quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O BANHO

                                                               AS BANHISTAS - PIERRE AUGUSTE RENOIR


Ato de molhar o corpo para higiene ou para refrescá-lo. Balneion, do Grego, balneum, do Latim. Ablução corporal. Desde a antiguidade, porém, o banho sempre foi considerado mais que limpeza. Associou-se à ideia de pureza, de purificação, de libertação do pecado.


MOHENJO - DARO


Uma das referências mais antigas que temos sobre a importância do banho pode ser encontrada nas ruínas de Mohenjo-Daro (3000-2500 aC), antiga cidade de um povo que viveu perto do rio Indus (noroeste da futura Índia), antes da chegada das tribos árias à região. As ruínas dessa civilização revelaram que havia na cidade uma construção retangular de mais ou menos 15 m x 8 m, um tanque denominado “O Grande Banho”, não só para banhos públicos mas também para cerimônias de limpeza ritual. À volta do tanque, numa construção mais elevada, salas com banheiros individuais provavelmente para uso das classes sociais superiores e sacerdotal. Essa prática também foi encontrada entre os povos que viveram no antigo México. Comuns eram os banhos noturnos entre os astecas e toltecas que dominaram o país, no período pré-colombiano. 

Os banhos, associados a rituais religiosos, sempre costumaram, em todas as civilizações, marcar cada nova fase na vida de uma pessoa. A participação nos chamados Mistérios de Eleusis, por exemplo, exigia banhos rituais no mar. Nos Mistérios eleusinos o que se buscava era uma espécie de renascimento: a morte do eu velho e o nascimento de um eu novo.

MIKVEH

No antigo Judaísmo, temos o exemplo da mulher que era obrigada a tomar um banho ritual denominado mikveh sete dias depois de terminada a sua menstruação mensal. Essa palavra, mikveh, significa reunião. Designava uma piscina alimentada por água de chuva ou fonte, para rituais de purificação e ablução. A nidá, a mulher menstruada, só poderia voltar a ter relações sexuais com o marido depois desse banho, renovando-se, assim, o pacto nupcial.

BATISMO DE CRISTO ( ANDREA DI VERROCCHIO )

Dentro do tema, encontramos também o batismo (eu mergulho, em grego), como proposta de purificação e de renovação. Como rito de agregação, o batismo, como o instituiu João Batista, é imersão (hoje apenas aspersão) e emersão. Apaga-se o pecado das origens e um novo ser surge para viver em Cristo. Ligado à ideia de um renascimento através do batismo, encontramos o tema do banho na famosa Fonte da Juventude.


FONTE  DA    FADA    VIVIANE   - BRETANHA ,  FRANÇA

As fontes sempre foram consideradas como lugares sagrados nas antigas culturas, suas águas fertilizavam a terra, águas que vieram do céu e que divindades do mundo subterrâneo faziam subir à superfície. Neste particular, revestem-se de importância especial as águas quentes das fontes termais, usadas para fins medicinais. A localização destas fontes na Grécia antiga era sugerida pelas creneias e náiades, respectivamente ninfas das fontes e dos ribeiros e riachos. Entre os romanos havia um festival chamado Fontinalia, celebrado no dia 13 de outubro, em homenagem ao deus Fons, deus das fontes, filho de Jano, o deus de duas faces, um dos mais antigos do panteão romano, e da deusa Juturna, ninfa creneia. Tradições semelhantes são encontradas no mundo celta, germânico-escandinavo, e outros.




FONTE    DE   JUTURNA ( FÓRUM  ROMANO , ROMA )


Comum é a representação em várias tradições de figuras femininas associadas às fontes, geralmente sob o aspecto triádico, ao qual a fonte está ligada como, simultaneamente, símbolo de casamento, fertilidade e educação de crianças. Em algumas línguas, aparentemente tão diferentes, como a inglesa e a chinesa, encontramos a palavra fonte para designar descendência. Em inglês temos offspring, isto é, “distância da fonte”, numa tradução bastante literal: em chinês, chuan é ideograma usado para descendência, composto por três elementos que significam água, pureza e origem.

A Bíblia refere-se aos quatro rios do paraíso que saem de uma fonte (Gênesis, 2:10-14), cuja água é “viva”, abrindo-se para as quatro direções do espaço, trazendo-nos ideias de renascimento e de vida eterna. A arte aproveitará bastante o tema da água das fontes, como, por exemplo, o encontramos numa das mais fantásticas obras pictóricas de todos os tempos, o políptico de A Adoração do Cordeiro Místico, da igreja de Saint-Bavon de Gand, Bégica, de Jan Van Eyck (séc. XV). No primeiro plano da obra, a fonte da vida, cuja água limpa, purifica, redime.



