domingo, 8 de novembro de 2015

A TRAGÉDIA GREGA

         

O   TRIUNFO   DE   BACO   ( CORNELIS   DE   VOS )

As festas do vinho em homenagem ao deus Dioniso, na Ática, estão nas origens da tragédia. Dioniso, como Baco, em meio a cantos e danças, vinha com o seu cortejo barulhento de sátiros, silenos e mênades. Nessas festas representava-se o drama do menino-deus Zagreu, que fora devorado na forma de um bode, para tentar escapar da fúria dos titãs. Entoava-se então o canto do bode (oidé, canto+tragos, bode). Essa história, a do sacrifício de um bode, símbolo da força vital, encontrada em várias tradições, é praticamente universal; ela serviu de base para que o ser humano projetasse a sua culpa sobre um outro e acalmasse a sua consciência, que sempre tem necessidade de um responsável, de um castigo e de um culpado. É o tema do bode expiatório.

Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se nos campos a cada ano, na região de Atenas e em toda a Ática, a festa do vinho novo, em que os participantes bebiam muito, sempre cantando e dançando. Dessas festas, em homenagem ao deus, faziam parte certas representações dramáticas que acabaram por dar origem ao ditirambo, ao drama satírico, à tragédia e à comédia.


DITIRAMBO

A religião oficial da polis grega (Atenas) era aristocrática. Os deuses olímpicos atuavam para reprimir a hybris dos que tentassem ir além do seu métron. A meta da religião olímpica era a obtenção do conhecimento contemplativo (gnosis), a purificação da vontade para que o divino fosse recebido (khatarsis) e obtida a consequente libertação do ser para uma vida de imortalidade (athanasia). As principais divindades do mundo olímpico, inspirador da ordem aristocrática, eram Zeus, Apolo e Palas Athena.

Do outro lado, opostas, tínhamos as correntes religiosas voltadas para os mitos naturalistas, para os cultos agrários, do tempo cíclico, divindades da vegetação e da vida animal, que morriam e ressuscitavam. Dioniso era a principal delas. Ele era o deus da libertação, da orgia, do êxtase e do entusiasmo, que tinha na videira o seu maior símbolo. Seu culto logo se tornou popular, sendo considerado como o deus dos deserdados, dos que não tinham vez na polis aristocrática, as mulheres, os metecos, as crianças e os escravos. Ele fazia parte de um grupo de divindades que lembrava a morte, a catábase, a viagem infernal, e o renascimento. 

APOLO
O choque entre as duas concepções era violento. A aristocracia se sentiu ameaçada, com as suas divindades olímpicas. Apolo era a harmonia, a luz, o controle das pulsões. Dioniso era o contrário, propunha a libertação das interdições, era a transgressão, a supressão dos condicionamentos, a transformação, a grande divindade das metamorfoses. O ekstasis dionisíaco era uma espécie de superação da condição humana. O simples mortal tornava-se um aner, uma espécie de herói, ultrapassava os limites do seu metron, tornava-se um outro. Um exemplo disso eram as mênades, sacerdotisas do deus, as bacantes, as “possessas”, também chamadas de “furiosas” ou “impetuosas”, que chegavam ao delírio possuídas por Dioniso. 

Tudo isto era para a religião olímpica a hybris, uma desmedida, uma violência, uma ousadia, que provocava inevitavelmente uma reação divina, o ciúme divino, a nêmesis. O homem comum, como um herói, ultrapassado o metron preconizado pelos cultos apolíneos, tornava-se um êmulo dos deuses, rompia com a tutela olímpica e naturalmente com os controles sociais por ela impostos. A punição era imediata. Os deuses lançavam contra ele a anoia, a loucura, personificada muitas vezes pela deusa Até, o erro; tudo o que ele fizesse então nesse estado seria realizado contra si mesmo. A Ananke (conceito religioso-filosófico que lembra reposição de limites) intervinha através de várias divindades femininas, como as Moiras e sobretudo como as Erínias (Fúrias), deusas do remorso, da consciência culpada.


ERÍNIAS

O quadro do elemento trágico se configura: o anthropos, que, através da orgia, do êxtase e do entusiasmo, ia além do seu metron, renascia para uma nova vida, o que sempre era perigoso para o poder da polis. No sentido contrário, conceitos e divindades que obrigavam o ousado herói a voltar, com muito sofrimento, inclusive a morte, aos limites que a ordem olímpica fixava, dos quais ele nunca deveria ter saído. Nêmesis (a que curvava os orgulhosos), Até (Erro), Anoia (Irracionalidade), as Erínias (Fúrias), as Moiras (Fiandeiras) entravam então em ação, para punir o ousado, o herói trágico.


