domingo, 16 de novembro de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - MARTE (3)


ARES


Ares, entre os gregos, é o deus da guerra, da violência, do enfurecimento. Seu nome, em grego, lembra infortúnio, desgraça. Filho de Zeus e Hera, no panteão grego ele e Afrodite eram as divindades mais distantes do Senhor do Olimpo, o que aponta para a sua origem estrangeira, ele oriundo da Trácia e ela oriental, mesopotâmica e fenícia.





Ares representava uma forma de energia ligada ao mundo guerreiro, à violência, à força bruta, algo nunca muito bem assimilado pelo mundo grego, principalmente no período clássico (sécs. V e IV aC), todo ele inspirado pelos princípios apolíneos, que nos falam de harmonia, de equilíbrio, de controle da vida instintiva, de espiritualização. 

Pelo seu aspecto, sempre armado, pelas suas companhias, sempre ruidosas, pelas suas antipatias e desavenças e pelas suas vilegiaturas, sua convivência olímpica era, com efeito, muito complicada. Os filhos de Ares eram, como ele, violentos, malfeitores, facínoras, salteadores, todos ímpios e cruéis. 


ERIS
Faziam parte do seu séquito, dentre outras, figuras sinistras como Eris, a deusa da discórdia; as Keres, as Devastadoras, sempre de negro, aladas, garras aduncas, entidades que definiam a morte dos guerreiros, além de depredadoras dos cadáveres nos campos de batalha; eram irmãs de Hipnos e de Thanatos. As Keres apareciam sempre nas cenas das batalhas e nos momentos de grande violência. Outra companheira de Ares era Enio, demônio feminino da guerra,
UMA   DAS   KERES
amante das carnificinas; é representada sempre coberta de sangue; passa às vezes por  mãe de Ares ou por sua ama; em Roma, toma o nome de Belona, deusa da guerra. Fobos (Pavor) e Deimos (Terror), gêmeos,  filhos que tivera com Afrodite, jamais se separam dele, pois a mãe nunca os reconheceu como filhos. Ares gostava muito de passar longas temporadas na Trácia, ao norte da Grécia, onde se divertia, participando de jogos militares, lugar de gente selvagem, briguenta,  de criadores de cavalos e de soldados mercenários. 


Consta de antigas tradições míticas que originariamente Ares era uma divindade ligada às tempestades, mais especialmente aos furacões. Aos poucos, estes sentidos se perderam, passando o deus a assumir um caráter bélico, aparecendo inclusive como deus dos conflitos nas relações humanas. Seus grandes prazeres nas batalhas eram a morte violenta e o massacre. Daí, a sua grande antipatia por Palas Athena, também deusa guerreira, mas considerada oficialmente como deusa da força guiada pela razão, das justas batalhas.

O lema de Ares era o da violência pela violência, não lhe interessando motivações éticas ou morais. Entregava-se totalmente ao impulso agressivo, sendo por isso às vezes ferido, já que se descuidava da sua segurança. Um exemplo do que afirmamos aqui está na guerra de Troia, quando tomou sob sua proteção o herói troiano Heitor e foi ferido por Diomedes, ajudado por Athena.


PALAS   ATHENA

Neste sentido, vexaminosa foi a sua captura por Otos e Elphiates, os Alóadas, gigantescos filhos de Poseidon e de Ifimedia, então casada com Aloeu. Irritados com Ares, que havia assassinado Adonis, grande amor de Afrodite, os gigantes conseguiram prender Ares num enorme vaso de bronze, que ali ficou por longo tempo até que Hermes o libertou. 


ALÓADAS   E   ÁRTEMIS

Ares, com o seu temperamento irritadiço, indispunha-se com frequência com os demais deuses olímpicos, principalmente com Palas Athena e com Hera. Zeus mal o suportava, vendo-o como um “mal necessário”. Era chamado, por isso, de mainomenos, isto é, louco, possesso. Somente Afrodite, com as suas artes amorosas, o acalmava.

