenamentos, mordidas venenosas, raiva, ataques, picadas, maus tratos de mulheres etc. Realçada a constelação num mapa astrológico, podem aparecer, não com a ênfase das influências apontadas, desejo de conhecimentos superiores e alguma habilidade artística, musical. 

Sua principal estrela é Alphard, alfa, de 2ª magnitude, a 26º 35´ de Leão, conhecida como Cor Hydrae (O Coração da Hydra). O nome em árabe é Al Fard al Shuja (A Solitária). A influência desta estrela é nitidamente marciana, lembra crime violentos, falando-nos tanto de agressores como de vítimas, de explosões emocionais, de sentimentos fortes, de energias intensas, que podem, contudo, dependendo da sua posição e relações,  tomar um caminho menos
WILLIAM   BLAKE
conturbado e até evolutivo, lembrando muito Algol. Um exemplo desta última hipótese pode ser encontrada num tema como o de William Blake (Alphard ascendendo e Júpiter, dispositor e em conjunção com o Sol, indo em direção do Nadir. Outro mapa poderia ser o de Agatha Christie, uma escritora de romances policiais, onde temos Alphard ascendendo e se encaminhando para o zênite.