MOIRAS   ( JOHN   STRUDWICK  -  1885 )

O Estado logo percebeu as relações entre a religião e o trágico, apoderando-se deste elemento, patrocinando-o, tornando-o um apêndice da religião oficial. Aristóteles (384-322 AC) será o grande teórico do trágico. Para ele, a tragédia é imitação (mimesis), com linguagem própria, de uma ação por meio de atores. Graças ao temor e à piedade, ela produz a purificação das emoções, mimesis e khatarsis, pois. No epílogo, ela produz compaixão e temor. Evidencia-se, segundo o ponto de vista da religião oficial e da polis, o erro (hamartia) do herói ou o seu equívoco. A desgraça que o atinge poderia atingir também qualquer um que ousasse. A tragédia se fixa aos poucos como uma forma teatral que se caracteriza pela representação de acontecimentos tristes, deploráveis, violentos. Seu alcance social tornou-se enorme. Seus personagens vinham, socialmente, de posições elevadas, muitos membros da realeza, da elite do poder. Por sua ousadia, por sua falta de consciência, por sua insensibilidade para com o divino, acabavam colhendo sempre em suas vidas alguma forma se sofrimento, de desgraça. O trágico era então o elemento que os obrigava a assumir mais lucidamente a condição humana.

Dentre os autores trágicos gregos, destacamos três, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, considerados os pais da tragédia grega, aparecendo cada um deles em três períodos distintos da história de Atenas, o da sua afirmação como a principal polis grega, o do seu esplendor (século de Péricles) e o de sua decadência, já perto invasão macedônica. 


ÉSQUILO
Ésquilo (Elêusis, 525-Sicília, 456 AC) – Das suas 90 peças, só 7 nos chegaram: As Suplicantes, Os Persas, Os Sete contra Tebas, Prometeu Acorrentado, A Orestíada (Agamemnon, As Coéforas, As Eumênides). É o fundador do teatro grego. Nele, o coletivo sempre supera o individual, a polis e os deuses sempre vencem. A fatalidade infalivelmente esmaga o homem, ao ultrapassar o seu metron. Mais ainda: a falta de um recai sobre todos, que gemem. Famílias inteiras são punidas pela falta de um dos seus membros. Eis a lição: sofrer para compreender. A tragédia-símbolo de Ésquilo é Prometeu Acorrentado. Prometeu é um titã, chamado pelos homens de Filantropíssimo. Do ponto de vista destes, um herói. Do ponto de vista divino, um criminoso, ao entregar ao humanos o segredo do fogo. Descendo dos céus à terra, o fogo se corrompeu, passando a ser usado tão somente para a produção de bens materiais.

Sófocles (Colono, 496-Atenas,406) – Pertence ao período mais brilhante de Atenas. De família rica, foi militar, mantendo relações com Péricles, Fídias, Heródoto e outros importantes nomes da vida ateniense. Muito aberto às ideias novas, acolheu-as. Sua técnica teatral era perfeita. Das 126 peças que escreveu, 72 foram vencedoras de certames teatrais. Só nos chegaram 7 peças dele: Ajax, Antígona, Édipo-rei, Electra, As Traquínias, Filocteto e Édipo em Colono. 

SÓFOCLES
Em Sófocles, o tema central é o da luta do herói contra a fatalidade, suas pressões psicológicas, glória ou perdição. O herói é o autor do seu próprio destino. Sófocles é o teatro “existencial”, que nos fala da “situação humana” e não da “condição humana”. Teatro antropocêntrico, os deuses agem à distância através de oráculos ou adivinhos. A fé está no individual e não no coletivo. Era o logos socrático iluminando o homem. Nele temos a catástrofe, a hybris relacionada com os fatos. Só os atos contam, teatro de krisis, de escolhas e de um ethos. Teve o poeta uma vida sentimental muito complicada. Algumas versões biográficas nos dizem que morreu assassinado por garotos de programa, como Pasolini. Seu apelido, “A Abelha Ática”, por sua enorme capacidade de trabalho. Inovou ao introduzir o terceiro ator, flexibilizando bastante o texto teatral. São dele também os cenários pintados. Elevou o coro de 12 para 50 participantes e definiu as tetralogias. Seus personagens oscilam, indo de extremos de alegria, à angústia, ao arrependimento. Sempre uma confrontação com o sofrimento e a pergunta: como aceitá-lo? Do pathos ao ethos. 

Édipo-rei é a tragédia-símbolo de Sófocles. Édipo é, como sabemos, o herói trágico por excelência e está na base da psicanálise moderna. Para ele, a frase de Freud: O importante não é o que você sabe, mas o que você não sabe.