HOPLITA  ESPARTANO
Gigantesco, esplêndido fisicamente, Ares usava sempre uma armadura de bronze e carregava a espada, a lança, o escudo e as cnêmides (polainas metálicas). Era o modelo do combatente de infantaria (hoplita), isto é, do soldado que combate a pé. Ares julgava indignos o arco e a flecha, de inspiração apolínea, chegando mesmo a considerá-los como arma dos covardes, pois os que os usavam evitavam o corpo a corpo, o contacto direto.   

Nas suas batalhas pessoais, porém, nem sempre se saiu bem. Hércules conseguiu feri-lo. Hefesto o ridicularizou. Seu culto era pobre em Atenas, sendo mais reverenciado em Esparta, polis militarizada, na Beócia e em Tebas. Era chamado pelos gregos, os de Atenas principalmente, de o “Deus das Lágrimas”, de “Bebedor de Sangue” ou de “Flagelo dos Humanos”. Sempre brutal e insensível, jamais se adaptou à Hélade. 

Positivamente, Ares era saudado como deus da primavera, protetor das colheitas (missão guerreira). Ainda segundo esse entendimento, era o vingador de todas as ofensas, principalmente as da violação dos juramentos. Favorecia a circulação da seiva na natureza. Suas festas se realizavam em março, na primavera, quando Sol ingressava na constelação do Carneiro (Áries). Era também o deus da juventude, guia dos jovens que emigravam em busca de uma outra vida nas terras novas. Dentre os seus atributos, destacamos uma tocha flamejante, sinal que, com a lança, carregadas por seus sacerdotes, significava o início de batalhas. Entre os seus animais temos o abutre, o carneiro, o lobo e o javali

O lobo, animal ligado à vida instintiva (primeiro nível do fogo, o signo de Áries na Astrologia), é um dos símbolos do poder destrutivo do Sol. Não é por acaso, aliás, que na mitologia celta o lobo representa Loki, o grande destruidor, gênio do mal. Este aspecto perigoso é evidenciado nos contos e lendas em várias tradições nas quais o animal personifica a ferocidade ou uma força que hipocritamente aparece como tentadora, a do sedutor masculino, ávida, destituída de escrúpulos, como no caso do Chapeuzinho Vermelho. É o lobo uma imagem arquetípica da libido descontrolada, representada muitas vezes por uma avidez oral, onde aparecem tendências egoístas, antissociais, violentas, virtualmente destrutivas do outro. Como a serpente e o urso, o lobo simboliza também a sombra, aspecto inconsciente da personalidade, cuja emersão pode ser perigosa pelas energias que desperta  e que ameaçam fazer a consciência submergir.


A ameaça da vida instintiva é uma constante no ser humano. O lobo foi um dos animais escolhidos para representá-la. Não é por acaso que o tema da licantropia é universal, a transformação do ser humano em lobo. Desde a antiguidade, aliás, o lobo sempre foi considerado um “animal fantasma”, bastando a sua visão para tornar as pessoas mudas, paralisadas. Na iconografia cristã, o lobo sempre apareceu como um símbolo das forças diabólicas que ameaçam o rebanho dos fiéis (os cordeiros). Só os santos têm o poder, graças à força do seu amor, de transformar a sua ferocidade em piedade (São Francisco de Assis).

Uma das imagens mais interessantes do lobo está na Alquimia. Os alquimista falam do lupus metallorum que devora o ouro para  “resgatá-lo”. Trata-se esta operação de um processo de purificação do ouro com a ajuda do antimônio, conhecido como o “lobo cinzento” nos laboratórios alquimistas. 


LABORATÓRIO    ALQUÍMICO

O antimônio, lembremos, na Alquimia simbólica, representa a última etapa de um ser no seu elã evolutivo. Esse metal tem a função a limpar as últimas impurezas do ouro antes dele atingir a perfeição. Estas impurezas têm muito a ver, como se pode concluir facilmente, com os aspectos da vida instintiva, que precisam ser controlados (não eliminados; não há ouro 100% puro) devidamente pelo antimônio. Quando julgávamos já ter conquistado o ouro da vida espiritual, eis que, sem que atinemos bem porquê, levanta-se um lobo dentro de nós e  se cometem os desatinos inexplicáveis.