A  ADORAÇÃO    DO    CORDEIRO    MÍSTICO  ( JAN VAN EYCK )


Embora o Cristianismo tivesse valorizado o banho lustral (purificador), muitos padres da Igreja o condenaram como uma ameaça à castidade. Desde os primeiros tempos da Igreja os banhos se dividiam em quentes e frios, os primeiros vistos como perigosos, sensuais. Um exemplo é S.Jerônimo, pai e doutor da Igreja, séc.IV dC, que recomendava aos fieis se afastarem dos banhos quentes, um atentado à castidade.



Clemente de Alexandria, sécs.II-III dC, estabeleceu quatro tipos de banho: para o prazer, para aquecimento do corpo, para limpeza e por razões de saúde. Fazia muitas restrições aos três primeiros, admitindo o último, com reservas, e recomendando às mulheres que os frequentassem o mínimo possível. Santo Agostinho será um pouco mais tolerante, admitindo um banho quente por mês. Na Idade Média, os banhos públicos eram considerados pelo Cristianismo como lugares de depravação, proibidos aos cristãos. Devido a influências alquímicas, o banho frio no ocidente cristão poderia ser usado para fins de mortificação (mortificatio), no sentido de penitência, de flagelação do corpo, com o objetivo de reprimir ou refrear determinados sentimentos.

Cristianismo e banhos nunca se deram bem. Em muitos países da Europa, até recentemente, as restrições eram severas. Na Espanha, por exemplo, as mulheres não poderiam se banhar sem a permissão do seu confessor, pois se o fizessem sem essa autorização poderiam ficar doentes. Entre os povos eslavos do sul, as mulheres nunca poderiam lavar todo o corpo, prática que sempre trazia muita infelicidade. Há registros de que a mulher búlgara só poderia tomar um banho na vida, na véspera de seu casamento. A confissão bastava para “lavar” a mulher de todos os pecados.                                                          

O papa Nicolau I, no séc. IX, considerava funestos os banhos nas quartas-feiras e nas sextas-feiras, bem como durante a canícula e na festa de Tiago Maior. A canícula ia de 22 de julho a 22 de agosto. Na primeira data, a estrela Sirius, da constelação do Cão Maior, se levantava com o Sol, marcando o auge do verão. A festa de Tiago Maior era celebrada no dia 25 de agosto. As mencionadas datas, lembre-se, associam-se astrologicamente ao signo de Leão.

Até o séc. XVII, falava-se muito na infiltração da água quente do banho no corpo, o que tornaria os órgãos mais frágeis, deixando os poros mais abertos a ataques nocivos externos. Por isso, a higiene, em muitas culturas, até muito recentemente, esteve muito mais ligada ao vestuário do que ao corpo. Investia-se, por isso, na aparência exterior, isto é, muito mais na indumentária e em objetos de decoração corporal que na higiene íntima. Era a aparência como espetáculo. O banho debilitava, provocava a imbecilidade, abatia as forças.



Em meados do séc.XVIII, as coisas começaram a mudar. Surge, entre as elites francesas, um objeto que irá contribuir para que as restrições ao banho sejam atenuadas. Aparece a famosa cadeira de abluções íntimas, isto é, o bidé, bidet, do francês, na origem um pequeno animal (cavalo) de sela. O bidé de Mme. de Pompadour era muito famoso: espaldar com aplicações de pau-rosa em forma de flores e ornamentos de bronze dourado. Aparecem nas casas os quartos de banho, banheiras e bidés, ainda que seu uso fique limitado a uma elite. 


Muito usadas eram as práticas intermediárias entre a imersão e mudança de roupa. Tais práticas procuram “localizar” o banho: temos o semicúpio (cupa é vasilha grande de madeira) para o banho de imersão da parte inferior do corpo, o famoso banho de assento; lavam-se os pés e as partes que têm “menos contacto com o ar”. Muito usado também o banho por fricção, inclusive com perfumes. São as práticas parciais. As bacias são os utensílios de higiene mais usados. No início do século XIX, a palavra higiene ("o que é são", em grego) já não espantava mais ninguém. Descobre-se que há um “perigo” além do sujo. Há seres microscópicos ocultos, a água começa a ser usada para liquidá-los. Pasteur descobre os “monstros invisíveis”.