EURÍPEDES
Eurípedes (Salamina, 484 – Macedônia, 406 AC) – Grandes os seus contrastes com Sófocles. Fechado, controvertido, polêmico, homem de lutas interiores. De origem humilde, teve, contudo, boa educação. Atuou como dançarino e portador da chama nos ritos de Apolo Zóstero. Fez carreira como atleta, indo depois para a pintura e para a filosofia (aluno de Anaxágoras). Dois casamentos desastrosos, três filhos. Famoso, como autor, pelo modo de tratar os personagens femininos. Viveu grande parte de sua vida numa caverna, em Salamina. Ganhou alguns prêmios literários, mas era comum ficar em último lugar nos festivais de Dioniso. Em 408 AC, emigrou para a Macedônia, passando a viver na corte do rei Arquelau. 

Dos três trágicos é o menos bem sucedido, mas, talvez, o mais aclamado nos séculos seguintes. Das 92 peças que escreveu temos 18, das quais 12 com nomes femininos. É dele também a única peça satírica que sobrou da Antiguidade, Os Cíclopes. É o mais trágico dos três; narrava os acontecimentos como  eram    e não como deveriam ser (Sófocles). A vida como ela é..., é frase dele. O nosso Nelson Rodrigues certamente se apropriou do mote. Por tudo isso, Eurípedes é o menos religioso dos trágicos gregos, o mais humano. Aplaudido por Sócrates, tinha simpatia pelos humildes e oprimidos. Descreveu as fraquezas, a covardia, o ciúme, a fúria, os demônios interiores do ser humano, sobretudo. Acreditava no indivíduo e era contra as soluções militares. Defendia a tragédia como praxis, ação, atividade. O homem sempre em conflito: de um lado, a escolha deliberada (proairesis) e de outro as paixões (pathos) que o vitimam.


Para Eurípedes, o cosmos não estava mais no mito, mas, sim, no grande cenário da vida humana. Promoveu a dessacralização do mito, a proletarização da tragédia. A tragédia não estava no Olimpo (Ésquilo) ou em Elêusis (Sófocles), estava, antes, nas ruas de

Atenas, nos seus mercados e becos escuros. O Eros, em Eurípedes, andava solto na força das paixões. Antes de Pascal, afirmou que o coração tem razões que a razão desconhece, como se pode perceber nas suas tragédias, em duas, especialmente, Medeia e de Hipólito. Sem dúvida, Eurípedes é o campeão da amargura ao romper com as tradições e apresentar as ideias novas dos sofistas no seu teatro. Por isso, ninguém tão longe de Platão como ele. É o filósofo da cena (scenicus philosophus). Tirou dos personagens as roupagens suntuosas, diminuiu a importância do coro, em seu teatro apenas um porta-voz do poeta para a intensificação da ação dramática. 

O teatro de Eurípedes se caracteriza sobretudo por nos mostrar personagens marcados por uma grande pathos, o que se deve acima de tudo á presença que nele tem  o Eros, ausente nos que o antecederam, como pulsão fundamental do ser humano, com toda a sua subjetividade. Eurípedes condenou a confusão mitológica, substituiu a Moira por Tyche (Acaso), a divindade do séc. IV, o período da decadência de Atenas. Uma de suas observações preferidas: Quem sabe se morrer não é viver e viver não é morrer? Para ele, o coração humano era o laboratório trágico por excelência. A mola da tragédia é, dizia, a hamartia, a expressão física da hybris. É, incontestavelmente, o poeta do declínio e da renovação da polis. O trágico, com ele, não vem de fora, está dentro, vem das regiões mal conhecidas do eu interior do ser humano. São dele Medeia, Hipólito, As Bacantes, Alceste, As Troianas, Ifigênia em Táuride, As Suplicantes, etc.


AS   BACANTES

Sua tragédia-símbolo é Medeia, grande personagem mítica, oriunda de uma família real da Cólquida, princesa, sobrinha da maga Circe. O nome, etimologicamente, lembra arquitetar, planejar (o mal). Como tragédia, Medeia é um dos maiores textos já escritos sobre o tema da paixão. Dentre os autores trágicos que vieram depois, só Racine chega perto dele. Ao fixar a imagem de Medeia para a posteridade, Eurípedes revolucionou não só a tragédia grega como o tratamento dado ao tema das heroínas gregas, algo cujo alcance parece nunca ter sensibilizado os estudiosos da psicologia feminina.

Os antigos gregos, no seu mundo aristocrático, apolíneo, como sabemos, faziam uma distinção entre a morte masculina e a morte feminina. A primeira era sempre gloriosa, pública, cheia de discursos, solene, heroica, viril. Já a da mulher era um reflexo do seu papel na sociedade grega. Sempre tutelada pelo pai ou pelo marido, vivia fechada no gineceu. Sua morte era sempre anônima, pois o papel que lhe cabia era o de levar uma “vida exemplar de esposa e mãe ao lado do marido”, este sempre voltado para os seus afazeres de cidadão, fora de casa. Péricles registrou a História e recomendava, como Ajax o fez a Tecmessa, sua companheira, que as mulheres de Atenas observassem sempre o silêncio como virtude máxima.