Nesta etapa, a última, como os alquimistas sabem, da transformação do chumbo em ouro (nosso processo evolutivo), muitos falham (a maioria, todos?), não conseguindo controlar o seu lobo interior, embora pensem em tê-lo controlado. Ficam (ficamos) falando de vida espiritual, suas (nossas) emoções estão nela, mas não as suas (nossas) ações. Lembremos, a propósito, que na batalha pela instauração do reino do espírito, impondo-o sobre o reino da matéria e da vida animal, Zeus não conseguiu acabar com Tifon, o maior dos monstros...

Já o javali, como força brutal, que aparece na história de Adônis, é a forma que o deus Ares toma para assassinar o grande amor de Afrodite, deus da vegetação, um símbolo outonal. Adônis é assassinado no outono (desaparecimento da vegetação). A morte de Adônis, como o rapto de Kore, são alegorias de descidas infernais. Daí representar o javali a destruição, sendo, por isso, em muitas tradições, visto como emblema guerreiro. É considerado geralmente como um animal demoníaco pela sua impetuosidade (a devastação dos campos que provoca). Associado ao fogo (signo de Áries) lembra também o fogo das paixões.


VARAHA
Noutras tradições, como na celta, o javali é,entretanto, símbolo espiritual, no que lembra, pelos seus hábitos solitários, a figura do druida. Na Grécia, o javali, positivamente, faz parte de um conjunto simbólico (espiritual) ligado a Zeus no qual se incluem o carvalho, a águia e a trufa. Na Índia, Varaha, o Javali, é uma das encarnações (avatar) do deus Vishnu, segunda pessoa da trindade hinduísta, aspecto sob o qual o deus retirou a Terra das águas e a organizou. 

O carneiro aparece em muitos mitos associado à ideia de arrebatamento e de vitalidade sexual.         Como suporte simbólico,
representa as forças incontidas e criativas da natureza, o instinto de procriação que assume a continuidade da vida, inclusive o impulso agressivo. No Egito, por exemplo, Khnemu ou Khnum (fig. esq.), o deus da criação e da fertilidade, é representado com uma cabeça de carneiro. Na religião egípcia, o carneiro é um símbolo do poder fertilizador-gerador, tendo relação com todas as divindades que têm relação com a regeneração periódica da natureza. O deus Amon, por seu lado, costumava ser representado com chifres de carneiro. Diz a lenda que quando da conquista do Egito Alexandre Magno foi tomado por um enviado celeste, pois sua cabeleira parecia encobrir dois chifres de carneiro. 



Fogoso, indomável e poderoso, o carneiro faz parte das imagens de alguns deuses gregos, como a de Hermes Kriophoros e de Apolo Karneios. Quanto a Hermes, narra o mito que o deus livrou a Beócia de uma epizootia quando apareceu carregando um carneiro nos ombros. Quanto a Apolo, nessa forma, era muito honrado pelo militarismo espartano.


As tribos que invadiram a Grécia por volta do ano 1000 aC, os dóricos, trazendo a metalurgia do ferro, a pederastia como forma de educação militar e a nudez do atleta contribuíram bastante para que o culto de Ares ganhasse um novo impulso. Se os sacerdotes de
VELOCINO   DE   OURO
Delfos, oráculo de Apolo, foram os inspiradores do colonialismo grego, Ares foi o “executor” dessa política, fazendo o trabalho de campo, invadindo e ocupando várias regiões do Mediterrâneo e da Ásia Menor. A história dos argonautas, heróis gregos que foram à Cólquida (Ásia Menor) se apoderar o Velocino de Ouro é uma ilustração do que acabamos de dizer. Lembro que uma “atualização” cristã do mito dos argonautas aparecerá na Idade Média com o nome de a Busca do Santo Graal.