Temos hoje à nossa disposição várias formas de banho, conforme os padrões das culturas em que aparecem. Os finlandeses, por exemplo, inventaram o banho a vapor, a sauna; há o banho turco, como o finlandês. Entre os povos equatoriais, indígenas brasileiros e nações africanas, os banhos em água corrente sempre foram habituais, como divertimento, exercício, limpeza, integrando-se à vida diária. Entre os nossos índios faziam parte de certos ritos de iniciação. As jovens, no primeiro catamênio, acompanhadas de suas madrinhas, banhavam-se obrigatoriamente nos rios, fontes e mares. As filhas-de-santo, nos candomblés, durante a aprendizagem, banham-se com ervas aromáticas. No nordeste são comuns os banhos-de-cheiro para “tirar” o mau-olhado, para livrar alguém de um despacho, de um ebó. O grande dia (noite) para o banho-de-cheiro é São João. O verdadeiro banho-de-cheiro no catimbó tem as seguintes ervas (sete): arruda, alecrim, manjericão, malva-rosa, malva-branca, manjerona e vassourinha. Esse banho não deve ser tomado com o “Sol de fora”. Aconselhado nos dias de Ano Bom, Natal, Ascensão do Senhor, Sábado de Aleluia e Ressurreição. Nuca usar sabonete ou toalha.


Entre os antigos gregos e romanos o banho era item importante nas iniciações (mistérios eleusinos, dionisíacas, saturnais etc.). Lembremos que Medeia, feiticeira da mitologia grega, sobrinha de Circe, padroeira dos feiticeiros, sabia rejuvenescer através de banhos. Na Idade Média, havia o banho ritual de purificação do cavaleiro. Entre os ingleses, temos a ordem Knights of Baths, fundada em 1399. Na península ibérica eram comuns os chamados banhos de S.João.




De um modo geral, a água sempre mereceu muito respeito, veneração, que as práticas de higiene ainda conservam. Há uma série de recomendações para que a água não seja “ofendida”: não fazer ato fisiológico dentro dela; não tomar banho despido, com o sexo oposto; não cuspir na água; não praticar ato sexual dentro d’água, não bater na água com o calcanhar nem em água viva (rio ou mar); não blasfemar ou praguejar na água etc.



O    BANHO  ( PIERRE  BONNARD , 1867 - 1947 )


Em todas as tradições, o banho, principalmente o de imersão, se constitui como item importante, talvez o mais importante, nos ritos de iniciação. A imersão simboliza uma regressão às origens. O caráter regenerador da água é reforçado. A água, isto é, o banho iniciático aponta para novas formas de vida, equivalendo a uma morte simbólica, já que o elemento líquido é a origem e veículo de toda a vida. 

Alquimicamente, o banho faz parte do tema da solutio, operação que tem a finalidade de transformar sólidos em líquidos. Com a solutio há sempre a ideia de um retorno da matéria a um estado de indiferenciação, caótico. A solutio aponta para a dissolução das formas. Psicologicamente, ataca os estados fixos, coagulados, estáticos, da personalidade do ser humano. Neste caso, a solutio é uma operação da alquimia simbólica sempre vivida dolorosamente, com sofrimento.



BANHO DE BETSABÉ  ( REMBRANDT , 1606 - 1669 )


Um dos grandes exemplos da solutio de uma personalidade que se pretendia estruturada e fixada está numa passagem bíblica, tendo como personagens o rei David e Betsabé. O primeiro era rei de Israel, que se apaixonou por Betsabé quando a viu no banho. Ela era casada com Urias, soldado hitita, que David mandou para a frente de batalha na esperança de vê-lo morrer para poder ficar com a bela Betsabé. David, como se sabe, uniu-se a ela, tornando-a mãe de seu sucessor, o grande Salomão. 

Ainda dentro deste tema não podemos deixar de mencionar a mania que muitas pessoas têm de tomar banho. Esta mania vem sendo caracterizada como um sinal do chamado transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), um transtorno psiquiátrico que envolve elementos obsessivos e elementos compulsivos. Quanto aos primeiros, pensamentos e imagens persistentes, repetidas, incontroláveis; quanto aos outros, uma imposição interna irresistível que leva quem a experimenta a realizar um ato, no caso, banhar-se, para aliviar o desconforto ocasionado pela obsessão.

A mania de tomar banho pode começar com preocupações relacionadas com a sujeira, contaminação, pecado, culpa, remorso. Um dos três níveis pelos quais a água pode ser vista simbolicamente é exatamente o da purificação. Os outros dois níveis, lembremos, são a origem e a regeneração. No geral, a mania de tomar banho é raramente considerada sob a ótica do primeiro nível, o da origem, um desejo de dissolver tudo, de desintegração. A regeneração é reconstituição sem destruição do todo. Banhos constantes e repetidos podem indicar uma necessidade de retorno a um estado de indiferenciação, algo semelhante ao que a criança, antes de nascer, experimentava no ventre materno, mergulhada no líquido amniótico. 

O âmnio é uma membrana que se desenvolve em torno do embrião, nos vertebrados superiores, onde está contido o líquido amniótico , que o protege contra choques e agressões, mantendo-o alimentado, numa temperatura ideal É neste sentido que a mania de tomar banho pode se revelar como um grande desejo de retorno ao ventre materno, lugar de paz e tranquilidade, para que ali possa o maníaco readquirir a sua deliciosa e inolvidável condição de amniota.