O que estás acima sobre o silêncio da mulher não deve nos espantar se conhecido o modo pelo qual a sociedade ateniense visualizava as mulheres no período clássico da história grega. Em primeiro lugar, estavam as cortesãs, depois as concubinas e por fim as esposas. Ricas, cultas, recebendo a elite política, intelectual e artística de Atenas em seus salões, as primeiras eram para os prazeres do
PÉRICLES   E   ASPÁSIA
espírito e da carne, estes, é evidente, só para muito poucos, pouquíssimos, como é o caso da relação Aspásia-Péricles. As concubinas eram belas, famosas, peritas nas artes de Afrodite, mas nada de intelecto com elas. Em terceiro lugar, ficavam as esposas, fechadas no recesso dos seus lares, com as crianças, os escravos e os cães. Viviam no gineceu, em torno da lareira (fogão), raramente tendo acesso ao androceu, espaço privilegiado masculino, pouco saindo de casa. Das instituições gregas, no geral, só duas eram acessíveis às mulheres, aristocratas ou não, o casamento e a maternidade. 


Conforme nos informaram Heródoto (séc. V aC) e outros historiadores modernos da cultura grega (o sempre lembrado Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Nicole Loraux), só na literatura, na tragédia grega de modo especial, a mulher grega tornou-se dona de sua morte através do suicídio, algo muito diferente daquele modelo de morte que o machismo lhe havia imposto na vida real. As histórias de Dejanira, Eurídice (mulher de Creonte), Jocasta, Leda, Antígona, Fedra são exemplares nesse sentido. Não
FEDRA   E   HIPÓLITO
suportando as pressões a que se sentiram submetidas, optaram pelo suicídio, cada uma delas com a sua razão. Entretanto, mesmo que considerado como um ato de liberdade, seu suicídio, aos olhos do mundo masculino, foi sempre uma “morte feminina”, “impura”, porque desprovida de coragem. Por maior que fosse o desespero (apelpismos), o suicídio era sempre uma fuga, uma morte covarde, sem andreia (coragem), palavra cuja etimologia nos remete ao vocábulo andrós (homem) e à partícula a, indicativa de privação, ou seja, uma virtude só acessível aos homens.

É interessante notar que a palavra suicídio, como a encontramos em francês, espanhol, português e mesmo em inglês, é formada com elementos latinos: sui, de si mesmo, e cidium, morte, do verbo cadere, matar. Eurípedes usava a palavra autocheiros, de auto, eu mesmo, e cheir, mão, para designar aquele que eliminava a sua própria vida ou a dos próprios pais. Os mesmos elementos gregos formaram, em português, palavra autoquiria, completamente esquecida, para designar o suicídio.  


PERSEU   E   ANDRÔMEDA
  
Pois bem: é aqui que entra Medeia, como Eurípedes a fixou para nós. A princesa da Cólquida, embora pressionada e humilhada pelo machismo grego como jamais outra figura feminina da tragédia o fora, ainda que desesperada, ao invés da fuga, do suicídio, partiu para o ataque, invadiu o mundo masculino, matando e destruindo. Segundo uma versão mítica, Medeia foi transportada para a ilha dos Bem-Aventurados, onde se teria unido a Aquiles, o maior dos guerreiros gregos. Nada tão distante de Medeia como as heroínas acima citadas, como Fedra, sua tia, como Antígona ou Jocasta, que, todas, entregando-se ao desespero, optaram pelo suicídio. Com

Medeia, estamos bem longe de heroínas como Evadne, Leda, Alceste ou Andrômeda. A primeira destas quatro citadas, Evadne, era mulher de Capaneu, que aparece na tragédia Os Sete Contra Tebas; ela se suicidou quando viu o corpo do marido sendo incinerado numa pira. Amada por Zeus, Leda era mãe de Helena, Clitemnestra e dos Dioscuros (Castor Polideuces). Conforme Eurípedes nos conta, ela teria se enforcado por causa da má reputação de Helena. As duas últimas sempre foram consideradas pelo machismo grego como modelos, a primeira, como “a melhor das mulheres”, porque aceitou morrer em lugar do marido quando a morte veio buscá-lo. Andômeda é tida como símbolo do amor filial por entregar-se, no lugar dos pais, à morte, como bode expiatório, quando os deuses resolveram destruir o país em que reinavam devido à hybris da rainha Cassiopeia.