IXION

A descendência de Ares é responsável por uma lamentável crônica de violência e de crimes. Seus filhos, como se disse, lembram nesse sentido os de Poseidon. Flégias (inflamado), por exemplo, foi pai de Coronis e de Ixion. A primeira, amante de Apolo, o traiu, embora carregasse no ventre um filho dele, o futuro deus médico, Asclépio. Ixion, por seu lado, foi um dos grandes criminosos da mitologia grega, preso para sempre no Tártaro. Unindo-se a Nephele, a Nuvem, um simulacro da deusa Hera, a quem queria estuprar, Ixion tornou-se pai dos Centauros, monstruosas figuras híbridas, com busto de homem terminado por um corpo de cavalo. Passaram essas figuras a representar as constantes ameaças da vida instintiva que o ser humano tem que suportar na sua trajetória existencial. Lembre-se que o cavalo, associado aos Bestiários medievais sempre foi considerado como um símbolo universal da energia psíquica posta a serviço das paixões humanas, em particular da paixão sexual que, não controlada, leva o homem à destruição.

HÉRCULES   E   DIOMEDES

Com Pirene, Ares foi pai de três filhos, Cicno, Diomedes Trácio e Licaon. O primeiro assaltava peregrinos que se dirigiam ao oráculo de Delfos; Diomedes Trácio alimentava os seus animais (éguas) com carne humana, como está no primeiro trabalho de Hércules; Licaon bateu de frente com Hércules e morreu nas mãos do herói, como havia ocorrido com os outros dois.



Um episódio de destaque na vida do deus foi o da morte de Halirrótio, filho de Poseidon. Ares matou-o porque ele tentara estuprar sua filha, Alcipe. Levado pelos deuses a um tribunal, Ares, para espanto de todos, defendeu-se brilhantemente, sendo absolvido.  Esse tribunal se reuniu numa colina, o Areópago (Areios Pagos, colina de Ares), em Atenas. Orestes, o matricida, também foi julgado nesta colina.


AREÓPAGO  

Na história de Atenas, o Areópago funcionou historicamente tanto como um tribunal judiciário como assembleia política, reduzida depois a sua estrutura para, como órgão administrativo, exercer apenas o controle dos costumes públicos e da aplicação das leis da cidade. Uma curiosidade: foi a esse local que, em 375 aC, compareceu a cortesã Frineia, amiga e modelo do escultor
DENYS   AREOPAGITA
Praxíteles, para ser acusada publicamente de impiedade. Seu defensor, Hypéride, num golpe de mestre, a desnudou diante de todos os presentes e proclamou:”Merecerá beleza como esta a condenação?” Obviamente, a grande cortesã  foi absolvida e carregada em triunfo pelas ruas da polis. Foi neste local também que São Paulo pregou, convertendo o senador Dyonisus, conhecido depois pelo nome de Denys Areopagita, primeiro bispo de Atenas, e  santificado pela Igreja católica.

AFRODITE   E   ARES
O caso mais escandaloso de Ares foi o do seu affaire com Afrodite (uma ilustração astrológica do eixo Áries-Libra). Mal chegada ao Olimpo, Zeus literalmente “empurrou” a deusa para um casamento com Hefesto, o deus metalúrgico, artífice divino.Esta “generosidade” de Zeus para com seu filho é explicada: embora desejasse muito se aproximar sexualmente da belíssima recém-chegada, ele não o conseguiu, pois Hera, sua imperial esposa, manteve marcação cerrada sobre ele quando das festas realizadas no Olimpo para receber Afrodite, que a todos encantava.
  
Feio, aleijado, vivendo mais para as suas “indústrias” (na ilha vulcânica de Lemnos), Hefesto era o deus da metalurgia e das forjas. Descuidando-se de seus deveres matrimonias, deixou a jovem e apetitosa Afrodite abandonada no seu palácio. Numa das
AFRODITE,  ARES   E   ALECTRION  (TINTORETTO)
muitas reuniões olímpicas, ela e Ares se conheceram, sentindo-se a bela deusa atraída pelo esplendor físico do deus da guerra. Logo se tornaram amantes. Numa das vezes em que se encontraram, Ares escalou para ficar à porta do quarto, como sentinela, um assessor, Alectrion, com a incumbência de avisá-lo antes que Hélio, o deus-Sol aparecesse nos céus. Tal não aconteceu, Alectrion dormiu. A luz solar pôs então tudo à mostra, os dois amantes abraçados, dormindo, entregues ao doce cansaço de uma fogosa noite de amor. 



AFRODITE ,  ARES   E   EFESTO

Os deuses do Olimpo acorreram. As deusas, entretanto, advertidas por Aidos, o Pudor, evitaram comparecer. Hefesto, tomando conhecimento do acontecido, se deslocou rapidamente para o seu palácio ainda a tempo de surpreender os amantes presos ao sono. Como deus dos nós, das soldas, dos ferrolhos,  Hefesto lançou sobre os dois uma rede, prendendo-os de tal modo que jamais conseguiriam se libertar. Instado pela turma do “deixa disso”, acabou o deus coxo entretanto concordando em libertá-los. Afrodite demonstrou não se importar muito com a cena. Retirou-se logo para a ilha de Chipre, a ilha do cobre, onde, recebida pelas Horas  e pelas Cárites, se recompôs rapidamente com banhos, cremes e massagens, voltando logo a reassumir as suas funções de deusa do
FOBOS   E   DEIMOS
amor, como se nada tivesse acontecido. Ares, por seu turno, se mandou para a Trácia e lá ficou por uns tempos, praticando esportes, metido com os seus cavalos, limpando as suas armas. Alectrion, o dorminhoco, foi transformado por Ares num galo, obrigado a cantar às madrugadas antes de Hélio aparecer. Outra consequência desse affaire: Ares e Afrodite tornaram-se pais de três filhos: Fobos, Deimos e Harmonia (filha da guerra e da paz), que se casaria com Cadmo, fundador da aristocracia tebana.

Além da Trácia, Ares foi particularmente venerado na Cítia;, região próxima do Mar Negro, onde vivia um povo guerreiro;  em Olímpia o deus recebia o nome de Ares-Hippios e em, Esparta, de Ares-Enyalios (Belicoso), nomes, aliás, perfeitamente justificados sob o ponto de vista astrológico. Dentre todos os deuses do Olimpo, Zeus, como está na Ilíada, o considera como o mais odioso, pois “tu não amas senão a discórdia e os combates; tens o espírito intratável de tua mãe, que mal consigo reprimir com minhas palavras.”

Ao se referir ao filho dessa maneira, Zeus definia o seu  caráter, “deus furioso, naturalmente mau e inconstante, que, na sociedade olímpica, nenhuma simpatia desperta.” A imagem antropomorfizada  que a estatuária grega passou dele, a de um tipo fortíssimo, alto, barbudo, sempre armado, conduzindo muitas vezes um carro de combate, apesar de ser o grande modelo do infante (hoplita, o militar que combate a pé), fixou a sua imagem como a de um grande soldado. Sem se contestar aqui o seu grande valor como guerreiro, o que o prejudicava, porém, era a sua permanente sede de sangue e de carnificina, de corpos dilacerados, a sua pressa em destruir os seus alvos humanos e de encerrar as suas batalhas.

Mas não será por essas características que ele se diferenciava de Palas Athena. O que o irritava na deusa era a sua pretensão de se fazer passar por uma divindade em que a força se mostrava sempre controlada pela razão, que a sua a coragem era  inteligente e refletida. Na realidade, Palas Athena não era nada disso, era até muito competitiva, gostava das disputas, provocava-as, inclusive. A deusa, como se sabe, tinha um forte componente masculino na sua personalidade, vivia armada, seu corpo  indevassável, sempre protegido por um elmo. E como se tudo isto não bastasse, lembre-se que havia recebido de Zeus o privilégio de se manter eternamente virgem. Ela e Ares irritavam-se constantemente. A visão de Athena o punha furioso. Por essas razões, pela sua impetuosidade e agressividade cega, é que Ares deixou de vencer muitas lutas nas quais se empenhou. 

Cada tradição mítica da antiguidade teve o seu deus da guerra. Se nos aprofundarmos um pouco mais na questão da formação desse arquétipo entre os romanos notaremos que ele é, como aconteceu com  os gregos, um produto da contribuição de várias tradições. Por trás do Marte romano temos sem dúvida o Ares grego, o Marte dos Sabinos e muitos outros. 

Não podemos esquecer que Ares, como tudo indica, foi uma
NERGAL
“importação” da Trácia, das tribos que dessa região chegaram, como invasoras, na Tessália, na Beócia e na Fócida. Quando Ares chegou ao mundo grego, antes certamente da idade do bronze, os gregos o aproximaram do Hades, já que vinha acompanhado simbolicamente de serpentes e dragões, tinha a ver com os mortos e aceitava sacrifícios humanos, no que lembrava bastante, aliás, o deus Nergal dos mesopotâmicos.


Consta que a primeira união dessa divindade importada em território grego foi a que estabeleceu com uma das Erínias com a qual gerou um dragão. Esse dragão, como se sabe, foi liquidado por Cadmo (nome grego que traduz uma ideia de sobrepujar). Cadmo é um herói tebano, alcançando seu mito o mundo mediterrâneo, a Ásia Menor e o norte da África (Líbia). 


Cadmo (filho de Agenor e de Telefassa, reis de Tiro e Sídon) era irmão da princesa Europa, que, unindo-se a Zeus, deu origem à dinastia minoana. Depois de uma longa viagem, Cadmo acabou se fixando na Beócia. Mandou que um de seus companheiros fossem buscar água numa fonte próxima. Ao se aproximar, seus homens viram que a fonte era guardada por um dragão. Cadmo conseguiu matar o monstro e, a conselho de Palas Athena, semeou-lhe os dentes. No local em que os dentes do dragão tocaram a terra surgiram homens armados e violentos, aos quais foi dado o nome de spartoi, isto é, os semeados, ancestrais dos espartanos. Cadmo lançou pedras entre eles; não sabendo quem as atirava, acusaram-se mutuamente e entraram em luta, sobrevivendo apenas cinco spartoi.

CADMO   E   HARMONIA
A morte do dragão, por decisão dos deuses, teve que ser expiada por Cadmo. Ele foi obrigado a servir o deus Ares por oito anos como escravo. Terminado esse período, Zeus lhe deu como esposa Harmonia, a filha de Ares e de Afrodite. Segundo o mito, Tebas teria sido fundada pelo fenício Cadmo. Uma das filhas dele e de Harmonia, lembre-se, Sêmele, tornou-se mãe do grande deus Dioniso.  
  

Diodoro Sículo afirma que historicamente o primeiro Marte foi Belo, um rei da Babilônia, inventor de armas e da arte de dispor os exércitos nos campos de batalha. Higino, por sua vez, declara que este rei foi assim chamado, Belo, por ter sido o primeiro a usar dardos (belos) como arma de guerra. O Marte romano teria, na linha dessas contribuições, incorporado traços de um chamado Marte Hiperbóreo, divindade que, entre os germânico-escandinavos, era chamado de Odin ou Wottan. 

Os gregos formaram o seu Ares, como aliás todas as mitologias o fizeram, incorporando os traços de vários deuses da guerra, agregando ao modelo as características próprias de suas tradições, da sua invenção e da sua fantasia. Hesíodo, na sua Teogonia, deu a Ares como pais Zeus e Hera. Muitos dos traços da divindade grega passaram para o Marte romano, sem dúvida. Entretanto, é preciso lembrar que um deus da guerra já era honrado em terras itálicas antes da chegada do modelo grego.